A América Latina pintada por Lepage

A Terra sem Mal
Anne Sibran (argumento) e Emmanuel Lepage (desenhos)
Vitamina BD
13,99 €

Muchacho – Tomo 1
Emmanuel Lepage (argumento e desenhos)
Edições ASA
14,00 €

Emmanuel Lepage nasceu em 1966 e desde os 21 anos que faz banda desenhada. Viajante inveterado, trouxe para a BD a experiência recolhida na realização de elaborados esboços de viagem, podendo ser considerado um pintor de quadradinhos – sem que isso signifique a ausência de ritmo e movimento nas suas pranchas, de planificação heterogénea, onde muitas vezes se multiplicam as vinhetas para ritmar as cenas, sendo outras de (quase) imagem única o que obriga o leitor a parar e a contemplar o pormenor a que o autor chega ou a beleza explosiva do conjunto. Até porque a paleta cromática que ele utiliza, rica de tons, sejam os verdes da selva, os azuis e cinzentos das (belas) cenas nocturnas ou os amarelos e sépias quando predominam os seres humanos, fantástica na forma como recria a luz, as sombras e os volumes, é uma enorme mais valia para o seu traço elegante, a um tempo espontâneo e trabalhado, detalhado e expressivo.

Tudo isto, presente nas duas obras disponíveis em português – “A Terra sem Mal” (de 2003) e o recente “Muchacho – tomo 1” – é usado por Lepage para retratar uma das suas paixões: a América Latina, respectivamente o Paraguai (no final da década de 30 do século passado) e a Nicarágua (sob a ditadura de Somoza, em 1976). Mas não se pense que os seus retratos são apenas pictóricos, Lepage, em ambos os casos, ao mesmo tempo que nos transporta ao colorido de cada um dos locais, revela também, com uma invulgar intensidade, os seres humanos de carne e osso que lá vivem, tornando, uma leitura atenta, mais forte o primeiro impacto que os belos desenhos provocam.

“A Terra sem Mal”, um argumento de Anne Sibran, narra a experiência de uma jovem europeia, no interior do Paraguai, para conhecer e registar a língua, os hábitos e as tradições do povo Mbya, vencido pelo desânimo e que está a deixar-se morrer. Mas a chegada de um misterioso feiticeiro leva a aldeia em peso numa peregrinação (que se revelará insensata) à procura da sua Terra sem Mal (uma espécie de paraíso na terra), uma peregrinação selva adentro, que será mais espiritual que terrena, e que a jovem acompanhará, dividida quanto a continuar com aquele povo, que já ama e sente quase como seu, apesar de não a reconhecerem como amiga, ou abandonar tudo e regressar às origens, num relato tocante, sobre a busca dos outros e de si próprio, num ambiente natural, com tanto de belo como de hostil, que leva a repensar prioridades de vida.

Em “Muchacho”, (um romance desenhado forte e lírico, num contexto sócio-político real), o protagonista, Gabriel, seminarista, filho de um dos protegidos do ditador Somoza, empreende também uma busca de si próprio quando é enviado por algumas semanas para um lugarejo, para pintar um fresco na igreja local. Só que a convivência com o padre de lá, tão preocupado com a saúde espiritual do seu rebanho quanto com a sua qualidade de vida (o que o leva a simpatizar com a guerrilha e a ser mal-visto pelas autoridades), abre-lhe novas perspectivas de vida e na sua arte, a pintura, em que se refugia face à hostilidade da população. Isto, a par do despertar duma desconhecida sexualidade, vão levar Gabriel a repensar as suas prioridades – a sua fé, a sua arte… – e a fazer opções que só conheceremos no segundo e último tomo, que se espera chegue em breve às livrarias.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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