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Contar sempre a mesma história

O eterno triângulo amoroso, com novas roupagens. Mestria gráfica de Marini faz a diferença em “Noir Burlesc.

Há quem defenda que só existe um punhado de histórias para contar e o que varia são as épocas, os locais e as roupagens com que são vestidas as personagens que as vão interpretar. E acima de tudo, a forma como são (re)contadas.
Por essa ordem de ideias, “Noir Burlesco” é (mais) uma variação de uma temática tantas vezes abordada, aquela que tem por base o eterno triângulo amoroso.
Apertando a grelha, desta vez, Marini, o seu autor, localiza a acção nos Estados Unidos pós-II Guerra Mundial – mais precisamente em 1950, em Filadélfia – e entrega o protagonismo a um trio: Terry Slick, um bandido que gosta de trabalhar sozinho, segundo o seu próprio código de honra, de regresso à cidade após ter sido desmobilizado; Rex, um dos chefes mafiosos locais, com quem Slick tem contas a ajustar, a mais recente das quais ele ter noivado com a sua ex-namorada; e esta última, a bela e sensual Deb Caprice, que deixa os leitores a suspirar, de olhos esbugalhados, e se revela capaz de tudo para servir os seus próprios propósitos. A par deles, passa perante os nossos olhos uma forte galeria de personagens secundárias, que se revelam fundamentais para o desenvolvimento do relato e para dar diversidade, maior conteúdo e consistência ao todo.
Uma das principais diferenças na narrativa de Marini, é a mestria gráfica com que dá vida à sua narrativa, com um traço realista e credível, que representa na perfeição os cenários urbanos, os automóveis de época ou a figura humana, tudo pintado com uma variada gama de tons de cinzento e aplicações pontuais de vermelho vivo que tanto podem destacar buracos de bala ensanguentados como os lábios sensuais de Caprice.
Para além disso, Marini deixa que a imagem prevaleça sobre o texto, reduzindo este aos diálogos essenciais, curtos, assertivos e acutilantes, aqui e ali com uma pitada de humor negro, inevitável num registo policial do mesmo tom, duro e violento quanto baste, com algumas surpresas no percurso.

A edição do segundo tomo deste díptico, de novo em co-edição entre a Arte de Autor e A Seita, permite que a leitura das 240 páginas da história seja feita como ela pede: de seguida, sem paragens nem interrupções, para a fruirmos completamente outra vez, mas pela primeira vez.

Noir Burlesco 2
Marini
Arte de Autor/A Seita
136p., 29,50€


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A corrida energética contra o relógio

Exposição divertida sobre as questões climáticas sedutora para todos os leitores. “O Mundo sem Fim” foi o livro mais vendido em França em 2002, considerando todos os géneros.

Dentro do novo paradigma da banda desenhada em Portugal, que passa por mais editoras a apostar no género e por uma maior diversidade temática, “O Mundo sem Fim”, edição recente da Ala dos Livros, é uma das apostas mais arrojadas.
Afirmá-lo não questiona a qualidade intrínseca da obra, a sua actualidade ou interesse, mas destaca a sua temática, pois aborda questões como as alterações climáticas, os vários tipos de energia, os mais aconselháveis e as limitações dos recursos energéticos, que muitos não esperariam ver tratados em banda desenhada.
Com mais de um milhão de exemplares já vendidos em França, onde foi o livro mais vendido em 2022, considerando todos os géneros e não apenas a BD, tem por base uma longa conversa entre Jean-Marc Jancovici, um renomado especialista em questões energéticas e alterações climáticas, e Christophe Blain, responsável, por exemplo, pelas versões de autor de Lucky Luke.
Se o tema se poderia ter tornado maçador, pesado e até desinteressante, Blain conseguiu transformar a exposição numa narrativa viva e dinâmica, com pequenos apontamentos de humor gráfico, referências que todos podem compreender e uma capacidade de expor graficamente perante os olhos do leitor as questões tratadas, proporcionando uma leitura fluída e apaixonante que custa interromper. Para aqueles que gostam de apontar a banda desenhada como modelo de virtudes didáticas, este é um exemplo concreto, tanto capaz de seduzir os que já lêem esta arte regularmente, quanto os que muitas vezes ainda continuam a olhá-la de soslaio.
Em “O Mundo sem fim”, somos confrontados com problemas incontroláveis, questões inadiáveis, soluções aparentemente miraculosas que não o são, a ilusão das energias renováveis ou daquelas que hoje parecem o truque de magia saído da manga, questões que são polémicas, assustam e obrigam a pensar sobre o rumo que queremos tomar.
Num tom que não é catastrofista, mas apenas profundamente realista e não tem medo de expressar opiniões fortes e pouco consensuais, este livro mostra claramente que, ao contrário do que o seu título parece indicar, não vivemos num mundo sem fim; tem limitações e recursos finitos e, em nome da nossa sobrevivência, convém estarmos alertados e tomarmos medidas, mesmo que incómodas, para não termos de assistir ao seu ocaso.

