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Final da viagem no ponto de partida

“Lendas japonesas” adaptam em BD obra de Wenceslau de Moraes
Obra póstuma de José Ruy é homenagem justa e merecida

Raramente a vida permite que assim aconteça mas a verdade é que com estas “Lendas japonesas”, que a editora Polvo acaba de fazer chegar às livrarias, José Ruy (1930-2022) de alguma forma terminou a sua vida onde a tinha começado ou para definir melhor, teve na sua última obra publicada um regresso ao momento onde tudo praticamente começou. E, relembro, tudo é uma carreira notável, uma vida inteiramente dedicada aos quadradinhos, que começou a desenhar aos 14 aos anos e só a morte foi capaz de interromper aos 92, em finais do ano passado.
As onze histórias curtas que compõem este álbum, são outras tantas adaptações de lendas recolhidas no Japão pelo escritor e diplomata Wenceslau de Moraes nos primeiros anos do século XX. Trata-se de histórias singulares que, segundo o próprio José Ruy, o deixaram “apaixonado pelo tema” quando as descobriu, em 1949, tendo originado nove adaptações em “O Papagaio”, então suplemento infantil da revista “Flama”. Três dessas lendas seriam recuperadas no número inaugural dos semi-profissionais “Cadernos da Banda Desenhada” (1987) e José Ruy regressaria ao tema, na mudança do século, desta vez com duas lendas desenhadas de origem para as “Selecções BD”.
Estas narrativas, de cunho fantástico, têm como protagonistas deuses com os defeitos dos homens ou homens que querem ser como os deuses e uma delas, muito curiosa, rãs antropomorfizadas. Possuem propósitos morais, educativos ou com indicações valiosas para o dia-a-dia e, graças à capa dos hábitos e costumes nipónicos, ganham contornos misteriosos e estimulantes que ajudam a perceber a paixão que provocaram no desenhador português.
Aliás, quer nas páginas mais clássicas e elegantes das primeiras versões, mostradas no texto com que José Ruy introduz o leitor na temática, quer nas narrativas inseridas neste volume, é notório o cuidado e apuro gráfico que foi colocado na sua realização, cumprindo o desejo de aproximação do registo desenhado ao espírito dos originais.
Esta edição, cuidada e com bons acabamentos, que fecha com a biografia de Wenceslau de Moraes em BD, esteve agendado para o ano passado mas, por razões diversas, só agora ficou disponível. E se certamente José Ruy teria gostado muito de a ter segurado nas suas mãos, acaba por constituir uma muito justa e merecida homenagem póstuma.

Lendas Japonesas
José Ruy
Polvo
64 p., 16,90 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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Banda Desenhada portuguesa editada em França

Pedro Brito e João Fazenda são os autores de “Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos”; Obra foi escolhida como o Melhor Álbum Português de 2001, no Festival de BD da Amadora

“Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos”, Melhor Álbum Português de 2001, no Festival de BD da Amadora, foi esta semana editada em França, sob o título “Celle de ma vie, celle de mes rêves”, pela 6 Pieds Sur Terre, uma pequena “editora que lança uma vintena de livros por ano”, explica o seu responsável, Jean-Philippe Garçon.
Um dos best-sellers da Polvo, com 3000 exemplares vendidos – “um caso raríssimo para uma BD independente”, acentua Rui Brito, o editor, que revela que actualmente há “interesse de uma editora polaca neste título” – tem assinatura de Pedro Brito (argumento) e João Fazenda (desenho).
Minúscula gota de água “num universo editorial com excesso de produção”, diz Garçon, que registou em 2007 mais de 4000 títulos de BD, o livro, com “uma tiragem de 1400 exemplares”, foi escolhido “pelo notável trabalho gráfico de Fazenda e pelo humor frio com que Brito aborda as relações muitas vezes duvidosas entre o meio artístico e o seu lado comercial”.
Brito, nascido em 1975, licenciado em Design de comunicação pelo I.A.D.E., “há 12 anos a fazer cinema de animação, com quatro filmes realizados”, recorda a génese da obra: “foi a conjugação de várias ideias soltas que, se desenvolveram e formaram uma história só. Contei-a ao João Fazenda, ele gostou e convidei-o para a desenhar. Ainda bem que o fiz, a história ganhou imenso com isso”. Esse é, aliás, o ponto forte que todas as críticas apontam: o original grafismo, bicromático, “com a cor vermelha que se ajusta ao preto e branco, como um complemento indissociável (…) nalgumas vinhetas decompondo o movimento de uma forma muito original (…) O resultado é genial!”, pode ler-se num site especializado francês.
Brito, também desenhador, relembra que “o conceito e a planificação do livro foram feitos em conjunto; o João vinha sempre com ideias novas, a discussão e partilha de tudo foi bastante importante. Trabalhar com o João foi extremamente gratificante, adorava que voltasse a acontecer”.
Desse trabalho conjunto nasceu “um livro que sabíamos que era arrojado, mas era O Livro que realmente queríamos fazer, sem barreiras nem limitações de qualquer espécie”. Receosos da reacção do público – “pensámos que haveria bastante gente que não gostasse, ou porque o traço era quase esboço ou porque o argumento era quase banal, de situações quotidianas” – ficaram surpresos como “tanta gente se identificou com a história e o trabalho do João”.
Agora, oito anos depois, sente “um certo distanciamento em relação ao livro” que, apesar de tudo, “não mudou nada na minha vida”. Mas, vendo a edição francesa como “um acontecimento um tanto ou quanto distante”, não deixa de referir que ela “foi bem recebida em Angoulême”, e confessa que “pode dar um empurrãozinho, porque o bichinho da BD ainda anda por cá e pode ser que haja uma surpresa a médio prazo”.

