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Enquanto as memórias se vão apagando

Uma viagem atribulada atrás de um tempo que já não volta
A doença de Alzheimer num relato terno e sensível baseado na vivência da autora

Já evocada pela banda desenhada em obras como “Rugas”, de Paco Roca (edição Levoir), a doença de Alzheimer é um dos piores pesadelos que podemos antever. Pelo esquecimento progressivo, mas também pelos momentos de lucidez que vão ocorrendo. É por isso que uma das protagonistas de “Não me esqueças”, que a ASA acaba de editar, diz: “Acho que estou a ficar maluca… Mas o pior é quando me lembro”.
Porque ela, avó de Clémence, tem Alzheimer. A filha, médica, atarefada pelo corre-corre quotidiano, colocou-a num lar, de onde acaba de fugir mais uma vez quando a história começa. Não porque se sinta maltratada ou solitária – na verdade, não se lembra… – mas porque teme que os pais estejam preocupados pelo seu desaparecimento…
Sendo a solução apresentada aumentar o cocktail químico para a acalmar, Clémence, a neta que foi por ela criada, decide levá-la à socapa do lar, para irem à casa da infância, esperando que o choque a ajude a recuperar a memória, a voltar a ser a sua avó.
“Não me esqueças” é o relato dessa viagem atribulada, pela situação da avó e por algumas peripécias que vão acontecendo, uma viagem carregada de recordações, emoções, memórias que vão e vêm. Uma história sensível e tocante, aqui e ali com um toque de um humor triste, que soa como antecipação do que tememos que nos possa vir a acontecer: esquecer quem somos, o que fomos, aqueles que amamos, ficarmos presos num pedaço de realidade ultrapassada, da qual escapamos por breves momentos, apenas para cairmos em nós e vermos aquilo em que nos tornamos.
O vazio, o esquecimento, o apagamento que são o mote desta belíssima narrativa, são acentuados pela forma como Alix Garin, que projectou em Clémence muito da sua experiência pessoal, os traduz com um traço extremamente simples, eliminando muitas vezes os cenários, até o próprio carro, e transmitindo com invulgar assertividade as emoções que extravasam as imagens, a angústia, o vazio, a solidão, o nada em que uma vida se pode tornar, mas com uma enorme ternura e um ligeiro sentimento de esperança que preenche e conforta o coração do leitor e o ajuda a aceitar o que é inevitável e a ter vontade de corrigir o que ainda é possível.

Não me esqueças
Alix Garin
ASA
224 p., 24,90 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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Fabcaro: “Quis escrever um Astérix que Goscinny e Uderzo pudessem apreciar”