O Mundo sem Fim
Jancovici e Blain
Ala dos Livros
196p., 35,00€


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Criador de “O Expresso do Amanhã” regressa com nova história de superação

Confronto entre um pastor e um lobo, nos Alpes franceses, é o tema da obra

Em Portugal, Jean-Marc Rochette é conhecido como autor dos dois volumes de “O Expresso do Amanhã” (Levoir, 2020), a banda desenhada que esteve na origem da série homónima da Netflix, uma história de sobrevivência de uns quantos eleitos ou privilegiados, transformada em luta de classes no interior de um extenso comboio, que circula a grande velocidade, numa viagem interminável pela superfície coberta de neve do planeta Terra.
Revelado na época áurea da mítica revista “(À Suivre)”, Rochette tem agora editado pela Arte de Autor “O Lobo” que, curiosamente, é também uma história de sobrevivência, de novo numa paisagem regularmente coberta de neve, os Alpes franceses.
Desta vez, são só duas as personagens no terreno, um pastor e um lobo, que as circunstâncias específicas – a ocupação de um e o instinto de outro – e os acasos provocados pela natureza colocam violentamente em lados opostos, num crescendo natural mas bizarro, que culminará numa longa, arriscada e potencialmente mortal perseguição.
Como elementos adicionais à trama, surgem a solidão do homem, traumatizado por em pouco tempo ter perdido o filho, na guerra, e a mulher, como consequência, a dívida de gratidão do animal para com ele, por ter sido poupado quando ainda era uma cria, e o facto de os lobos serem uma espécie protegida no parque natural alpino em que decorre a acção.
Com a imponência dos contrafortes rochosos como cenário, o traço de Rochette revela-se mais duro, agreste e conscientemente impreciso do que é habitual, retratando de forma muito realista as dificuldades de vida e deslocação, o lado selvagem do animal e as belezas naturais que são simultaneamente perigosas armadilhas.
Alternando sequências mudas, que pontuam os ciclos naturais e evidenciam como nascimento e morte fazem parte da mesma realidade, com monólogos do protagonista e narrativa em off impessoal, que reforça e se sobrepõe ao que as imagens transmitem, para acentuar a mensagem, Rochette proporciona-nos uma leitura intensa e de certa forma dolorosa, por nos sentirmos divididos entre o homem e o lobo, afinal apenas seres vivos a tentarem sobreviver, cujo final nunca é evidente, até ao desfecho em que a aparente pacificação contrasta com o trágico pormenor evidenciado.

O Lobo
Jean-Marie Rochette
Arte de Autor
112p., 25,00€


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Dois anos de vida num mundo de homens

Solidão e frustração como caminho para resolver situação financeira, “Patos” foi distinguido com dois Eisner, um dos mais prestigiados prémios para a BD do mercado norte-americano

