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Dono do seu próprio destino

Hernán Cortés, conquistador ambicioso e estratega refinado
O contraste entre duas civilizações em mais um volume da colecção “Descobridores”

A existência de um verdadeiro mercado editorial e, por consequência, de uma verdadeira indústria de banda desenhada (no melhor sentido do termo), para lá da diversificação permite também a especialização em segmentos específicos.
É o caso, por exemplo, das biografias históricas que, tendo por base numa sólida pesquisa que garante a veracidade da informação disponibilizada, proporcionam bandas desenhadas na completa acepção do termo.
No catálogo da francesa Glénat existe um bom número dessas propostas e a Gradiva tem ‘pescado’ nele de forma regular e assertiva títulos mais adequados ao mercado português, dividindo-os por duas coleções: “Eles fizeram História”, onde já pudemos ler sobre Mao, Churchill ou Estaline; e esta “Descobridores”, por onde já passaram Marco Polo, Darwin ou Fernão de Magalhães e onde surge agora “Cortés 1/2: A guerra de duas faces”, dedicado a um dos conquistadores espanhóis que desbravaram o então chamado Novo Mundo para a coroa do país vizinho – e para si próprio – movendo-se com habilidade junto dos seus concidadãos e aproveitando com mestria as guerras internas que grassavam no território.
A a história arranca, em 1492 – ao mesmo tempo que Colombo chegava à América! – quando um muito jovem Cortés, em perigo de vida, desafiando ostensivamente os santos cristãos, se compromete a uma peregrinação depois de… cumprir o seu destino!
Esse destino e o percurso que o levará até lá, vai ser-nos contado em paralelo com o do imperador asteca Montezuma, o que permite uma convincente reconstituição histórica de ambas as civilizações, num relato assente num traço semi-caricatural pouco comum neste registo, tal como a ousadia de algumas cenas mais sensuais ou a violência explícita de alguns confrontos. Numa trama assente em intrigas, guerras – pelo poder e pelas riquezas – e pontuada por uma componente mística e pela forte relação de Cortés com a cativa e amante Leonor, vamos descobrindo o retrato de um homem que foi um conquistador ambicioso e um estratega refinado e que merece ser conhecido hoje, pelo modo como se destacou dos seus congéneres e no seu tempo, contra os poderes instituídos por princípio, mas usando-os quando lhe eram proveitosos, e que via como suprema façanha ser dono do seu próprio destino.

Cortês 1/2: A guerra de duas faces
Christian Chavassieux e Cédric Férnandez
Gradiva
64 p., 20,99€


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F. Cleto e Pina

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O homem mais inteligente do mundo

Richard Feynman: músico, arrombador de cofres, PrémioNobel
Obra em BD transmite com fluidez vida exuberante e complexa

Um dos melhores exemplos do potencial que a banda desenhada tem, é a forma como, em tempos recentes, tem abordado duas temáticas que durante anos foram marginalizadas pelos seus leitores: a adaptação de romances e a biografia.
E tem-no feito, não enumerando dados biográficos à exaustão ou ilustrando longos excertos de obras, mas apostando nas virtudes da narrativa sequencial, no equilibro entre texto e desenho e na noção fundamental da interpretação pelo leitor do espaço branco entre as vinhetas.
“Feynman”, edição recente da Gradiva, exemplifica-o de forma conseguida na evocação da vida de uma personalidades de eleição, Richard P. Feynman (1918-1988) que, para além de ter sido músico, desenhador, arrombador de cofres e contador de histórias, trabalhou no desenvolvimento da bomba atómica lançada em Hiroshima, foi laureado com o Prémio Nobel da Física, inovou no domínio da Electrodinâmica Quântica e fez parte da equipa que investigou as origens da explosão do vaivém Challenger.
A sua vida plena, sempre atento às pequenas coisas que, em conjunto, originam os grandes fenómenos, e apostado em falar sobre eles de forma a torná-los simples e acessíveis ao maior número, é o tema deste romance gráfico com quase três centenas de pranchas.
Narrado na primeira pessoa, revela uma invulgar fluidez, tendo em conta a imensa quantidade de informação transmitida e também a enorme complexidade de muita dela, conseguindo seduzir o leitor e levá-lo página após página na peugada de um homem extremamente inteligentea.
O traço simples, mas dinâmico e expressivo, uma boa utilização da cor para evitar a queda na monotonia na sucessão das páginas e, principalmente, o recurso a diálogos equilibrados, assertivos e estimulantes, com o todo combinado num relato ritmado que nos deixa recorrentemente em suspenso sobre o que se seguirá, mesmo tratando-se de uma biografia, fazem deste um livro a ler de forma apaixonada, sim, mas também uma obra sobre um homem exuberante, que ao contrário do que assevera o ditado, tinha muito de sábio e muito de louco, e que nos leva a pensar e reflectir sobre a simplicidade dos fenómenos complexos que nos rodeiam e gerem o nosso mundo.

