Enquanto as memórias se vão apagando

Uma viagem atribulada atrás de um tempo que já não volta
A doença de Alzheimer num relato terno e sensível baseado na vivência da autora

Já evocada pela banda desenhada em obras como “Rugas”, de Paco Roca (edição Levoir), a doença de Alzheimer é um dos piores pesadelos que podemos antever. Pelo esquecimento progressivo, mas também pelos momentos de lucidez que vão ocorrendo. É por isso que uma das protagonistas de “Não me esqueças”, que a ASA acaba de editar, diz: “Acho que estou a ficar maluca… Mas o pior é quando me lembro”.
Porque ela, avó de Clémence, tem Alzheimer. A filha, médica, atarefada pelo corre-corre quotidiano, colocou-a num lar, de onde acaba de fugir mais uma vez quando a história começa. Não porque se sinta maltratada ou solitária – na verdade, não se lembra… – mas porque teme que os pais estejam preocupados pelo seu desaparecimento…
Sendo a solução apresentada aumentar o cocktail químico para a acalmar, Clémence, a neta que foi por ela criada, decide levá-la à socapa do lar, para irem à casa da infância, esperando que o choque a ajude a recuperar a memória, a voltar a ser a sua avó.
“Não me esqueças” é o relato dessa viagem atribulada, pela situação da avó e por algumas peripécias que vão acontecendo, uma viagem carregada de recordações, emoções, memórias que vão e vêm. Uma história sensível e tocante, aqui e ali com um toque de um humor triste, que soa como antecipação do que tememos que nos possa vir a acontecer: esquecer quem somos, o que fomos, aqueles que amamos, ficarmos presos num pedaço de realidade ultrapassada, da qual escapamos por breves momentos, apenas para cairmos em nós e vermos aquilo em que nos tornamos.
O vazio, o esquecimento, o apagamento que são o mote desta belíssima narrativa, são acentuados pela forma como Alix Garin, que projectou em Clémence muito da sua experiência pessoal, os traduz com um traço extremamente simples, eliminando muitas vezes os cenários, até o próprio carro, e transmitindo com invulgar assertividade as emoções que extravasam as imagens, a angústia, o vazio, a solidão, o nada em que uma vida se pode tornar, mas com uma enorme ternura e um ligeiro sentimento de esperança que preenche e conforta o coração do leitor e o ajuda a aceitar o que é inevitável e a ter vontade de corrigir o que ainda é possível.

Não me esqueças
Alix Garin
ASA
224 p., 24,90 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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