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Regresso ao Armazém Central

Aos poucos, as edições Asa começam a retomar a publicação de algumas séries que pareciam ter ficado pelo caminho. A última a ter essa sorte, foi “Armazém Central”, de Loisel e Tripp, de que acaba de sair o terceiro volume. A série, que Loisel, numa entrevista, define como “uma comédia à Frank Cappra (…) com um ambiente próximo das pinturas de Norman Rockwell”, passa-se em Notre-Dame-des-Lacs, uma aldeia perdida no Quebeque dos anos 20 do século XX, cujo dia-a-dia vai ser alterado quando a jovem viúva Marie Ducharme decide tomar conta sozinha do Armazém Central que era do seu falecido marido.
Curiosamente, a série acabou por ser mais notícia em França pelo facto de Loisel e Tripp trabalharem o desenho a meias, com Loisel a encarregar-se do desenho a lápis e Tripp a passar a tinta. Algo perfeitamente vulgar nos comics das grandes editoras americanas, onde o mais habitual é haver uma clara separação de tarefas, com um argumentista, um desenhador para o lápis e outro para a arte-final (passagem a tinta), um colorista e um responsável pela legendagem, muitas vezes com cada um numa cidade diferente, cabendo ao editor coordenar toda essa gente, mas que para a BD franco-belga é suficientemente exótico para justificar o destaque que a editora dá ao facto, incluindo duas páginas no início do álbum em que se explica o peculiar (para os franceses) método de trabalho.

Na origem desta colaboração em moldes poucos habituais para a BD franco-belga, está o facto dos dois autores partilharem o mesmo Atelier em Montreal, no Canadá, o que lhes permitiu descobrir que eram complementares, ou nas palavras de Tripp, que “um desenhador virtual, que fosse uma mistura dos dois, desenharia com muito mais prazer, sem esforço”. Com efeito, Loisel adora o desenho a lápis e aborrece-se mortalmente na fase de passar a tinta, enquanto que Tripp é exactamente ao contrário e, ao conseguirem que cada um faça apenas aquilo que mais gosta, conseguem produzir a um ritmo nada habitual no mercado francês, de tal modo que em pouco mais de três anos já são cinco os álbuns publicados nesta série, inicialmente pensada como uma trilogia e que, até ver, irá ter pelo menos seis álbuns…

Se em termos de ambiente a coisa funciona muito bem, com os autores a traçarem um conseguido retrato nostálgico da vida no campo nessa época, a verdade é que o ritmo narrativo é contemplativo e bastante lento, apesar das coisas aquecerem um pouco neste 3º volume, com os homens a regressarem à aldeia e a reagirem mal à presença de Serge Brouilet, um estrangeiro vindo de Montreal que abriu um restaurante nas traseiras do Armazém Central. E se a tensão que este novo elemento introduz na relação de Marie com o resto da aldeia, está muito bem explorada, sequências como a do aniversário de Gaetan, o típico tolo da aldeia, em nada contribuem para o avançar da história, nem funcionam tão bem como as brincadeiras entre um cachorro, um gatito e um pato que decorrem em segundo plano, em paralelo à acção principal.

(“Armazém Central 3: Os Homens, de Loisel e Tripp, Edições Asa, 15,50€)

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Crónicas do quotidiano rural

Armazém Central
1. Marie
2. Serge
Régis Loisel e Jean-Louis Tripp (argumento e desenho)
Edições ASA
14,00 €

Autores completos, normalmente responsáveis por argumento, planificação, desenho a lápis, desenho a tinta e aplicação da cor nas suas obras, embora na BD franco-belga a diversificação de funções seja cada vez mais frequente, Régis Loisel – conhecido em Portugal por “Em Busca do Pássaro do Tempo” (Meribérica/Líber) e por uma versão extremamente pessoal do Peter Pan, de Barrie, (na Bertrand e na Booktree) – e Jean-Louis Tripp, até há pouco inédito entre nós, franceses, a viver em Montreal, no Canadá, partilhando um atelier, descobriram gostos complementares: enquanto Loisel vibra com a a planificação e o traço a lápis, Tripp prefere a passagem a tinta, nascendo, assim, uma improvável colaboração, consubstanciada em dois volumes (o terceiro sai em França no próximo mês) genericamente intitulados “Armazém Central”.
Ambientada no Canadá, num Canadá profundo, que os acolheu, é uma crónica do quotidiano rural de uma pequena aldeia, entre as duas Guerras Mundiais, que tem um estranho começo: a morte de Félix, dono da única loja – o tal armazém central – do lugar, que vai ficar como testemunha (quase) silenciosa, do que se vai passando em Notre-Dame-des-Lacs.
Esta crónica quotidiana onde (aparentemente) nada acontece, mas cheia de vida, de vidas, vai-se fazendo de pequenos nadas desligados, que no seu todo retratam a vivência naquele lugar, naquela época, e que nós, leitores, vamos apanhando aqui e ali enquanto acompanhamos as deambulações dos diversos habitantes pela povoação. Isto porque, se Marie, a viúva de Félix, a eterna estrangeira, tímida mas prestável, de uma enorme coragem, surge com algum destaque – é ela que se emancipa e se torna gerente do armazém, que conduz o seu camião, que acolhe e sonha acordada com Serge – a verdade é que é a comunidade no seu todo que protagoniza a obra. Comunidade inquieta pela morte do único comerciante – indispensável mas pouco estimado -, pela chegada de um novo pároco (um pouco) progressista (demais para o gosto local), pelo pateta do sítio, pelas beatas coscuvilheiras, pelo cego que viu o mundo, pelo herético e utópico Noel e por uns quantos mais, caracterizados e retratados pelos pequenos gestos habituais, que o isolamento transfigura: a troca de receitas, os mexericos e desconfianças, a cooperação para o bem comum, as traquinices das crianças, os ritos iniciáticos que marcam o crescimento – os primeiros amores, o acompanhamento dos homens no trabalho – a matança do porco, as festas tradicionais comunitárias… E, no segundo tomo, pela chegada de um estranho – serge – culto e viajado, para mais cozinheiro, que acrescenta à narrativa uma aura poética, fruto de sonhos vividos, de utopias concretizadas, e que leva pela primeira vez o brilho aos olhos de Marie…
Uma comunidade retratada com ternura mas autenticidade, de forma viva e intensa, pelo traço semi-realista de Loisel e Tripp, generoso nos volumes, expressivo e dinâmico, rico de pormenores, servido pelas cores quentes e afáveis de François Lapierre, traço que se revela no seu todo especialmente nas sequências mudas – mas extremamente eloquentes – onde o mais ínfimo pormenor ganha vida, mostrando-nos o passar do tempo – das estações – a morte de um recém-nascido, a solidão de Marie, as desconfianças, as músicas e danças, de uma forma notável.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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