A mudança de paradigma em relação à banda desenhada, em Portugal, nos últimos anos, é evidente e só isso explica, por um lado, a multiplicação de edições que fogem à oferta mais óbvia e, por outro, a aposta neste género por parte de editoras que ainda há poucos anos não a incluíam nos seus catálogos.
“Patos”. de Kate Beaton, é um dos exemplos recentes disto. Distinguida com dois Eisner, um dos prémios para a BD mais prestigiados nos EUA, é uma obra autobiográfica que, ao longo de mais de 400 pranchas conta a experiência vivida pela autora nas areias petrolíferas canadianas.
Passo a contextualizar: terminados os estudos numa área artística, Kate Beaton teve de encontrar um emprego bem pago para fazer face aos pesados encargos do seu empréstimo de estudante. Na época, em 2005, para uma jovem da pequena localidade de Cabo Bretão, a zona das areias petrolíferas de Alberta soava como o Eldorado, pois os empregos, nos armazéns de ferramentas, a conduzir maquinaria pesada ou na exploração das minas, eram pagos bem acima da média.
No reverso da medalha, implicava viver num local que, pelo seu isolamento natural, funcionava quase como uma prisão, para mais num mundo maioritariamente de homens – em média cinquenta para cada mulher – com todo o tipo de consequências imagináveis, do assédio ligeiro e bem intencionado, se é que tal existe, até à violação.
Entre a necessidade de resolver o seu problema financeiro, com o inevitável excesso de horas de trabalho, a solidão implícita num local de onde raramente se sai, as muitas frustrações experimentadas, os equívocos, a vontade cíclica de deixar tudo, a falta de distracções e o sentimento de culpa por algumas das decisões tomadas, Kate Beaton narra de forma contida, sem intenção panfletário, de modo quase sistemático, com um certo desprendimento que funciona como defesa e até a compreensão de quem consegue avaliar os vários pontos da questão, os dois anos que passou em diversas explorações de petróleo.
O traço utilizado para o fazer é algo simplista e caricatural, o que ajuda a atenuar a carga dramática da obra, mas eficaz em termos narrativos e foi mesmo através da banda desenhada que a autora encontrou o equilíbrio necessário e a forma de combater e ultrapassar os efeitos nefastos que aquele tipo de vida provoca.

Patos
Kate Beaton
Relógio D’Água
440 p., 26,00€


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O perigo da unanimidade que “Blacksad” justifica

Policial negro actual, embora situado décadas atrás

Sei que a unanimidade é perigosa mas no caso de Blacksad é impossível não ficar deslumbrado pelo originalidade da estrutura, pela qualidade das histórias e pela desenvoltura do traço desta criação dos espanhóis Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido
O título mais recente “Então, tudo cai” é, até agora, o mais ambicioso da série e, talvez por isso, foi necessário dividir a história por dois álbuns, que a Ala dos Livros já disponibilizou em português, reproduzindo as capas originais que compõem uma imagem única, com quatro dos principais intervenientes e a coragem de a segunda não ter o protagonista.
Ambientado numa Nova Iorque efabulada, o relato, apesar de se situar décadas atrás, soa estranhamente actual, pois combina ambições pessoais, lutas sindicais, interesses imobiliários e ligações perigosas entre políticos e gente pouco recomendável, numa trama bem urdida, consistente e sólida, repleta de segredos incómodos, em que os passados de algumas personagens as atrapalham e os cadáveres se vão multiplicando.
A par deste contexto mais genérico, em que arte e progresso parecem servir propósitos antagónicos, o protagonista, que dá título à série, reencontra antigas ligações, como sempre escolhe o lado errado das trincheiras e acabará por pagar caro as suas opções, fazendo, também ele jus ao título que aponta para a finitude da impunidade, das injustiças e dos negócios esconsos, sem que isso implique nenhum fundo nem lições de moral.
Policial negro, contido nos diálogos, deixando que a arte – e que arte! – de Guarnido tenha a primazia na narração da história – revela no entanto como Canales é extremamente assertivo e certeiro nas palavras que coloca na boca das suas personagens, com uma qualidade de escrita peculiar e uma enorme capacidade de transmitir muito com pouco.
E se, adequadamente, numa história que também tem ligações com a representação e o teatro, o tom de tragédia vai aumentando página a página, nenhum leitor estará preparado para a cena final, monumental e ao mesmo tempo representativa da pequenez do ser humano ou, em “Blacksad”, dos animais antropomórficos que assumem na sua forma as suas características intrínsecas, nos espelham e representam de forma tão forte, marcante e reveladora.
…porque, na verdade, é nessa última vinheta que, “Então, tudo cai”.

