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Um documentário trágico e chocante

A realidade das “mulheres de conforto” usadas pelos japoneses durante a II Guerra Mundial. Terceira obra da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim publicada em Portugal em pouco mais de meio ano.

Num mercado que continua a dar sinais de crescimento e diversificação, a presença da coreana Keum Suk Gendry-Kim já começa a ser natural; depois de no ano passado nos terem sido propostos “Alexandra Kim” (Levoir) e “A espera” (Iguana), agora, esta última editora sugere “Erva”, mais uma história real, sobre as adolescentes e mulheres que foram utilizadas pelos japoneses como escravas sexuais durante a II Guerra Mundial.
Na sua base, está a sul-coreana Ok-Sun Lee, que no final da vida se tornou activista dos direitos das mulheres. Foi das suas memórias, descobertas em várias conversas, que Gendry-Kim partiu para expor em meio milhar de páginas, traçadas com o seu preto e branco contrastante, um capítulo negro e aberrante da História da humanidade.
Ainda criança, a protagonista foi vendida pelos pais para ajudar num restaurante, mas a realidade veio a revelar-se chocante já que, levada para a China, foi mais uma das “mulheres de conforto” utilizadas pelo elementos do exército nipónico para satisfazerem os seus apetites sexuais – ou a sua bestialidade.
Entremeando as conversas da autora com Ok-Sun, com o desfiar de memórias desta última, cada uma mais trágica do que a anterior, “Erva”, título que remete para a resistência da planta, que pode vergar e ser calcada mas volta a erguer-se, lê-se quase como se de um documentário se tratasse, quer pela sua sólida base histórica e de história pessoal, quer pelo distanciamento que Gendry-Kim coloca na sua narrativa, tornando-a mais custosa uma vez que isso obriga o leitor a criar as suas próprias emoções e sentimentos perante uma realidade para muitos inimaginável.
Situação agravada, pelo menos psicologicamente, quando no final da guerra o Japão foi vencido e teve se submeter às condições dos vencedores, pois aquelas mulheres, as que sobreviveram, quando foram libertadas e regressaram às suas terras, às suas famílias, ansiando por regressar a uma vida tão normal quanto possível, em inúmeros casos foram rejeitadas e banidas por terem ‘servido’ o inimigo durante o conflito…

Erva
Keum Suk Gendry-Kim
Iguana
488 p., 23,95 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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Morris nasceu há 100 anos

Relato biográfico de uma fugitiva da Coreia do Norte
Acontecimentos durante a fuga marcaram a vida da mãe da autora

Em “A Espera” edição recente da Iguana, a coreana Keum Suk Gendry-Kim conta a vida da mãe antes, durante e depois da separação das duas Coreias, após a II Guerra Mundial e a divisão do mundo em dois blocos.
Obviamente, porque parte da narrativa decorre no tempo presente, há em “A Espera” também uma componente autobiográfica, numa exposição contida e de alguma forma catártica da autora, que se utiliza para realçar o momento actual da mãe e a sua relação nem sempre fácil com ela, como reflexo de tudo o que sofreu no momento da divisão da península coreana.
É um relato com diversos saltos temporais, com o presente e o passado a alternarem perante os olhos do leitor, que possui um enquadramento cultural e sociológico para que a narrativa seja mais compreensível e para explicar determinadas opções. Em “A Espera”, vamos acompanhar a mãe da autora quando empreendeu uma longa caminhada, com parcos apoios e sem condições, com o objectivo de abandonar o Norte e fugir para o supostamente paradisíaco Sul, levando consigo praticamente apenas a roupa do corpo e uma bebé às costas, em companhia do marido e do filho mais velho. E de milhares de outros coreanos, num êxodo massivo e desesperado. Mortificada, muitas vezes descrente, num acaso de um percurso atribulado, mais exactamente num gesto tão amoroso e maternal como parar para dar de mamar ao bebé, a mãe de Gendry-Kim acabou por se ver separada do companheiro e do filho, a quem nunca mais voltou a ver. Entre a espera por eles – que se eternizará no tempo – a necessidade de por fim retomar a marcha na expectativa de que estivessem mais à frente e a chegada ao destino, angustiante e pesarosa pela separação, compreendemos como aquele acontecimento marcou aquela mulher que, desde então – ao longo de mais de meio século – viveu sob o fardo de um sentimento de culpa que se reflectiu em tudo o que a vida lhe deu.
Essa é uma das notas mais fortes e distintivas deste romance desenhado com pinceladas de preto e branco, largas e expressivas, manchas e sombras em que Gendry-Kim, com um pudismo assinalável, propõe um relato emotivo em que somos convidados a olhar para pessoas como nós num mundo que, ilusoriamente, tem pouco a ver com o nosso.