40.º álbum de Astérix chega hoje às livrarias nacionais

Chega hoje às livrarias de meio mundo, “O Lírio Branco”, o 40.º álbum das aventuras de Astérix o gaulês.
Como habitualmente, a ASA acompanha a edição internacional do álbum, cuja tiragem, em 20 línguas e dialectos, atingirá os 5 milhões de exemplares.
A principal novidade deste álbum é a estreia do argumentista Fabcaro, que acompanha Didier Conrad, o desenhador de serviço nos últimos seis álbuns.
Como já tinha sido noticiado, em “O Lírio Branco”, a desordem que geralmente reina na aldeia gaulesa vai ser afectada pela chegada de um romano, Palavreadus, inventor da filosofia de pensamento positivo que dá título ao álbum e tem o condão de tornar pacatos e indiferentes todos os que a ouvem.
Para aprofundar um pouco a génese da nova aventura, o JN conversou em exclusivo com os autores.
Fabcaro, humorista francês de 50 anos, revelou que “mais do que um sonho, escrever Astérix foi algo de surrealista”. E adiantou que aprendeu “a ler com Astérix”, que essa foi a sua primeira BD e que “conhecia muito bem esse universo”, por isso, nem precisou “de reler os álbuns; tinha medo de ficar preso ao que já estava feito”. A solução foi “deixar a imaginação trabalhar”. E acrescenta: “Manter a fidelidade a Goscinny, foi uma obsessão, sentia pavor de trair a obra dele e de Uderzo, mas ao mesmo tempo queria trazer algo de novo, escrever um Astérix que eles pudessem apreciar”.
Nesta estreia, o trabalho conjunto com Conrad e o editor foi fundamental, “colocaram um certo travão ao absurdo e deram conselhos ao nível da estrutura, do ritmo e da planificação”. O desenhador corrobora: “Não houve muitas mudanças, tornaram-se os textos mais curtos, foram feitos pequenos ajustes para que o álbum possa ser lido por todos, Astérix é lido por várias gerações e tem de ser acessível a todos. É preciso muita atenção aos detalhes”. E vai mais longe: “Em Astérix, tens de ter sucesso; estás ao serviço de um universo que já existe, que todos conhecem desde a infância, com quem têm um grande laço afectivo, que faz parte da família”.
Os dois elegem “A Zaragata” como álbum preferido, mas em termos de personagens, enquanto o argumentista elege “Obélix, porque tudo o que é divertido pode passar por ele, é uma personagem de comédia extraordinário”, Conrad inclina-se para “Astérix e Panoramix… e Falbala, que nunca desenhei!”.
Em “O Lírio Branco” são identificáveis cenas que parecem extraídas de outros álbuns. Fabcaro assume que “quis seguir a estrutura dos meus álbuns preferidos, como “A Zaragata”, “O Adivinho” ou “Obélix & C.ª” em que alguém chega de fora e abala a estrutura da aldeia” mas também o fez para “homenagear os álbuns anteriores de Astérix. Usar a mesma base e fazer diferente, introduzir pequenas alterações, surpreender o leitor a cada passo, embora mantendo um contexto familiar, fazer rir, sem subverter os códigos, sem os trair, apenas em jeito de homenagem.” Conrad subscreve: “Em “O Grifo” não havia qualquer referência a álbuns mais antigos, foi bom neste revisitar tantas memórias”.
Palavreadus, o vilão de serviço, graficamente assemelha-se a Bernard-Henri Lévy e Dominique de Villepin e os seus aforismos foram inspirados no brasileiro Paulo Coelho. Fabcaro assume que “foi muito divertido escrevê-los, combinando referências políticas, filosóficas, citações de filmes…” Atendendo aos seus efeitos sobre gauleses e romanos, num tom mais sério vinca que “houve sempre uma parte da população mais frágil, mais manipulável. Nos nossos dias não foram as pessoas que mudaram, foi a facilidade de o fazer através das redes sociais”.
O desenhador confessa que nunca terá “ o controle completo deste universo; o estilo de Uderzo era muito pessoal e eu não sou Uderzo. o meu desenho não é uma cópia, é obrigatoriamente diferente, desenho como sinto. Manter uma certa linha gráfica, exige esforço, mas é isso que torna o desafio interessante”. E remata, com uma gargalhada: “desenhar árvores, folhas, pedras, não custa nada! O resto é que é difícil!”
Uma das novidades do novo livro é que “é uma história híbrida, metade na aldeia, metade fora, embora a viagem até Lutécia seja curta. Foi a forma de fugir um pouco à linha condutora de “O Adivinho” ou “A zaragata”. Alternar aventuras na aldeia com outras em cenários mais distantes, é uma tradição mas não uma regra.”
Se Jean-Yves Ferry, o argumentista dos cinco álbuns anteriores, decidiu parar para se dedicar a projectos pessoais, Conrad revela-se “muito satisfeito com Astérix. O tempo necessário para desenhar cada álbum é muito longo, muito exigente. Não há tempo para pensar em mais nada”.
Quanto a Fabcaro, sabe que foi “ contratado para escrever um álbum; se Ferry voltar, o lugar é dele”. Mas deixa escapar que “ficaria encantado se pudesse escrever outro”.

6 milhões de álbuns no nosso país
Portugal foi o primeiro país não francófono a descobrir Astérix. Aconteceu em 1961, no número inicial da revista “O Foguetão”, tendo o herói passado depois pelas páginas do “Zorro”, “Tintin” ou “Flecha 2000”, entre outras.
Em álbum, a Íbis abriu o baile em 1966 com “Astérix, o gaulês”, tendo as suas aventuras passado depois pelos catálogos da Livraria Bertrand, Verbo, Meribérica e ASA, onde ainda se encontra. Ao JN, esta editora revelou que “O Lírio Branco” terá uma tiragem de 45 mil exemplares, sensivelmente o mesmo que vendeu o título anterior, “Astérix e o Grifo”. No nosso país já foram vendidos mais de seis milhões de álbuns de Astérix, uma gota de água face as 393 milhões já vendidos em todo o mundo.

