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Quem nos guarda dos Guardiões?

Estreia hoje em Portugal “Os Guardiões”, uma conseguida adaptação de “Watchmen”, uma das bandas desenhadas mais marcantes dos anos 80, e um dos filmes cuja concretização mais polémica provocou.

Desde logo pela dúzia de anos que levou a concretizar, com sucessivos avanços, recuos e suspensões, até à hipótese de não exibição, já este ano, devido a um contencioso entre a Warner, que o produziu, e a Fox, que tinha os direitos de distribuição.
Baseado numa BD de culto dos anos 80 (ver caixa), a acção de “Watchmen” decorre maioritariamente na actualidade de então (1985), num mundo que os super-heróis mudaram – vencendo no Vietname, mantendo Nixon no poder, com a guerra fria no auge e um confronto nuclear iminente – mas de onde foram banidos por uma lei de 1977, odiados pelos concidadãos que era suposto guardarem.
O despoletar da acção é o assassínio do Comediante (Jeffrey Dean Morgan) e atentados contra outros “Watchmen”, o Dr. Manhattan (Billy Crudup), Ozymandias (Matthew Goode) e Rorschach (num excelente desempenho de Jackie Earle Haley), o que leva este último, o Coruja Nocturna II (Patrick Wilson) e a Espectro de Seda II (Malin Ackerman), a investigarem quem persegue os antigos heróis mascarados. Apesar de muitos nomes sonantes terem sido anunciados para o elenco, a escolha de actores de segunda linha (em muito bom nível no filme) terá sido um trunfo, já que não obrigou a destaques especiais e permitiu maior fidelidade ao original.
Essa foi a opção do realizador Zack Snyder (responsável pela menos interessante adaptação da BD “300”, de Frank Miller), e dos argumentistas David Hayter e Alex Tse, que seguiram de muito perto os diálogos e a encenação da BD, concretizando a adaptação que muitos julgavam impossível. O próprio Alan Moore, que mais uma vez vetou a inclusão do seu nome nos créditos do filme, elogiou-a, considerando-a “a coisa mais próxima de um filme de Watchmen possível”. Isto apesar de cortes inevitáveis (entre os quais a história paralela “Tales of the Black Freighter”, que sairá sob a forma de animação, como extra, no DVD do filme) e algumas modificações, a principal das quais o final, diferente do da história aos quadradinhos, mas que não tem decepcionado a maioria dos fãs que já visionaram a película, perfeitamente rendidos à forma como Snyder (re)construiu “Watchmen”, ao longo de pouco mais de duas horas e meia. Excepções, são aqueles que queriam uma revolução (hoje impossível) igual à que o livro provocou há 20 anos.
Fiel à BD, o filme abre com a sensacional cena do assassinato do Comediante, seguindo-se uma (re)montagem da historia do século XX, à luz da actuação dos primeiros justiceiros mascarados e ao som de Bob Dylan, progredindo depois com múltiplos flashbacks que revelam cada um dos protagonistas e o seu relacionamento, numa dissertação sobre como obter e manter o poder, em que os fins justificam os meios.
A fidelidade ao original agrega-lhe a mesma fraqueza da BD: vai desiludir quem procura um filme comum de super-heróis, com muita acção e movimento (apesar de algumas cenas espectaculares), pois esta é uma película de (bons) diálogos, com um ritmo e uma estrutura pouco convencionais para cinema, que exige atenção e interpretação do espectador.

[Caixa]

Uma BD notável

Em 1986, “Watchmen”, juntamente com “The Dark Night Returns”, de Frank Miller, demonstrou que as histórias de super-heróis também podiam cativar leitores adultos e exigentes e, depois delas, nada ficou igual.
Esta é uma BD “sobre” super-heróis que Alan Moore (“V de Vingança”, “Liga dos Cavalheiros Extraordinários”, …) mostra envelhecidos, barrigudos e com problemas profundos de seres profundamente humanos: neuróticos, conflituosos, alcoólicos, pervertidos, racistas; em suma, desajustados que ultrapassavam (esqueciam?) as suas fraquezas saindo “de casa mascarados às 3 da manhã para fazer coisas estúpidas”, desapontados “com aquilo em que se tornou o sonho americano” e acreditando que contribuíam para um país melhor.
Esta desconstrução politizada dos estereótipos de super-heróis, aclamada dentro e fora do meio da BD – a “Time” considerou-a uma das 100 obras mais importantes desde 1923; recebeu um prémio “Hugo” –, onde se multiplicam referências (escritas, visuais ou conceptuais) literárias, históricas ou científicas, para além da trama em si, é também notável pela forma como Moore explora de forma superior a relação imagem/texto, com narrativas simultâneas na mesma prancha/vinheta, pela sequenciação “animada” de momentos marcantes ou incluindo pormenores cuja importância vai crescendo e obrigam a várias leituras. Ou ainda pela subversão do conceito de tempo no tomo #4 ou pela “aterradora simetria” das vinhetas no #5. E, claro, pelo exemplar trabalho gráfico de Dave Gibbons, com um traço limpo, contido e expressivo, adaptado às diferentes épocas em que a acção decorre.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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