Criada à imagem e semelhança dos autores que nela trabalham e do meio em que estão inseridos, a banda desenhada, naturalmente, tem abordado de forma recorrente questões religiosas.
E fá-lo sob os mais variados prismas, da pura ficção à narrativa de episódios históricos, de biografias desenhadas à ilustração da própria Bíblia. Neste último caso está The Book of Genesis Illustrated, de Crumb, pai da BD underground, que prometia polémica mas se revelou uma leitura fiel do primeiro livro da Bíblia, ilustrado com muita mestria. Também no final de 2009, surgiu “Yeshuah – Assim em cima, assim embaixo”, dos brasileiros Laudo e Omar Viñole, primeiro de uma trilogia sobre um Cristo muito humano.
São dois exemplos recentes de uma linhagem já com algumas décadas, a que, como sinal dos tempos, se podem juntar “The Manga Bible”, criada pelo britânico Siku, ou “The Manga Bible Story-japanese: Comic Book Style Bible”, do japonês Masakazu Higuchi.
A outro nível, Charles Schulz, um luterano convicto, muitas vezes pôs os Peanuts a citar versículos bíblicos (o que originou o livro “The Gospel According to Peanuts”), e Maurício de Sousa ilustrou “Passagens Bíblicas com a Turma da Mônica”.
Num contexto histórico, encontra-se a biografia de “Don Bosco”, feita em 1949 por Jijé, desenhador de Spirou e Jerry Spring, “A aparição de Fátima”, do mestre português Eduardo Teixeira Coelho, ou “Avec Jean-Paul II”, de Bar, Koch e Lehideux. “El Increible HomoPater”, uma BD, polémica, do artista plástico colombiano Rodolfo Leon, dava também o protagonismo a João Paulo II, mas como um super-herói regressado dos mortos para combater o mal, treinado por Batman e Super-Homem…
Outros papas inspiraram autores de BD, em registos (mais ou menos) ficcionados. É o caso de “Bórgia”, um retrato virulento e licencioso do papado de Alexandre VI, a série “Escorpião”, que conta as aventuras de um caçador de relíquias sagradas, em busca da verdadeira cruz onde o apóstolo Pedro foi crucificado, para desmascarar intrigas papais, ou o mais clássico “Vasco”, de Chaillet, sobre as lutas pelo poder – secular e religioso – na Itália do século XIV.
As teorias da conspiração, na sequência do êxito do “Código Da Vinci”, têm inspirado muitas obras, mas antes do livro de Dan Brown já havia histórias aos quadradinhos com esta temática, como “Le Triangle Secret”, escrito por Didier Convard, baseado no pressuposto que Jesus teria um gémeo que ocupou o seu lugar após a crucificação. Já “O Decálogo”, escrito por Frank Giroud, versa sobre uns eventuais 10 mandamentos deixados por Maomé, cuja divulgação poderia mudar a história das religiões muçulmana, cristã e judaica. “Revelações”, de Paul Jenkins e Humberto Ramos, é um policial que decorre em pleno Vaticano, num confronto entre fé e razão, e no mesmo registo, surge “O terceiro Testamento”, de Dorison e Alice, que narra uma longa investigação de um inquisidor caído em desgraça.
Com um outro nível de leitura, surgem “Dieu en personne”, um ensaio em BD sobre a divindade, da autoria de Mathieu, que começa com o regresso de Deus à Terra que criou, para ver o seu estado, terminando num mega-processo contra Ele, e “Pourquoi j’ai tué Pierre”, em que Oliver Ka, com o desenhador Alfred, aborda de forma pudica e sensível, num registo autobiográfico, um tema que infelizmente faz a actualidade: a pedofilia na Igreja Católica.
A existência de tantas abordagens – ou de parte delas, pelo menos – justifica uma exposição todos os anos na catedral de Angoulême, durante o mais importante festival europeu de BD, durante o qual um Júri Ecuménico, composto por especialistas católicos, protestantes e agnósticos, com “um olhar espiritual e artístico sobre a BD”, distingue um álbum, este ano “L’encre du passé”, de Mael e Bauza, um road-movie sobre amizade no Japão medieval.
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Para lá do cristianismo
Mas não só do cristianismo se alimenta a BD. “Mágico Vento”, um western Bonelli, criado por Manfredi, mensalmente nos nossos quiosques na edição brasileira da Mythos, é protagonizado por um xamã sioux, abordando temas sobrenaturais e as crenças dos índios norte-americanos. Sobrenatural, também, é o “Hellboy” de Mike Mignola, um demónio evocado pelos nazis mas que se torna no seu maior adversário, combatendo também seres fantásticos e demoníacos.
“Adéle Blanc-Sec”, a heroína de Tardi, cuja adaptação cinematográfica de Luc Besson chegará em breve aos cinemas, combate uma seita de adoradores do demónio assírio Pazuzu, que exige sacrifícios humanos, tal como o culto de Moloch-Baal em “O Túmulo Etrusco”, com que se viu a braços Alix, o jovem herói da antiguidade clássica a que Martin deu vida.
E foi sobre crendices e superstições, cuja fronteira com a religião é muitas vezes ténue, que Goscinny e Uderzo se debruçaram no irresistível “Astérix e o Adivinho”, que põe a nu as reacções do ser humano face ao (aparentemente) inexplicável.
Escrito Por
F. Cleto e Pina
Publicação
Jornal de Notícias