Homenagem bem-disposta à herança de Goscinny
A estreia de um novo argumentista, Fabcaro, fez aumentar as expectativas em relação ao novo álbum. A primeira constatação, é a subversão da regra implícita que ‘obriga’ a alternar uma aventura caseira com uma aventura exterior. “O Lírio Branco” arranca na aldeia gaulesa, mas a certa altura a acção desloca-se para Lutécia.
Outra característica da nova história, é que evoca, em jeito de homenagem, cenas de álbuns anteriores, da fase Goscinny. Lendo-o, é impossível não lembrar, por exemplo, a viagem para as termas para curar o chefe Matasétix, em “O Escudo de Arverne”, a corrida desenfreada pelos corredores da pirâmide em “Astérix e Cleópatra”, ou “A Zaragata” e o intriguista Tulius Detritus, embora onde aquele semeava a discórdia, no presente álbum Palavreadus prega a harmonia e a paz a todo o custo.
Médico-chefe dos exércitos romanos, o vilão de serviço pelo período deste álbum, defende o Lírio Branco, uma corrente de pensamento positivo, disparando aforismos bacocos a torto e a direito, como “Um problema deixa de o ser quando tem solução” ou “Todos os caminhos são bons, pois todos levam a algum lado”.
Assumidos geralmente como grandes princípios de vida – o que não abona muito a favor dos seus ouvintes, sejam eles romanos ou gauleses – são a crítica mais forte e mordaz aos dias de hoje num relato que também refere a praga das trotinetes (numa sequência pouco feliz), a necessidade de exploração dos recursos locais, a questão da igualdade de género (no banquete final), a nouvelle cuisine ou as modas que põem “metade a fazer exercício físico e a outra metade a comer sementes e peixe”.
Na primeira parte da história, principalmente, Fabcaro apresenta alguns trocadilhos bem conseguidos e uma série de provocações inteligentes às próprias referências imutáveis da série, que dispõem bem, mas a narrativa arrasta-se um pouco na segunda parte, quando se centra nos problemas de relacionamento do chefe e da esposa, Boapinta.
Graficamente, tal como já evidenciava o álbum anterior, Didier Conrad, sem ter provocado qualquer corte com a herança de Uderzo, já a converteu ao seu estilo próprio, dinâmico e expressivo e as diversas soluções que utiliza são eficazes em termos narrativos.
De leitura bem-disposta, mas sem igualar a herança de Goscinny, “O Lírio Branco”, tem o mérito de recordar alguns dos álbuns basilares da série e de nos transportar mais uma vez até à aldeia dos loucos, perdão “das pessoas diferentes de nós devido ao seu comportamento imprevisível”, como diz Palavreadus.

Astérix: O Lírio Branco
Fabcaro e Didier Conrad
ASA
48 p., 11,50€


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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O desconhecido e o incompreensível como base do terror

Histórias curtas iniciais do piloto, publicadas em álbum pela primeira vez
Leitura comentada pode agradar a fãs do piloto e interessados por BD

Representar o terror é, desde sempre, algo difícil de concretizar,talvez porque é uma das emoções mais fortes que o ser humano pode ter e cuja origem varia de pessoa para pessoa.
“Urlo – Grito no escuro”, uma edição da Escorpião Azul que corre o risco de passar despercebida entre tantas novidades com que a BD nos tem presenteado nos últimos anos, consegue fazê-lo assente em dois vectores principais: o desconhecido e o incompreensível.
A história começa de noite, horário ideal para todos os terrores, quando um homem é parado na estrada por alguém que pede socorro.. Apanhado na armadilha, é levado para uma construção próxima, onde é mutilado para alimentar uma estranha criatura. Melhor, para lhe abrir o apetite, porque o verdadeiro pesadelo ainda está por começar.
Sem qualquer explicação, sem dados para que a razão o processe, é-lhe dito que terá de correr. Correr o mais que puder, para atravessar a floresta, cruzar a ponte e chegar ao barracão que existe do outro lado. Se atingir esse objectivo será libertado. Pormenor não displicente: a besta que já o provou, vai ser libertada no seu encalço.
Ferido, aterrorizado, não conhecendo o animal que o persegue, ignorando porque foi escolhido para aquela provação, o protagonista, sem nome o que adensa o mistério e a curiosidade, desata a correr.