Blacksad: Então, tudo cai
Díaz Canales e Juanjo Guarnido
Ala dos Livros
60+56 p., 17,50€ (cada)


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Fim do milénio à moda do Porto

Retrato das noites portuenses nos últimos anos do século passado, das bandas de garagem aos pequenos festivais, o percurso de uma tribo de góticos

“Companheiros da Penumbra”, edição da Chili com Carne já em segunda edição, é um enorme fresco de mais de 300 páginas sobre as noites da cidade do Porto nos últimos anos do século passado.
Com a narrativa balizada entre o VIII Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto, em Outubro de 1995, e os últimos dias de 1999, “Companheiros da Penumbra” acompanha uma tribo de góticos numa época em que destinos, vontades, sonhos e anseios, se expressavam livremente, cruzando-se, chocando ou avançando juntos, para sucessos e desilusões que só se vivem uma vez e que, mesmo não parecendo, fizeram deles o que viriam a ser.
São cinco anos intensos, vividos e narrados em ritmo acelerado, num tempo em que as noites portuenses se abriam a todas as experiências artísticas, gráficas ou principalmente musicais, com a adrenalina e as descobertas pautadas com muito álcool, algumas drogas e pelos ritmos vivos e pesados, ensaiados em casa para desespero dos vizinhos ou mostrados em público em bares, salas de alterne ou armazéns abandonados, onde os festivais se sucediam ao ritmo da iniciativa e da partilha de experiências e em que todas as expectativas eram legítimas.
Após uma leitura que se torna compulsiva, de “Companheiros da Penumbra” fica a ideia de um retrato sincero da época, naturalmente subjetivo porque maculado pelo olhar pessoal de quem o viveu intensamente. Retrato delineado por Nunsky de forma expressiva, com um traço realista que recria espaços e lugares perfeitamente reconhecíveis, servido por uma apurada técnica de contrastes de branco e negro que salienta as opções estéticas dos intervenientes e a extensa banda sonora que atravessa todo o livro, de Bauhaus, The Cure, Joy Division ou Mission às bandas que nascem e acabam perante os nossos olhos.
E mesmo os que não integraram as tribos mostradas, que não viveram aqueles momentos ou outros semelhantes, que não passaram por alguns daqueles espaços, certamente recordarão locais, nomes e acontecimentos que, de alguma forma, marcaram e construíram a história musical e artística da cidade do Porto naquele período de 5 anos que o leitor devora avidamente à procura de se redescobrir, antes do final de um milénio que se anunciava por um lado de profunda mudança e por outro de grande incerteza.

Companheiros da Penumbra
Nunsky
Chili com Carne
320 p., 20,00 €


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Porto volta a ter uma Bedeteca

Espaço privilegiado para leitura de banda desenhada inaugurado hoje

A partir de hoje, a cidade do Porto volta a ter uma Bedeteca, ou seja uma biblioteca de edições de banda desenhada, situada no Centro Comercial Brasília.
A Bedeteca portuense, primeiro espaço do género no país, foi inaugurada em Outubro de 1990. Entre duas edições do Salão Internacional de BD do Porto, o projecto ComicArte concretizou o sonho de criar um espaço privilegiado para leitura de BD, que funcionou durante anos na sede da Comissão de Jovens de Ramalde.
Agora, após “anos de hibernação”, conforme se lê na apresentação do renovado projecto, foi recuperado “o seu acervo (…) num trabalho privado em prol do bem público”. A gestão está entregue à Turbina Associação Cultural, que recebe o apoio da Livraria Mundo Fantasma, situada em frente à nova Bedeteca, mas tem havido contactos com poderes públicos para eventuais apoios.
Ao acervo inicial, que entre outras preciosidades inclui a mítica revista (À Suivre) e muitos dos fanzines nacionais de BD publicados entre 1974 e o final dos anos 90, foram já adicionadas um bom número de edições recentes de diversas editoras, estando já disponíveis cerca de 4000 obras, sendo a “intenção duplicar esse número até final do ano”.
Mas, “mais do que um local onde se pode ler BD”, a Bedeteca pretende “continuar um trabalho em prol desta arte e da abertura das perspectivas e experiências que ela pode proporcionar ao leitor”, potenciando “a presença da banda desenhada nos hábitos de leitura das novas gerações”.
A inauguração da Bedeteca é pretexto para um dia consagrado à banda desenhada. Às 10 horas, o novo espaço de leitura abre as suas portas ao mesmo tempo que tem início o Mercado do Contra de Fanzines e Banda Desenhada, um evento dedicado às edições alternativas que contará com a presença André Caetano, Ricardo Baptista, Filipe Abranches, Pedro Moura, Daniel Lopes ou Marco Mendes. Em simultâneo realiza-se uma oficina de Desenho em Diário Gráfico, orientada por Paulo J. Mendes.
Pelas 15 horas, a Galeria Mundo Fantasma inaugura a exposição “Companheiros da Penumbra”, com originais de Nunsky, uma obra editada pela Chili com Carne que constitui uma viagem “a um Porto muito diferente da cidade conquistada pelo turismo de hoje. Um tempo de passagem, em que especialmente a Sé e a Ribeira, mas também os centros comerciais decadentes, encontravam novos habitantes nas hordas de juventude que iam enchendo bares e discotecas, onde se experimentavam projectos musicais e artísticos e se erguia alto a bandeira do direito à diferença”. Nunsky, que estará presente para autógrafos, participará numa conversa em torno desta BD e da cena alternativa do Porto dos anos 1980/90.
O programa encerra com o lançamento do primeiro fanzine do clube de banda desenhada “Cão Raivoso” (da Escola Soares dos Reis), mas para dia 17 está já agendado a primeira sessão de um Clube de Leitura, animado pelo Goteira – Colectivo de BD, dedicado ao livro “Palestina”, de Joe Sacco, a que actualidade deu nova relevância.


