Molhar os pés ou mergulhar no abismo

Narrativa experimental e intimista sobre a relação com o mar
Crescimento do mercado possibilita apostas mais diversificadas e obras mais exigentes

O assinalável crescimento do mercado nacional de banda desenhada, para além do fortalecimento dos segmentos dominantes de franco-belga e manga, trouxe também a aposta de editoras que geralmente não se dedicavam a este género narrativo e uma maior diversidade da oferta.
Exemplos disto, são as biografias e as adaptações de obras literárias e também as novelas gráficas, termo que mais não indica do que bandas desenhadas mais longas e/ou de temática mais exigente.
“A Ilha”, recém-editada pela Levoir, é um exemplo da diversidade referida, pelo seu carácter experimental e tom intimista.
Trata-se de uma história contemplativa, com páginas quase sem texto mas em que, em fundo, quase ouvimos ou adivinhamos o ir e vir do mar, as ondas a espraiarem-se na areia ou a sua rebentação nas rochas, o cheiro a maresia, a sensação agradável de molhar os pés ou a tentação do abismo, de caminhar em frente indefinidamente, mar adentro.
Com a acção – ou a ausência dela? – a ter lugar numa pequena ilha isolada, Mayte Alvarado, a autora, reflecte a relação a um tempo próxima, respeitosa e receosa, que os poucos habitantes têm com o mar, que tanto é fonte de vida e subsistência como pode ser carrasco e túmulo.
“O mar tem sempre fome” diz alguém a quem chamam louco – com a loucura provocada pelo mar que, em troca de tudo o mais, lhe levou o filho, deixando em troca a dor da perda, a solidão e até o remorso. Ele é uma das personagens desta história, juntamente com uma rapariga, os pescadores e as crianças, símbolos de tantas comunidades que vivem do mar ou apesar do mar, até este querer ou deixar.
Pela forma como as vinhetas se fundem umas nas outras e em que as páginas abertas, pintadas com cores vivas e planas, que evocam a areia e, essencialmente, o azul do mar, e fogem muitas vezes aos canônes mais tradicionais da narração em quadradinhos, este relato envolvente, sem ter propriamente princípio, meio e fim, espelha momentos da relação do homem com o oceano e cada leitor intuirá dela coisas diferentes, em função da sua interpretação e até da própria relação com o mar, pelo que “A Ilha” convida a visitá-la uma e outra vez…

A Ilha
Mayte Alvarado
Levoir
152 p., 27,90 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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