Cronologicamente, “O grande desafio” (datado de 1959) é considerada a primeira aventura de Michel Vaillant, mas a verdade é que antes desse conjunto de corridas por vários continentes e em diferentes competições, o futuro campeão do mundo já tinha protagonizado pequenas narrativas.
As primeiras, estão agora reunidas em “Michel Vaillant – Histórias Curtas #1 – Origens”, que a ASA fará chegar às livrarias portuguesas já a partir de dia 13. O arranque faz-se em 1956, quando o autor, Jean Graton, decidiu trocar a revista “Spirou” pela “Tintin”, para poder escrever as suas próprias histórias, propondo as aventuras de um piloto automóvel.
De um jovem algo inconstante e imaturo às primeiras vitórias nas estradas e pistas, este álbum permite conhecer a génese do mais famoso piloto dos quadradinhos, em paralelo com o desenvolvimento do seu mundo familiar e profissional. E permite igualmente ver aparecer as famosas onomatopeias que ficaram como uma das imagens de marca das bandas desenhadas assinadas por Graton.
Se por um lado este é um livro naturalmente aconselhável para os fãs de Michel Vaillant, pois nele irão (re)encontrar histórias que embora já publicadas em diversas revistas, eram inéditas em álbum em Portugal até hoje, por outro lado, também irá satisfazer aqueles que gostam de ir mais além da simples leitura das bandas desenhadas, para saberem um pouco mais sobre a génese dos heróis e a forma de trabalhar dos autores, pois nela podemos descobrir a remontagem de pranchas para uniformização de formatos na publicação em álbum, narrativas criadas especificamente para publicidade a marcas e histórias em torno da família e da marca Vaillant.
Se gráfica e tematicamente há diferenças assinaláveis entre os primeiros relatos do álbum, em que Jean Graton ainda tacteava à procura do caminho para o seu piloto, e os que encerram a edição, nestes últimos o autor explana já a sua visão das corridas automóveis, explorando provas bem conhecidas, dos circuitos de Fórmula 1 às de resistência e passando pelos ralis, sob um olhar a um tempo realista e apaixonado, que o faz salientar um código de conduta ideal, apesar das características bem humanas das suas personagens.

Michel Vaillant – Histórias Curtas #1 – Origens
Jean Graton
ASA
64 p., 17,50 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Novo álbum de Astérix já tem título

Novo álbum das aventuras dos gauleses chega em Outubro

“O Íris branco” será o título do 40.º álbum das aventuras de Astérix e Obélix, que terá lançamento mundial, a 26 de Outubro do corrente ano.
Neste quinto álbum sem Goscinny nem Uderzo, cuja capa provisória também foi dada a conhecer hoje, a grande novidade é o argumento estar entregue, pela primeira vez, a Fabrice Caro, que substitui na tarefa Jean-Yves Ferry. O desenho, continua entregue a Didier Conrad.
Como esperado, será uma aventura caseira, passada na aldeia gaulesa, depois da ida às estepes russas em “Astérix e o Grifo”. Matasétix, o chefe da aldeia, terá um papel central, pois irá “atravessar uma crise”, como explicou o argumentista. Na base da história estará “O Íris Branco, que é o nome de uma nova escola de pensamento positivo, vinda de Roma, que começa a propagar-se pelas grandes cidades.” E prossegue: “Os preceitos desta escola influenciam igualmente os habitantes da aldeia (…) e nem todos ficam satisfeitos. É o que acontece ao nosso chefe…”
A escolha desta temática vem da preferência de Caro pelos álbuns “de Astérix em que um elemento externo se introduz na aldeia e vem perturbar o seu equilíbrio, e adoro observar a reacção dos habitantes, com a sua lendária capacidade de dissimulação”. E é também a “oportunidade de abordar implicitamente um fenómeno social contemporâneo…”
Para título, o escritor que afirma ter perdido três litros de suor durante a escrita do álbum, queria algo “que se enquadrasse no espírito de Goscinny e Uderzo, em que o tema é muitas vezes encarnado num objecto físico ou numa pessoa (“O Caldeirão”, “O Adivinho”, “O Escudo de Arverne”, “A Foice de Ouro”…). Aqui, o íris é um símbolo de bondade e de plenitude, ou pelo menos assim se espera…”
O protagonismo de Matasétix não é novidade, já que também teve um papel preponderante em álbuns como “O Combate dos Chefes”, “O Escudo de Arverne” ou “Os Louros de César”.
Como habitualmente, a edição portuguesa, da responsabilidade das Edições ASA, chegará às livrarias nacionais no mesmo dia em que a francófona será posta à venda, contribuindo para a sua tiragem global de 5 milhões de exemplares.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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O Gato de Sfar