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O adeus a Alfredo Castelli, um dos mais importantes argumentistas italianos

Criador de Martin Mystère, tornou mais rica e erudita banda desenhada popular do seu país

O mundo dos fumetti (designação italiana para as histórias aos quadradinhos) está mais pobre: Alfredo Castelli, o argumentista que tornou erudita a banda desenhada popular faleceu hoje, contava 76 anos.
Natural de Milão, onde nasceu a 26 de Junho de 1947, Castelli iniciou a sua carreira de autor de BD com apenas 16 anos, quando criou a tira humorística, “Scheletrino”, que ele próprio escrevia e desenhava.
Nos anos seguintes desenvolveu actividades em diversas áreas, comprovando a versatilidade que viria fazer dele uma das maiores figuras dos quadradinhos italianos: escreveu argumentos para várias editoras, incluindo a Disney italiana, criou com Paolo Sala, o “Comic Club 104” (1966), o primeiro fanzine italiano dedicado à BD, escreveu guiões de publicidade para a TV, meio para o qual assinou também o argumento da série “Cappuccetto a Pois” (1969) e foi dele a história do filme “Il tunnel sotto il mondo” (1969).
O ano seguinte encontra-o como co-fundador, com Pier Carpi, da revista “Horror”, multiplicando as colaborações com as principais editoras do seu país, nalgumas delas com criações próprias como “L’Ombra”, “Gli Aristocratici” ou “L’Omino Bufo”.
A sua vida mudaria em 1978, quando iniciou a colaboração com Sergio Bonelli, que lhe pediu argumentos para “Mister No” e “Zagor”. Dois anos depois, apresentava ao editor milanês o primeiro esboço daquela que seria a sua grande criação: Martin Mystère, o Detective do Impossível, arqueólogo, investigador e apresentador televisivo.
Embora seguisse o modelo tradicional com um trio de protagonistas, Mystère, o cérebro, Diana a bela e sensual noiva eterna (com quem Martin viria a casar muitos anos depois) e Java, a força bruta, um homem primitivo do Neandertal resgatado numa das aventuras, e Sergej Orloff e os Homens de Negro, os vilões de serviço recorrentes em muitas histórias Castelli dotou a sua criação, cujo visual foi entregue a Giancarlo Alessandrini, de uma característica que a viria a distinguir das outras séries populares da editora, como Tex ou Dylan Dog: passou para o protagonista o seu interesse pessoal pelos grandes mistérios da humanidade, dando um tom erudito à banda desenhada, sem que ela perdesse as suas características populares de entretenimento de massas. Dessa forma, pelas suas páginas passaram civilizações míticas como a Atlântida ou Mú, os mistérios associados a locais reais como o Triângulo das Bermudas, a Ilha da Páscoa ou Stonehenge, objectos lendários como a espada Excalibur, extraterrestres ou povos perdidos. Martin Mystère mudou a forma como os italianos olhavam para a sua banda desenhada, associando à aventura pura e dura, temáticas modernas e mais complexas, baseadas numa investigação cuidada e com o fundo de verdade possível, apresentando-as de forma aliciante e credível para conquistar os leitores e levá-los à procura de respostas com o protagonista, embora muitas vezes elas não estejam disponíveis, sendo mantida a aura de mistério que as envolve.
A estreia de Castelli no nosso país data de 1975, quando o “Jornal do Cuto” publicou duas aventuras de”Os Aristocratas”. Quanto às aventuras de Martin Mystère, chegaram quase sempre aos quiosques do país através de edições brasileiras, os chamados “formatinhos”, por isso há muitos leitores portugueses que se tornaram admiradores do “Detective do Impossível”. Em anos recentes duas obras de Castelli tiveram edição nacional: a primeira, “O Destino da Atlântida” (Levoir, 2018), desenhada por Roberto Cardinale e Alfredo Orlandi, é uma aventura de M. Mystère que tem como ponto de partida os Açores; a segunda, “Apocalipse – A revelação de São João”, é uma ambiciosa reinterpretação gráfica do livro bíblico, desenhada por Corrado Roi.
No site da Sergio Bonelli Editore, na despedida ao homem que tantos fez sonhar, pode ler-se que o “legado artístico e intelectual de Alfredo Castelli é enorme e, portanto, naturalmente muito pesado. Se aqueles que tiveram a sorte de estar perto dele se lembram do seu entusiasmo narrativo e do seu perene bom humor, os muitos leitores que o conheceram apenas através das páginas impressas ficam com muitas histórias em quadrinhos e inúmeros ensaios e artigos. E estes permanecerão connosco para sempre.”


