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Clássicos da Literatura renascem aos quadradinhos

Obra integral de Agatha Christie começa a ser editada em BD no próximo mês; Editoras francesas apostam em adaptações feitas por autores conhecidos; Shakespera em manga é aposta para o leitores mais jovens; Clássicos portugueses revisitados em BD no Brasil

A obra integral de Agatha Christie vai ser integralmente editada em banda desenhada pela editora britânica Harper Collins. A “Agatha Christie Comic Strip Edition” terá um total de 83 livros que ficarão disponíveis até ao final de 2008, chegando os 12 primeiros, entre os quais os conhecidos “Crime no Expresso do Oriente” ou “Morte no Nilo”, às livrarias no próximo mês. As adaptações estão a cargo do romancista francês François Riviére que, em BD, assinou nomeadamente “O encontro em Seven Oaks”, “O Dossier Harding” e “À Procura de Sir Malcolm” (edição portuguesa da Meribérica/Líber), surgindo no desenho, entre outros, Frank Leclerq, Marc Piskic, Solidor e Laurence Suhner.

Mas este não é caso único no que toca à apetência da BD pela literatura. Em França, por exemplo, a Delcourt criou há poucos meses a colecção “Ex-libris”, dirigida por Jean David Morvan, argumentista de Spirou e Sillage, onde já foram editados em BD “Oliver Twist”, de Dickens, “Frankenstein”, de Mary Shelley, “Os três Mosqueteiros”, de Dumas ou “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe. Como premissas, a colecção apresenta “um profundo respeito pelas obras”, a sua recriação “por autores que pretendam revisitar um dos seus livros de cabeceira” e “adaptações fiéis mas personalizadas”. Longe vão as versões maçudas e maçadoras de tempos idos que, mais do que adaptações em BD eram obras (mal) ilustradas, o que permite, num segundo passo obras como “Cidade de vidro” (Edições ASA), em que Paul Karasik e David Mazzucchelli recriaram graficamente de forma magistral um texto quase hermético de Paul Auster, “Fagin, o judeu” (Gradiva), em que Will Eisner desmonta a visão estereotipada dada dos judeus na versão original de “Oliver Twist”, recontando-o sob o ponto de vista de Fagin, o vilão, ou “Long John Silver” (Glénat/Futuropolis), de Dorison e Lauffray, que, numa variação curiosa, exploram as (prováveis) aventuras do pirata de “A Ilha do Tesouro”, de Stevenson.

Ainda em França, onde a Casterman e a Soleil avançam também neste campo, é incontornável o exemplo de Jacques Tardi, com uma ligação de longa data a ligação aos policiais de Léo Mallet, que lhe permitem desenhar a sua Paris natal por quem nutre uma verdadeira paixão.

Entretanto, do outro lado do oceano, a 9ª arte é igualmente utilizada para fazer a (re)descoberta da literatura. E uma das editoras que nisso aposta é a Marvel, conhecida pelos seus super-heróis, para quem Roy Thomas, um veterano dos comics, adaptou “O último dos moicanos”, de Fenimore Cooper, “A Ilha do tesouro”, de Stevenson e “O Homem da Máscara de Ferro”, entregando os desenhos a Hugo Petrus, Mario Gully e Steve Kurth.

Neste país, e também em Inglaterra, em finais do ano passado, duas editoras, respectivamente a John Wiley and Sons, especializada em livros técnicos, e a Self Made Hero, divulgaram, quase em simultâneo, a aposta em obras de Shakespeare (“Hamlet”, “Romeu e Julieta”, “Macbeth”, etc.) aos quadradinhos, mas em estilo… manga (bd japonesa), tentando ir ao encontro das preferências actuais das camadas jovens e do público feminino.

Em Portugal, esta prática foi corrente entre os anos 30 e 60 do século passado, quando a censura a isso obrigava os autores, podendo-se citar as adaptações que Fernando Bento fez de romances de Júlio Verne, a “Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, revisitada por José Ruy ou “O Caminho do Oriente”, em que Raúl Correia e E. T. Coelho recontam a viagem de Vasco da Gama vista pelos olhos de um miúdo. Em tempos mais recentes Filipe Abranches e Diniz Conefrey, beberam nas obras de Raúl Brandão e Herberto Hélder (ver caixa). E no ano passado, no Brasil, os clássicos da literatura lusa – Camões e Eça – inspiraram os “quadrinhos” de Lailson Cavalcanti de Holanda (ver caixa) e a Marcatti (ver texto à parte).

[Caixa]

Saber Mais

Arquipélagos
Diniz Conefrey
ÍmanEdições, 2001

A partir de dois textos de Herberto Hélder, (“Os Passos em Volta”, de 1963, e “Photomaton &icom”, de 1979), Diniz Conefrey constrói uma obra cromaticamente diversificada e forte, dando visibilidade à intensa carga poética do original.

O diário de K.
Filipe Abranches
Polvo, 2001

Partindo de “A morte do palhaço”, de Raúl Brandão”, Abranches, numa das suas obras mais conseguidas, brilhante no seu preto e branco esquemático, pejado de imagens invulgarmente fortes, recria graficamente a angústia, o medo e a solidão do protagonista perante a morte.

Lusíadas 2500
Lailson Cavalcanti de Holanda
Companhia Editora Nacional/IBEP (Brasil), 2006

Utilização do texto integral de “Os Lusíadas,” de Luís de Camões, “numa encenação futurista, transposta para um outro meio – a Arte Sequencial – onde a narrativa gráfica complementa a narrativa literária”.