Tal como aqui referi na semana passada, há que estar atento à colecção “Os Incontornáveis da Banda Desenhada”, actualmente em distribuição nos quiosques. A prová-lo está este 2º volume, que recolhe três álbuns da série “O Gato do Rabino”, de Joann Sfar.
Um dos mais prolíficos criadores da BD europeia, Sfar tem uma produtividade inacreditável, acumulando uma vasta actividade como argumentista e desenhador, com incursões ocasionais noutras áreas, como o cinema, onde se estreou com o magnífico “Gainsbourg, Vie Heroique”, uma biografia em tom de fábula do cantor francês Serge Gainsbourg, que passou de forma discreta nos cinemas portugueses (em Coimbra, passou apenas durante a Festa do Cinema Francês), estando a trabalhar neste momento num filme de animação baseado precisamente nesta série “O Gato do Rabino”, de que já circulam algumas imagens.

Com excepção da série “Donjon”, escrita a meias entre Sfar e Trondheim, e dos álbuns “O Principezinho” e “A Filha do Professor”, não há muita coisa de Sfar editada em Portugal, o que dá uma importância ainda maior a esta edição, que recolhe os 3 primeiros álbuns de uma das séries mais emblemáticas de Joann Sfar, que se devia chamar, não o gato do rabino, mas “o Gato da Filha do Rabino”, pois a dona do gato é a bela Zlabya, filha do Rabino.

Ambientada na comunidade judia sefardita da Argélia dos inícios do século XX e protagonizada por um gato que ganha o dom da palavra depois de comer um papagaio, a série é uma divertida e sensível análise às questões da religião, servida por diálogos deliciosos (veja-se a conversa entre o gato, que quer fazer o “Bar-Mitzvá”, e o rabino do rabino). Sfar desenha tão depressa como escreve, mas o seu traço, mais caligráfico do que ilustrativo, é de uma eficácia surpreendente, sendo excelente em termos de criação de ambientes e na forma como retrata as poses do gato (o que nem deve ter sido difícil, pois foi um dos gatos de Sfar que serviu de modelo para o gato do Rabino).

O único problema desta edição, é que deixa de fora, os 2 últimos álbuns da série: “Le Paradis Terrestre” e “Jerusalém d’Afrique”, em que, depois de uma viagem a Paris, que não entusiasmou o Rabino, a família regressa a África. O que, não havendo garantias de que a Asa prossiga a série, deixa os leitores que queiram saber o que acontece a seguir, condenados a recorrer às edições de língua francesa ou inglesa.

(“Os Incontornáveis de Banda Desenhada 2: O Gato do Rabino”, de Joann Sfar, Edições ASA/Público, 144 pags, 7,40 €)

Asa e Público Lançam os Incontornáveis da BD

As edições Asa prosseguem a sua colaboração com o jornal Público, lançando uma nova colecção de Banda Desenhada, “Os Incontornáveis da BD”, cujo primeiro volume chegou às bancas, esta quarta-feira, dia 2 de Maio. Depois de uma última colecção centrada numa única série, de um só autor – o genial “Gaston Lagaffe”, de Franquin – voltamos às antologias colectivas, na linha de edições como “Grandes Autores de BD”, ou Clássicos da revista Tintin”.
No caso desta nova colecção, composta por 12 álbuns duplos, nem todos os títulos escolhidos merecerão o epíteto de “incontornáveis”, mas há vários volumes a não perder, começando já na próxima semana, com “O Gato do Rabino”, de Sfar.