Feynman
Jim Ottaviani, Lelland Myrick e Hilary Sycamore
Gradiva
272 p., 25,50 €


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F. Cleto e Pina

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O sagrado e o profano perigosamente próximos

Umberto Eco e Milo Manara reunidos na versão em BD de“ O Nome da Rosa”
Quase com 80 anos, o ilustrador italiano continua a ser um mestre do desenho e da composição

“O Nome da Rosa” é uma das surpresas editoriais do ano, e não só em Portugal, onde a Gradiva acompanhou a edição original, devido à junção de dois nomes grandes da narrativa, Umberto Eco, da literatura, e Milo Manara, da banda desenhada. A uni-los, surge o emblemático romance de Eco, publicado pela primeira vez em 1980, que Manara apresenta na sua versão aos quadradinhos.
Escolha inesperada, pode dizer-se, pela fortíssima predominância masculina nos protagonistas e figurantes, uma vez que o ilustrador italiano é mais conhecido pelas suas obras eróticas e pelas belas e sensuais mulheres que nelas sempre desenhou, mas é uma opção em linha com a última proposta de Manar, a biografia de “Caravaggio” (edição Arte de Autor).
Se adaptar um romance em BD nunca é fácil, “O Nome da Rosa” tinha como contra o peso das suas palavras e os diálogos com muitos frases em latim e isso reflecte-se de alguma forma na versão desenhada, com algumas páginas sobrecarregadas de balões para situar o leitor no âmago da intriga. Mas se este relato pode ser classificado como um romance policial no século XIV, centrado numa abadia beneditina isolada no topo de uma montanha, onde os cadáveres começam a multiplicar-se, a verdade é que a investigação levada a cabo pelo inquisidor frei William de Baskerville, vai bem além disso, na forma como é contextualizada histórica e religiosamente a acção que decorre sob a sombra ameaçadora da Inquisição, pela ironia com que que Eco aborda a questão da teoria versus a prática na religião, e ainda pela sólida caracterização dos intervenientes.
Graficamente, a obra assenta em três registos diferentes, consoante o momento da narrativa apresentado e, se a divisão da prancha em vinhetas se apresenta quase sempre demasiado rígida, é quando se liberta desse espartilho que Manara mostra que, quase com 80 anos, continua a ser um mestre na representação do ser humano e na composição de sequências que ficam na retina pela sua beleza plástica.
No final do primeiro dos dois volumes previstos, “O Nome da Rosa” de Milo Manara deixa o leitor em suspenso, com a incerteza de dever atribuir as mortes a desígnios divinos ou à interpretação destes pelos sempre falíveis seres humanos.

O Nome da Rosa I
Milo Manara segundo Umberto Eco
Gradiva
80 p., 24,50 €


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F. Cleto e Pina

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O Oeste ao ritmo de um tique-taque

Dois séculos da conquista do Oeste evocados em histórias curtas
Dezasseis autores de referência dão corpo a um projecto de Tiburce Oger