“A Relíquia” de Marcatti

Lançada em Julho no Brasil, “A Relíquia” (Conrad) é exemplo de uma adaptação bem conseguida. O que à partida podia ser posto em causa, dado o tom escatológico das obras anteriores de Marcatti, autor underground brasileiro, nascido em 1962, que fez o que deve ser feito numa adaptação: interiorizou o espírito do romance de Eça e o seu peculiar sentido de humor, na sua crítica exacerbada à Igreja Católica e aos seus fiéis fanáticos, transpondo-os depois para a nova linguagem. A opção de manter “a estrutura da história original” contribui para a consistência do livro, bem como a utilização, nos textos, de “uma mistura de coloquialidade e erudição para facilitar a leitura sem perder o tom clássico da obra”.

Com eles, e apesar do seu traço caricatural, recria em “quadrinhos” o clima tenso e opressivo que Eça deu à sua narrativa, e transmite o estado de prostração e impotência que Raposão, o boémio sobrinho da beata Titi, sente face à rédea curtíssima com que ela o mantém. Paradoxalmente, é o seu traço caricatural, caracterizado por personagens de olhos vivos e grandes narizes e corpos de inusitada mobilidade, o outro trunfo do livro, pois a sua vivacidade e dinamismo contrabalançam o tom mais pausado do texto, marcando o ritmo da obra e expressando à saciedade os diversos estados de espírito, mostrando sentir-se como peixe na água na representação das cenas mais ousadas, divertidas caricaturas que surgem como oásis na vida de Raposão e como aliviadoras da tensão na leitura do livro, bem recebida pela crítica brasileira, e que Marcatti faz questão de apresentar como “a sua Relíquia”.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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Quando a BD reinventa a literatura

Fagin, o judeu
Will Eisner
Gradiva
12,00€
128 pp.

E de repente, sem muito bem se saber porquê, a banda desenhada volta a descobrir os clássicos da literatura. Quer no mercado franco-belga, onde editoras como a Delcourt (ver texto ao lado), a Soleil, a Casterman e a Glénat estão a lançar títulos ou colecções dedicada às suas adaptações aos quadradinhos, quer nos EUA, onde a Marvel, detentora do Homem-Aranha ou do Quarteto Fantástico, anunciou também uma colecção com as mesmas premissas. Ou até no Brasil, onde a Conrad acaba de editar a (re)leitura que Marcati fez de “A Relíquia” de Eça de Queiroz. Mas estas adaptações não se anunciam como as maçudas e maçadoras versões de tempos idos, que nem BD eram, quando desenhadores anódinos ilustraram (mal) os textos integrais; hoje, elas estão entregues a autores de créditos firmados, que as escolheram como projectos pessoais em que se empenharam, transmitindo através de uma forma de expressão diversa o espírito da obra original e os sentimentos e as emoções que a sua leitura lhes proporcionou.
Marcando uma relação diferente entre a BD e a Literatura, surgem “Long John Silver #1”, de Dorison e Laufray (Glénat/Futuropolis), homenagem a “A Ilha do Tesouro”, de Stevenson, que explora as eventuais aventuras daquele pirata, ou “Fagin, o judeu”, de Will Eisner.
Como pressuposto, Eisner, nesta obra da velhice (data de 2003, tinha o grande mestre norte-americano já 86 anos), pretende desmontar a visão estereotipada dada dos judeus na versão original do romance clássico de Charles Dickens, “Oliver Twist”. Para isso, não (re)conta aos quadradinhos aquele drama vitoriano, mas sim a vida (inventada…) do seu vilão, Fagin (“o judeu”), mas não para o absolver dos crimes que cometeu nem sequer para o justificar; divergindo de Dickens, traça um retrato díspar de Fagin, mostrando-o não como a incarnação do mal mas como um ser humano como outro qualquer, com dúvidas, contradições e incertezas, empurrado para o crime pelas vicissitudes de uma vida que lhe foi por demais madrasta, equiparável, afinal, ao retrato delicodoce que Dickens nos deixou de Oliver Twist, com o senão de que a Fagin a fortuna nunca sorriu… ou sorriu demasiado tarde.
Para isso, aproveita a história base, num interessante diálogo com a literatura, para fazer um retrato expressivo da opressiva Londres vitoriana onde ela decorre e para onde transporta o leitor, das vielas lúgubres e esconsas às ricas mansões, através da riqueza, precisão e expressividade do seu traço, aqui servido por tons sépia, que nada retiram da força dos jogos de luz e sombra em que se mostra mais uma vez mestre incontestado, bem como no domínio do ritmo narrativo marcado à custa da forma como compõe as pranchas, construindo uma narrativa forte e bem estruturada através da qual defende o seu ponto de vista e tenta suavizar a imagem exageradamente anti-semita que o texto original de Dickens transmite, mesmo que involuntariamente.
E constrói, assim, uma obra de crítica social e de costumes e também histórica, na qual contextualiza a presença judaica numa Londres tolerante e liberal mas fechada, mostrando como os judeus da Europa Central (os asquenazitas, judeus de segunda, atrás dos (mais ricos) judeus ibéricos – sefarditas), eram empurrados para vidas feitas de esquemas e expedientes nada honestos, que estiveram ma origem da imagem estereotipada dos judeus, ainda hoje comum.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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