“Gato do Rabino” que, com “IRS”, de Desberg e Vrancken, “O Buda Azul”, de Cosey e, parcialmente, “Max Fridman” (o episódio publicado nesta colecção, embora inédito em álbum, já tinha saído no “Jornal da BD”), de Giardino e “XIII Mystery”, representam séries que se estreiam em Portugal nesta colecção, sendo a maioria dos títulos constituídos por episódios inéditos de séries de que já foram publicados em Portugal alguns volumes, seja pela Asa, seja pelas extintas Meribérica e Booktree.
Ou seja, sendo uma grande misturada – de géneros, de autores, de estilos – esta colecção tem ainda assim, o grande mérito de permitir aos leitores portugueses continuar algumas colecções de séries de interesse, que tinham ficado paradas, algumas há mais de 2 décadas, como é o caso de “O Vagabundo dos Limbos”, de Godard e Ribera. E aí, há coisas bastante recomendáveis, como “Murena”, de Dufaux e Delaby, “Em Busca do Pássaro do Tempo”, “O Assassino”, de Jacamon e Matz, “Largo Winch”, de Francq e Van Hamme (que já tinha sido publicada pela Bertrand e Gradiva, sem grande continuidade) e “Adèle Blanc-Sec”, de Tardi, cujo 3º álbum surge nesta colecção acompanhado por “O Demónio dos Gelos”, uma história solta de Tardi, com uma ligação bastante mais ténue com a série “Adéle Blanc-Sec” do que, por exemplo, “Adieu Brindavione”, esse sim, uma escolha bastante mais lógica, tanto mais que Brindavoine é personagem recorrente das aventuras de Adèle, a partir do 5º álbum da série.
O 1º álbum da colecção, dedicado à série “Valerian e Laureline”, também é paradigmático das peculiaridades da edição em Portugal, pois recolhe os volumes 19 e 21 da série, que assim fica completa em Portugal. Se há que louvar a Asa por corrigir um erro antigo, quando lançou o 20º volume, “A Ordem das Pedras”, sem que o volume anterior tivesse sido alguma vez publicado em Portugal, a verdade é que, quem comprar este 1º álbum, terá que forçosamente comprar a “Ordem das Pedras”, de modo a perceber os capítulos finais da saga cósmica de Christin e Mèzieres…

Um pouco o que acontece com o volume dedicado á série “XIII Mystery”, que dá destaque a personagens secundários da série “XIII”, remetendo para álbuns da série principal, que nunca saíram em Portugal. Ou seja, apesar de uma selecção discutível (no geral como no particular), há que estar atento a esta nova colecção de Banda Desenhada que durante 12 semanas vai invadir as tabacarias e quiosques.

(“Os Incontornáveis de Banda Desenhada 1: Valerian e Laureline”, de Christin e Mézières Edições Asa/Público, 72 pags, 7,40 €. Todas as semanas em distribuição conjunta com o jornal “Público”, entre 2 de Março e 18 de Maio de 2011)

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A Cruz e o Escorpião

Embora a um ritmo não muito sustentado, as Edições Asa lá vão continuando as principais séries do seu catálogo de Banda Desenhada. Três anos depois de terem publicado o volume anterior, chegou a vez do “Escorpião”, de Marini e Desberg, já um clássico da moderna BD franco-belga cujo sexto volume, “O Tesouro do Templo”, já chegou às livrarias portuguesas, numa edição que, como também já vem sendo hábito, conta com uma capa diferente para a edição vendida na FNAC.
“O Escorpião” insere-se na linhagem clássica de títulos como “Os Três Mosqueteiros”, “Scaramouche” e “Lagardere”, que cultivavam a aventura folhetinesca em estado puro, mas introduz um toque de modernidade na receita, através da junção cuidadosa de outros ingredientes, como uma pitada de erotismo soft, representado pelas belas e perigosas Mejai e Ansea Latal, e um toque de teoria da conspiração “à la Dan Brown”, perceptível na organização secreta que se serve do poder da Igreja para controlar o mundo, a que o Escorpião se opõe.

Além do charme e da classe do Escorpião, um sedutor ladrão de antiguidades, que parece saído directamente de um filme com Errol Flynn, mas a quem Marini deu umas feições que lembram demasiado as de Drago, o vampiro de “Rapaces” (outra série desenhada por Marini), do carisma do “mau da fita”, o diabólico Cardeal Trebaldi, e da sensualidade das personagens femininas, temos uma intriga suficientemente complexa para manter o leitor em suspense, servida por uma eficácia narrativa ao alcance de poucos. Tudo isto, passado a imagens de forma notável pelo virtuosismo de Marini, um dos mais elegantes desenhadores realistas da BD europeia.