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Muita BD para ver

Festivais e eventos multiplicam-se no primeiro semestre

Sinónimo do bom momento que a edição de banda desenhada vive actualmente, o primeiro semestre deste ano está recheado de eventos dedicados a esta arte.
Como geralmente o segredo é alma do negócio e muitas vezes as confirmações surgem em cima das datas de realização, na maior parte dos casos ainda não são conhecidos os convidados, mas há algumas excepções…
As hostilidades abrem a 18 de Março, na Lourinhã, com a segunda edição do Louri’BD no Centro Cultural Dr. Afonso Rodrigues Pereira. Parceria da autarquia com a editora Escorpião Azul, que lançará no evento “E depois do Abril”, de Filipe Duarte e André Mateus, será dedicado ao tema “Monstros”, dará especial destaque aos autores nacionais e contará com exposições, lançamentos, uma feira de BD e uma programação dirigida às escolas.
O seu ponto alto será no fim-de-semana de 22 a 24 de Março, coincidindo com a Comic Con Portugal, que se inicia a 21. O maior evento de cultura pop nacional, a comemorar 10 anos de existência, regressa às origens, mais precisamente à Exponor, em Matosinhos. Não tendo na banda desenhada o seu aspeto mais mediático nem sequer exposições de originais, a verdade é que em termos relativos este é o segmento com o cartaz mais forte, como é comprovado pelos autores estrangeiros já confirmados: Miguelanxo Prado, Juan Diaz Canales, Teresa Valero, Stan Sakai, Ryan Ottley, Frank Cho, Mike Grell, François Boucq e Jordi Lafebre, que cobrem um amplo espectro da banda desenhada franco-belga aos comics de super-heróis, e que os fãs poderão contactar nas conferências e sessões de autógrafos.
Avançando no calendário, a 13 de Abril é inaugurado o Ilustra BD, nas belas instalações do Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro, onde haverá exposições, feira do livro e programação variada que se estenderá até 2 de Junho.
No final de Abril, mais exactamente de 25 a 28, o Coimbra BD volta a ter lugar no Convento de São Francisco, espaço que ocupou pela primeira vez no ano passado. Desenho ao vivo, cosplay e uma grande aposta na BD nacional são os principais vectores deste festival já na sua oitava edição.
No mesmo fim-de-semana – 27 e 28 de Abril – o Museu do Vinho Bairrada, em Anadia, será mais uma vez ponto de encontro dos admiradores de Tex, um western em publicação ininterrupta desde 1948. A 9.ª Mostra do Clube Tex Portugal, como habitualmente, irá propor uma exposição dedicada ao ranger e conversas e sessões de autógrafos com os dois autores convidados, cujos nomes já são conhecidos: Fábio Civiteii, possivelmente o mais célebre desenhador de Tex após Aurelio Galleppini, o seu criador gráfico, e Sandro Scascitelli.
Depois do sucesso da edição inaugural, em 2023, que comprovou a necessidade de um evento dedicado à BD no Norte do país, o Maia BD vai regressar de 24 a 25 de Maio. Este ano a organização promete “ocupar todo o espaço do Fórum local com um número de exposições bem superior ao anterior, que se prolongarão no tempo para lá das datas do evento em si”. Está também previsto “um número maior de autores internacionais, a par de uma boa selecção de convidados nacionais, articulados essencialmente à volta dos lançamentos a realizar nesse período”.
O semestre “aos quadradinhos” terminará com o XIX Festival Internacional de BD de Beja, como sempre da Casa da Cultura local que, de 7 a 22 de Junho acolherá um evento que, a par das exposições de originais, costuma primar pelo intenso convívio entre autores e visitantes no seu primeiro fim-de-semana. Para já, a organização só confirma dois nomes: Alix Garon e Antoine Cossé, mas entre portugueses e estrangeiros deverão ser mais de duas dezenas.