A Espera
Keum Suk Gendry-Kim
Iguana
248 p., 20,95 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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Pelo direito ao cabelo ao vento

Obra colectiva assinala um ano do assassinato de Mahsa Amini
Edição ganha actualidade reforçada graças à atribuição do Nobel da Paz à activista iraniana Narges Mhoammadi

Acabado de editar em Portugal pela Iguana, acompanhando o lançamento a nível internacional, um ano após a morte da iraniana Mahsa Amini, espancada pela polícia local por não estar a utilizar correctamente o véu, “Mulher Vida Liberdade” ganha uma nova actualidade devido à recente atribuição do Prémio Nobel da Paz à activista iraniana de direitos humanos Narges Mhoammadi.
Traçado por escritores e artistas iranianos e ocidentais, exibe um retrato multifacetado de uma realidade que, histórica e socialmente, é bem mais complexa do que uma análise ligeira pode fazer entender. Por isso, este livro pede mais do que uma leitura superficial, sendo até aconselhável voltar aleatoriamente a cada um dos relatos para conseguir apreender tudo aquilo que expõem sobre a situação política no Irão e as consequências das imposições do regime para os que lutam por mais liberdades, em geral, e para as mulheres em particular. Porque – e “Mulher Vida Liberdade” também o vinca – a morte de Mahsa Amini desencadeou protestos generalizados independentemente do género.
Marjane Satrapi, autora de “Persepolis” ou “Bordados”, obras poderosas sobre a situação no Irão, coordenou o projecto e assinou a capa deste livro em os textos, da autoria de um politólogo, um jornalista e um historiador, foram ilustrados ou transformados em BD por desenhadores menos conhecidos no Ocidente mas também por nomes consagrados como Catel, Pascal Rabaté, Paco Roca, Lewis Trondheim ou Joann Sfar.
Viveiro pleno de contrastes para leitores como nós, para quem é normal dizer o que pensamos, manifestarmo-nos, discordarmos ou exigirmos mudanças, esta obra revela como qualquer destas atitudes banais aos nossos olhos, no Irão facilmente se transformam numa questão de vida ou de morte. Vida se conseguires escapar, morte se te deixares apanhar.
São relatos emocionais, chocantes em muitos aspectos pela violência pura e subliminar envolvidas, sobre uma realidade que parece impossível na terceira década do século XXI, mas que mostra como o nosso mundo ainda está pleno de contrastes.
E se a par do forte tom de reportagem e documental, existe apesar de tudo uma mensagem de esperança num futuro inevitavelmente melhor, a verdade é que a História faz com que também perpasse o medo de que esse porvir ainda esteja distante.

Mulher Vida Liberdade
Vários autores
Coordenação de Marjane Satrapi
Iguana
288 p., 27,75€


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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Manual de Instruções para a vida em família

Nuno Markl regressa à banda desenhada com narrativa semi-biográfica
Protagonista é o ‘melhor escritor do mundo’… de manuais de electrodomésticos

Julgar alguém por um rótulo é sempre perigoso ou, no mínimo redutor. Alberto, protagonista de “Manual de Instruções”, edição recente da Iguana é, reconhecidamente, o “melhor escritor no seu género”. Se ao apresentar-se assim, cria fundadas expectativas, elas são completamente goradas quando explica a que género se dedica: ‘Manuais de instruções para electrodomésticos’…
Mas, louvado pelo patrão, invejado pela concorrência, Alberto tem como limite o céu… dos manuais. Infelizmente, a sua dedicação à escrita – às obras da sua vida… – afastam-no do que esta tem de bom e importante e o génio das descrições, funcionamento e possíveis avarias, descobre que o seu casamento está danificado e prestes a perder a validade e que desconhece ou conhece muito pouco das rotinas da (bela) esposa e dos dois filhos pequenos…
Pequeno teatro de situações, com elenco limitado, que espelha tantos quotidianos que conhecemos, “Manual de Instruções”, inicialmente argumento para filme não concretizado, foi escrita por Nuno Markl que, no prefácio, a reconhece como uma das suas “histórias mais pessoais, uma reflexão sobre o fim do casamento e a falta de equilíbrio entre trabalhar e viver”, baseada naquilo que ele próprio experienciou a certa altura. Talvez por isso, a par do esperado registo paródico caro a Markl, “Manual de Instruções” assume também um tom sincero e humano, com o absurdo de algumas das soluções – como as amizades com o assaltante ou a prostituta – a contrastarem com o desejo sincero de mudar de vida e de objectivos que a partir de certo ponto Alberto assume.
Ao lado de Markl, surge Miguel Jorge, de quem conhecíamos relatos realistas de cariz histórico, que aqui assume um traço caricatural, fino e detalhado, que se abusa um pouco da repetição de poses e expressões, consegue conjugar e dar expressão aos seus pontos fortes: o humor, a ternura e a humanidade de situações e personagens.
História bem ritmada, com uma planificação tradicional mas variada, que em determinadas cenas marca os tempos em função do número de vinhetas por página, este livro é, afinal, uma chamada de atenção para aquilo que valorizamos e para as perdas que as nossas escolhas acarretam, porque a vida verdadeira, aquela do dia-a-dia, não traz manual de instruções…

Manual de Instruções
Nuno Markl e Miguel Jorge
Iguana
128 p., 18,85 €


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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