Neste volume chega ao fim a intriga, iniciada no volume 3, da busca da verdadeira cruz em que foi crucificado o apóstolo São Pedro. Relíquia suprema, cuja descoberta e revelação permitirá derrubar o poder de Trebaldi, eleito Papa por via de ter apresentado ao povo de Roma uma cruz de São Pedro que, tanto ele como o Escorpião, sabem ser falsa. Depois da Capadócia e de Jerusalém essa busca termina na fortaleza de Saint-Serrac, mas o resultado não foi bem o que o Escorpião esperava…

Embora a intriga evolua de forma demasiado lenta, e os últimos três álbuns contribuam muito pouco para o evoluir da trama global, vale a pena continuar a acompanhar este “Escorpião”, quanto mais não seja pelo excelente trabalho de desenho e de cor directa de Marini, cada vez mais à vontade como colorista.

(“O Escorpião Vol 6: O Tesouro do Templo”, de Marini e Desberg, Edições Asa, 48 pags, 12,50 €)

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Regresso ao Armazém Central

Aos poucos, as edições Asa começam a retomar a publicação de algumas séries que pareciam ter ficado pelo caminho. A última a ter essa sorte, foi “Armazém Central”, de Loisel e Tripp, de que acaba de sair o terceiro volume. A série, que Loisel, numa entrevista, define como “uma comédia à Frank Cappra (…) com um ambiente próximo das pinturas de Norman Rockwell”, passa-se em Notre-Dame-des-Lacs, uma aldeia perdida no Quebeque dos anos 20 do século XX, cujo dia-a-dia vai ser alterado quando a jovem viúva Marie Ducharme decide tomar conta sozinha do Armazém Central que era do seu falecido marido.
Curiosamente, a série acabou por ser mais notícia em França pelo facto de Loisel e Tripp trabalharem o desenho a meias, com Loisel a encarregar-se do desenho a lápis e Tripp a passar a tinta. Algo perfeitamente vulgar nos comics das grandes editoras americanas, onde o mais habitual é haver uma clara separação de tarefas, com um argumentista, um desenhador para o lápis e outro para a arte-final (passagem a tinta), um colorista e um responsável pela legendagem, muitas vezes com cada um numa cidade diferente, cabendo ao editor coordenar toda essa gente, mas que para a BD franco-belga é suficientemente exótico para justificar o destaque que a editora dá ao facto, incluindo duas páginas no início do álbum em que se explica o peculiar (para os franceses) método de trabalho.

Na origem desta colaboração em moldes poucos habituais para a BD franco-belga, está o facto dos dois autores partilharem o mesmo Atelier em Montreal, no Canadá, o que lhes permitiu descobrir que eram complementares, ou nas palavras de Tripp, que “um desenhador virtual, que fosse uma mistura dos dois, desenharia com muito mais prazer, sem esforço”. Com efeito, Loisel adora o desenho a lápis e aborrece-se mortalmente na fase de passar a tinta, enquanto que Tripp é exactamente ao contrário e, ao conseguirem que cada um faça apenas aquilo que mais gosta, conseguem produzir a um ritmo nada habitual no mercado francês, de tal modo que em pouco mais de três anos já são cinco os álbuns publicados nesta série, inicialmente pensada como uma trilogia e que, até ver, irá ter pelo menos seis álbuns…

Se em termos de ambiente a coisa funciona muito bem, com os autores a traçarem um conseguido retrato nostálgico da vida no campo nessa época, a verdade é que o ritmo narrativo é contemplativo e bastante lento, apesar das coisas aquecerem um pouco neste 3º volume, com os homens a regressarem à aldeia e a reagirem mal à presença de Serge Brouilet, um estrangeiro vindo de Montreal que abriu um restaurante nas traseiras do Armazém Central. E se a tensão que este novo elemento introduz na relação de Marie com o resto da aldeia, está muito bem explorada, sequências como a do aniversário de Gaetan, o típico tolo da aldeia, em nada contribuem para o avançar da história, nem funcionam tão bem como as brincadeiras entre um cachorro, um gatito e um pato que decorrem em segundo plano, em paralelo à acção principal.