[Caixa]

O livro

“Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos” para além de ter um belo título, é um relato com uma expressividade e um realismo poucas vezes vistos entre nós. Como pretexto, a história de um casal de artistas: ela, pintora em busca de mecenas; ele, (candidato a) escritor, em busca de editor para o seu romance, e de inspiração para uma banda desenhada. Inspiração que acaba por encontrar na sua própria vivência. O motivo real desta intensa história de Pedro Brito, simultaneamente sensível e violenta, é uma reflexão sobre a convivência dos casais e a falibilidade das relações, quando a felicidade existente é superada pelos conflitos, criados pela incapacidade de aceitação das diferenças, e trocada pelo desejo de incertas carreiras e pela perseguição de sonhos que, normalmente, não passam disso, embora o autor sugira (sonhando?) o contrário.
Fazenda, complementa o todo, com um traço fino, quase só esboço, com elegantes pinceladas de vermelho que dão cor, volume e substância ao desenho.. O seu traço “inacabado” retrata na perfeição a busca, a insegurança e a incerteza dos protagonistas que perpassa por toda a narrativa, bem como o lado onírico de algumas sequências.


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F. Cleto e Pina

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Alentejanos

Espanhóis, africanos, louras. E alentejanos. Todos eles (e outros mais), por uma razão ou por outra, foram/são alvos do anedotário nacional, muitas vezes por simples transposição das situações alterando os protagonistas, outras criando novas histórias ou modernizando-as numa adaptação aos tempos correntes ou às novas realidades.

Sergei, em “Os compadres” (edição da Polvo), nascidos no seu site, começou por adoptar algumas das anedotas correntes, explorando também os estereótipos comummente associados aos alentejanos (com a preguiça à cabeça), para progressivamente se libertar um pouco, dando vida própria às personagens e tornando-as mais ricas e divertidas.

A crítica do quotidiano, natural numa tira publicada semanalmente num jornal, no caso o “Diário do Alentejo”, desde 2003, é a principal característica dos intervenientes em “Ribanho” (Prime Books), no qual dois alentejanos de gema, Luís Afonso (o argumentista) e Carlos Rico (desenhador e tradutor dos diálogos para o sotaque “alentejanês”) mostram como os tais alentejanos, tantas vezes satirizados e mesmo ridicularizados, são capazes de um olhar crítico, sagaz e cáustico sobre o resto do país (em especial sobre os governantes, comodamente instalados na “longínqua” capital) fazendo-nos, por uma vez (ou muitas, tantas quantas as tiras recolhidas no álbum) rir (não dos mas) com os alentejanos.


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F. Cleto e Pina

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Contar

Christophe Blain, como outros autores da sua geração (Sfar, Guibert…). encara a BD, antes de tudo, como um meio para contar histórias. Isso era já notório em “Le Réducteur de Vitesse”, com que se revelou em 1999, ou em “Isaac, o pirata”, de que a Polvo editou em português três tomos.

E é visível também, agora, em “Gus, #1 – Nathalie” (Dargaud), um western, desconcertante e atípico (no bom sentido), que poderia igualmente ser um conto medieval, actual ou de ficção-científica, pois o seu propósito é divagar sob a forma como os homens se relacionam (ou não…) com as mulheres. Para isso, apresenta-nos Gus, Clem e Gratt, três salteadores (pontualmente xerifes!) bem sucedidos na sua vida de pilhagens, mas insatisfeitos na busca das suas “almas gémeas”.

Numa história sensível mas irónica (que se adivinha) nascida ao correr da pena, que combina habilmente o real com os pensamentos, sentimentos e desejos dos intervenientes, Blain concede-se (e a nós) uma imensa liberdade gráfica, esquecendo questões “clássicas” como as proporções do corpo humano ou a constância da aparência das personagens, para colocar o seu traço simples e nervoso, parco em pormenores mas admiravelmente expressivo, sensual no tratamento das personagens femininas e capaz até de ser evocativo, ao serviço de uma total eficácia narrativa, que prende e carrega o leitor até à última e significativa prancha.


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F. Cleto e Pina

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