Dos tempos dos confrontos entre franceses e britânicos até às vésperas da II Guerra Mundial, “Go West Young Man”, acabado de editar em português pela Gradiva, traça uma história do Oeste norte-americano ao ritmo do tique-taque de um relógio de ouro que vai passando de mão em mão. Na verdade, este álbum, que assenta numa estrutura não original mas poucas vezes utilizada desta forma, é uma colectânea de histórias curtas que vão saltitando no tempo ao longo dos quase dois séculos que o livro abarca, unidas pelo tal relógio cujo proprietário, protagonista de um único conto, mas muitas vezes referenciado (no)s seguinte(s), vai mudando, quase sempre por razões pontuadas pela violência que associamos facilmente aos tempos da sangrenta conquista do Oeste selvagem.
Inicialmente oferecido por uma esposa a um oficial britânico, passaria pelas mãos de homens e mulheres, adultos e crianças, brancos, negros ou pele-vermelhas, pobres e mais abonados, gente com formação ou sem ela, personalidades de alguma importância, lendas do velho oeste ou gente anónima, tendo todos eles, a determinada altura, a possibilidade de terem como seu o aparelho usado para conhecer as horas e de pertencerem assim a uma longa mas involuntária cadeia humana.
A vida como a morte, a solidariedade como o desprezo, o respeito como o insulto, situações banais do quotidiano, assaltos, vinganças, emboscadas ou tiroteios são os inevitáveis condimentos de um conjunto de histórias, que até podem ser lidas de forma isolada e primam pela diversidade e pelo inesperado, mas que, apesar disso, ostentam uma coerência e uma continuidade narrativa que deve ser realçada.
Projecto de Tiburce Oger, argumentista e desenhador francês, apresenta também como particularidade o facto de cada um dos dezasseis relatos estar entregue a um ilustrador diferente, contando-se entre eles nomes de referência na banda desenhada franco-belga bem conhecidos dos leitores portugueses como Michel Blanc-Dumont, Ralph Meyer, François Boucq, Michel e Corentin Rouge, Christian Rossi ou Marini (que assina a capa).
Se na prancha de abertura alguém refere que “só Deus sabe as histórias que [o relógio] poderia contar”, agora, nós também as podemos conhecer.

Go West young man
Tiburce Oger e vários desenhadores
Gradiva
112 p., 27,50 €


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F. Cleto e Pina

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A irresistível atracção pelo abismo

Jean-Yves Delitte é garante de rigor histórico
Colecção “As Grandes Batalhas Navais” abre com Jutlândia, confronto decisivo da Primeira Grande Guerra

Pode soar estranho, mas possivelmente não é mais do que reflexo da atracção irresistível do ser humano pelo abismo, mas há temáticas que parecem não passar de moda e regressam regularmente aos gostos do público.
Entre elas estão, indiscutivelmente, as relacionadas com as duas grandes guerras e isso ajuda a perceber que nos últimos meses tenham surgido em Portugal várias propostas de banda desenhada dentro do género, sendo o mais recente a colecção “As Grandes Batalhas Navais”. O volume inaugural intitula-se “Jutlândia” e tem a assinatura de Jean-Yves Delitte, desenhador e argumentista especializado nestes temas bélicos.
Autor de todos os tomos da colecção, nalguns casos só como argumentista, noutros, como em “Jutlândia”, como autor completo, Delitte é garante de rigor histórico e de fidelidade na reconstrução das embarcações representadas, omnipresentes ao longo das pranchas, entremeadas pontualmente com espectaculares vinhetas de página dupla.
Tendo como principal qualidade a reconstituição de época de uma das batalhas decisivas da Primeira Grande Guerra, o argumento de Delitte acrescenta-lhe um factor humano ao incluir na narrativa algumas personagens, provenientes de um e outro lado das forças em confronto, que servem para balizar os horrores dos conflitos armados e para criar alguns laços com o leitor: um oficial em vésperas de se divorciar e outro apaixonado pela mulher; um veterano marinheiro alemão; um francês morador em territórios ocupados, que se voluntariou para a aviação para poder cumprir o sonho de voar mas acabou num navio – e os seus pais.
Em torno deles, num relato pontuado por informações sobre a situação política e militar e o valor e constituição das frotas britânica e alemã prestes a enfrentar-se ao largo da península dinamarquesa que dá título à obra, Delitte constrói um relato que foge à frieza do simples documentário e ganha alguma consistência e calor humano.
Se o final surge algo abrupto, deixando a sensação – para quem está à distância – de que a montanha – a grande batalha naval em perspectiva – pariu um rato – as baixas perdas relativamente à dimensão que poderiam ter atingido pelo muito superior número de embarcações e homens em confronto – isso é atenuado pelo dossier final que ajuda a contextualizar e dimensionar o trágico acontecimento.