(“Armazém Central 3: Os Homens, de Loisel e Tripp, Edições Asa, 15,50€)

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Newborn: 10 Dias no Kosovo

Um ano depois da publicação de “Israel Sketchbook”, Ricardo Cabral regressa às livrarias com um novo caderno de viagem, desta vez dedicado ao Kosovo. “Newborn: 10 Dias no Kosovo” nasceu de um projecto de Banda Desenhada para a editora francesa Soleil, que acabou por não se concretizar. Gorado esse projecto, a viagem de recolha de elementos gráficos para uma BD ambientada no Kosovo do pós-guerra, que Ricardo ia desenhar a partir do argumento de um autor nascido no Kosovo, serviu-lhe para conhecer por dentro a realidade do Kosovo actual, realidade essa que Ricardo nos transmite de forma despretensiosa neste caderno de viagem.
Mais uma vez, a visão de Ricardo Cabral não é a do vulgar turista, mas sim de alguém que, durante 10 dias, partilhou a vida daqueles cuja terra visita. Um país bonito e que lentamente vai curando as cicatrizes de uma guerra sem quartel, que não poupou albaneses nem sérvios. Conforme o próprio Ricardo refere: “pensei encontrar um país martirizado pela guerra. Das notícias das valas comuns, das deportações forçadas, dos milhares de refugiados e desaparecidos, era de esperar um país cinzento e triste, mas a vida decorre normalmente… e as raparigas aqui são realmente muito bonitas.”
Tal como acontecia em “Israel Sketchbook”, embora a memória da guerra paire em alguns momentos do livro, o que fica é um bonito país e, sobretudo, a sua gente, gente bonita e que procura ser feliz.
E, embora se mantenha o mesmo método de trabalho, com os esboços feitos no local a serem posteriormente coloridos por computador, com auxílio de fotografias, a principal diferença em relação ao livro anterior é uma maior diversificação de registos visuais, com imagens apenas esboçadas, publicadas tal como foram desenhadas na altura, diferentes desenhos sobrepostos na mesma imagem, ou sequências em que se misturam de forma explícita o desenho e a fotografia, num processo que de alguma forma evoca o magnífico trabalho de Emanuel Guibert a partir das fotografias de Didier Lefevre em “Le Photographe”.
A publicação deste segundo caderno de viagem pela Asa, mostra que há um público para este tipo de livros, talvez até mais vasto do que o da BD. Esperemos, é que o sucesso do Ricardo Cabral viajante, não nos prive do trabalho do autor de BD…

(“New Born: 10 Dias no Kosovo”, de Ricardo Cabral, Edições Asa, 144 pags, 19,20 €)

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Os Irmãos Mais Novos de Tintin

Joana, João e o Macaco Simão foram criados por Hergé há 75 anos

Corria o ano de 1936. O sucesso de Tintin – então a viver a sua sexta aventura, “O Ídolo Roubado” – era crescente, mas não fazia a unanimidade. A prová-lo, chegava a Hergé uma carta da revista católica francesa “Coeurs Vaillants”, onde se lia que o herói “não ganha a sua vida, não vai à escola, não tem pais, não come, não dorme… Isso não é lógico”. E, em jeito de encomenda, desafiava Hergé a criar alguém “cujo pai trabalhe, que tenha uma mãe, uma irmã mais nova, um animal de estimação”, contou o desenhador numa entrevista a Numa Sadoul.
Recuperando personagens de um trabalho publicitário Hergé criou assim Jo, Zette e Jocko (rebaptizados em Portugal como Joana, João e o Macaco Simão), estreados há 75 anos, a 19 de Janeiro de 1936, e que viveriam três aventuras a preto e branco, (remontadas e) divididas por cinco álbuns quando foram coloridas, nos anos 1950. Os seus protagonistas eram os irmãos Joana e João, o pai, o engenheiro Legrand, a mãe, doméstica, e Simão, um macaco, o tal animal de estimação da “encomenda”.
O traço e a estrutura narrativa estavam próximos dos utilizados em Tintin, com bastante humor e uma boa dose de ficção-científica, fruto da ocupação do pai. Em cada aventura, a célula familiar desfazia-se rapidamente porque, enquanto os miúdos se metiam em alguma enrascada, o pai e a mãe ficavam em casa, aflitos e expectantes, aguardando o seu regresso do destino distante e exótico para onde os tinham conduzido as aventuras ingénuas e rocambolescas.
Em Portugal, estes “irmãos mais novos” de Tintin estrearam-se em 1964 na revista Zorro, passando pelo suplemento “Quadradinhos” de “A Capital”, antes da edição em álbum, pela Editorial Verbo, em 1982. A ASA, que actualmente está a reeditar As Aventuras de Tintin, ainda não agendou a reedição desta série, recuperada pela Casterman num único volume em 2008.

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