Um autor constante e estimulante
Revelado com “O Enigma Diabólico” – uma sátira a Blake e Mortimer -, Miguel Rocha tem sido um dos mais constantes e estimulantes criadores gráficos nacionais. “As pombinhas do sr. Leitão”, “A vida numa colher – Beterraba”, “Salazar – Agora, na hora da sua morte” ou “Portimão – A noiva que disputa o rio ao mar” são exemplo disso.
A história de um cavalo que fazia contas
Desengane-se quem adivinha facilidade de leitura ou entretenimento ligeiro por se tratar de uma banda desenhada, pois uma das suas principais características é exigir ao leitor esforço e participação na elaboração, melhor, na interpretação da narrativa. Porque Miguel Rocha, mais do que contar uma história linear, optou por avançar pistas, cabendo-nos interpretá-las e compô-las de acordo com a nossa sensibilidade, capacidade de interpretação e formação social e cultural. Porque, de cada leitura de “Hans”, facilmente resultará uma história diferente, muitas vezes díspar, até.
Na sua génese está o caso verídico, datado do final do século XIX, do equídeo alemão Der Kluge Hans (Hans inteligente), pertença de W. Van Hostens, supostamente capaz de realizar operações matemáticas, cujo resultado revelava batendo com a pata no chão. Rapidamente transformado num fenómeno circense, originou a criação de uma comissão para avaliar se se tratava ou não de um embuste, que acabou por concluir que o animal era sensível à linguagem corporal dos espectadores, conseguindo pelas suas reacções “adivinhar” os resultados.
Adaptada da peça homónima de Francisco Campos, estreada em Setembro de 2006, a BD de Miguel Rocha, assume uma forte componente teatral e dramática, comportando-se as personagens muitas vezes como se estivessem num palco e havendo mesmo uma cortina a abrir e fechar o livro…
No entanto, a história de Hans é apenas acessória, ou melhor, um elemento de ligação entre várias histórias, centrando-se o livro em relações (ou dependências?) humanas – ou a dificuldade de relacionamento entre humanos. Pois Van Hostens engravidou a irmã da mulher que amava, não consegue assumir (nem libertar-se) da relação com Ângela, falha a abordagem à psiquiatra que devia avaliar Hans – e que também teve um caso mal resolvido com um dos seus pacientes…
Histórias que vão sendo reveladas em sucessivos flash-backs, ao longo dos cinco capítulos (actos) do livro (e das páginas “publicitárias” finais), com os diálogos entrecortados com declamações(?) que conferem um tom algo surreal ao todo. Para o que contribui também o virtuoso grafismo “enevoado” (digitalmente) de Miguel Rocha, em tons cinzentos/arroxeados, que obriga o leitor, muitas vezes, a adivinhar mais do que o desenho mostra.
Escrito Por
F. Cleto e Pina
Publicação
Jornal de Notícias