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Crónicas do quotidiano rural

Armazém Central
1. Marie
2. Serge
Régis Loisel e Jean-Louis Tripp (argumento e desenho)
Edições ASA
14,00 €

Autores completos, normalmente responsáveis por argumento, planificação, desenho a lápis, desenho a tinta e aplicação da cor nas suas obras, embora na BD franco-belga a diversificação de funções seja cada vez mais frequente, Régis Loisel – conhecido em Portugal por “Em Busca do Pássaro do Tempo” (Meribérica/Líber) e por uma versão extremamente pessoal do Peter Pan, de Barrie, (na Bertrand e na Booktree) – e Jean-Louis Tripp, até há pouco inédito entre nós, franceses, a viver em Montreal, no Canadá, partilhando um atelier, descobriram gostos complementares: enquanto Loisel vibra com a a planificação e o traço a lápis, Tripp prefere a passagem a tinta, nascendo, assim, uma improvável colaboração, consubstanciada em dois volumes (o terceiro sai em França no próximo mês) genericamente intitulados “Armazém Central”.
Ambientada no Canadá, num Canadá profundo, que os acolheu, é uma crónica do quotidiano rural de uma pequena aldeia, entre as duas Guerras Mundiais, que tem um estranho começo: a morte de Félix, dono da única loja – o tal armazém central – do lugar, que vai ficar como testemunha (quase) silenciosa, do que se vai passando em Notre-Dame-des-Lacs.
Esta crónica quotidiana onde (aparentemente) nada acontece, mas cheia de vida, de vidas, vai-se fazendo de pequenos nadas desligados, que no seu todo retratam a vivência naquele lugar, naquela época, e que nós, leitores, vamos apanhando aqui e ali enquanto acompanhamos as deambulações dos diversos habitantes pela povoação. Isto porque, se Marie, a viúva de Félix, a eterna estrangeira, tímida mas prestável, de uma enorme coragem, surge com algum destaque – é ela que se emancipa e se torna gerente do armazém, que conduz o seu camião, que acolhe e sonha acordada com Serge – a verdade é que é a comunidade no seu todo que protagoniza a obra. Comunidade inquieta pela morte do único comerciante – indispensável mas pouco estimado -, pela chegada de um novo pároco (um pouco) progressista (demais para o gosto local), pelo pateta do sítio, pelas beatas coscuvilheiras, pelo cego que viu o mundo, pelo herético e utópico Noel e por uns quantos mais, caracterizados e retratados pelos pequenos gestos habituais, que o isolamento transfigura: a troca de receitas, os mexericos e desconfianças, a cooperação para o bem comum, as traquinices das crianças, os ritos iniciáticos que marcam o crescimento – os primeiros amores, o acompanhamento dos homens no trabalho – a matança do porco, as festas tradicionais comunitárias… E, no segundo tomo, pela chegada de um estranho – serge – culto e viajado, para mais cozinheiro, que acrescenta à narrativa uma aura poética, fruto de sonhos vividos, de utopias concretizadas, e que leva pela primeira vez o brilho aos olhos de Marie…
Uma comunidade retratada com ternura mas autenticidade, de forma viva e intensa, pelo traço semi-realista de Loisel e Tripp, generoso nos volumes, expressivo e dinâmico, rico de pormenores, servido pelas cores quentes e afáveis de François Lapierre, traço que se revela no seu todo especialmente nas sequências mudas – mas extremamente eloquentes – onde o mais ínfimo pormenor ganha vida, mostrando-nos o passar do tempo – das estações – a morte de um recém-nascido, a solidão de Marie, as desconfianças, as músicas e danças, de uma forma notável.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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