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Chegar ao céu, encontrar o inferno

Virtudes da banda desenhada popular, Dylan Dog regressa às livrarias nacionais com o selo de A Seita

Hoje em dia, quando se fala de banda desenhada popular, de certa forma evocando um tempo em que ela se encontrava em generosas quantidades nos quiosques, há um nome que vem logo à mente, o de Sergio Bonelli e da editora italiana que leva o seu nome. Alicerçado no sucesso de Tex, um western puro e duro em publicação ininterrupta desde 1948, este editor milanês conseguiu criar um sistema editorial que permite alimentar, sem grandes oscilações de qualidade, ao nível gráfico e temático, as revistas de 100 páginas que mensalmente coloca à venda.
Entre outras séries – Martin Mystère, Julia, Dragonero… – que vale a pena conhecer, há uma que se destacou e chegou até a fazer concorrência à popularidade de Tex: Dylan Dog, uma criação de Tiziano Sclavi estreada em 1986. Ex-inspector da Scotland Yard, também conhecido como Detective do Pesadelo, pelo equilíbrio entre o real, o fantástico e o onírico que pontua as suas histórias, DD tem vindo a protagonizar a maior parte dos volumes da colecção Aleph, em que a editora A Seita apresenta aos leitores portugueses títulos da Sergio Bonelli Editore.
O mais recente é “Picada Mortal”, escrito por Alberto Ostini e Francesco Ripoli, que narram como o aparecimento de mais um cadáver de uma prostituta, horrivelmente desfigurada, a boiar num rio, irá levar Dylan até Southeaven, para investigar um assassino em série e recordar memórias, nem todas agradáveis, de umas férias da adolescência, passadas naquele local.
Será assim que reencontrará Tiffany, paixão dessa época e fará de tudo para evitar que ela seja mais uma vítima da dupla ameaça: o assassino em série e o vício da droga que a domina e a leva a prostituir-se.
Se até aqui nada parece soar muito original, “Picada mortal” tem dois trunfos que fazem dele uma leitura aconselhável. O primeiro, é o facto de longos excertos serem narrados em voz off pela própria Tiffany, antecipando, sem desvendar completamente, o que ainda está por acontecer, criando em simultâneo a curiosidade e a dúvida no leitor, o que o impele a continuar a leitura; o segundo é o desfecho, inesperado e chocante, bem ancorado na vida real.
Numa série em que se costumam cruzar referências das mais variadas origens, a originalidade é uma das explicações para o sucesso deste anti-herói.

Dylan Dog – Picada mortal
Ostini e Ripoli
A Seita
104 p., 14,99 €


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