As Grandes Batalhas Navais – Jutlândia
Jean-Yves Delitte
Gradiva
64 p., 19,50€


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F. Cleto e Pina

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Uma história entre duas guerras

Biografia de Albert Eistein, o pacifista por detrás da bomba atómica
A impossibilidade de colocar limites ao uso das descobertas científicas para fins militares

Se é o nome de Albert Einstein que surge na capa deste díptico editado pela Gradiva, a verdade é que ele traça a sua biografia em paralelo com a de um dos seus grandes amigos, o químico Fritz Haber.
Dois homens, dois prémios Nobel, com uma relação próxima, mas tumultuosa, que expõe uma interessante dualidade: um deles, Haber, o nacionalista germanófilo que não se importa de pôr as suas descobertas, no caso o amoníaco que daria origem ao gás mostarda que provocou tantos massacres nas trincheiras, ao serviço dos militares alemães na Primeira Grande Guerra; o outro, o pacifista convicto, Einstein, ciente da importância da descoberta da teoria da relatividade e da sua influência, mas temeroso do uso bélico – a construção da bomba atómica – que poderia advir dela. No final, ambos entregaram aos militares as suas descobertas científicas pela mesma razão: o fim das guerras; um por convicção, outro por não ver outra solução. O resultado? O mesmo: milhares, milhões de mortos… Este antagonismo e as certezas de um e as dúvidas e remorsos do outro, contribui para os humanizar e aproximar do leitor.
De novo em voga, este tipo de obras de carácter histórico, tem tudo para agradar àqueles que gostam de banda desenhada. A chamada de um argumentista com provas dadas, como Corbeyran, garante a fluidez do relato e uma verdadeira abordagem em BD. Por outro lado, “As Guerras de Albert Einstein” têm também tudo para agradar a quem procura biografias ou narrativas históricas de leitura mais ligeira, sem que se perca a credibilidade e a solidez garantidos pela pesquisa rigorosa que esteve na sua base.
Graficamente a narrativa funciona muito bem, com uma divisão da prancha mais tradicional muitas vezes desfeita pelas vinhetas de grande dimensão para cenas de conjunto ou pormenores relevantes que ajudam a dar ao relato um outro dinamismo e permitem ao leitor espraiar o olhar pelo desenho enquanto a História decorre em fundo. Essas cenas de conjunto tanto podem levar-nos a Zurique ou a Berlim, como podem mergulhar-nos nas mais chocantes e violentas consequências trágicas da aplicação da ciência aos objectivos militares, transubstanciada em campos a perder de vista pejados de cadáveres e destruição.

As guerras de Albert Einstein 1 e 2
Closets, Corbeyran e Chabbert
Gradiva
64 + 56 p., 19,50€ (cada um)


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F. Cleto e Pina

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O Regresso de Eternus 9

Mais de 30 anos depois da publicação de “Um Filho do Cosmos”, Eternus 9, a mítica criação de Victor Mesquita, regressa com “A Cidade dos Espelhos”, segundo volume de uma anunciada trilogia de ficção científica, género de que Mesquita é um dos raros cultores em Portugal.

Definido pelo próprio Mesquita, como “um portal caleidoscópico para um mundo cujo coração é Lisboa, após a guerra nuclear que transfigurou a face do Planeta e fragmentou a Lisboa de hoje até quase não se poder reconhecê-la, mas onde continuam as referências que a distinguem”, a “Cidade dos Espelhos”, mais do que o regresso de Eternus 9, é o regresso de Victor Mesquita, aqui na dupla função de autor e personagem da sua própria história.

O primeiro álbum, cuja publicação se iniciou em 1975 na revista “Visão” (a de BD, não a de informação que ainda hoje se publica) de que Mesquita foi fundador e director, tendo sido publicado em álbum em 1979, com direito a edição em França pela Lombard, no ano seguinte, é filho do seu tempo, estando na linha do que melhor se fazia em revistas como a Pilote e Métal Hurlant, com Victor Mesquita a emprestar um fôlego épico ao seu traço, só com paralelo nos delírios cósmicos e arquitecturais de Philippe Druillet, autor com quem a crítica francesa (e não só…) não deixou de o comparar. Mas além do desenho espectacular e da arrojada planificação, sem equivalente em termos da BD nacional, “Eternus 9” era uma história plena de simbolismo e perfeitamente circular, e que, por isso mesmo, não precisava de continuação.

Essa continuação, tantas vezes anunciada pelo próprio, mas que já poucos esperavam, surgiu finalmente em finais de 2010, lançada de forma (demasiado) discreta, no último Festival da Amadora. E se a sombra de Eternus 9 se mantém imutável, apesar da sua presença ser bastante mais simbólica do que efectiva, a verdade é que a meio da história o leitor é levado para o outro lado do espelho, em que Eternus 9 dá lugar a Victor Mesquita, numa narrativa com claros contornos autobiográficos sobre o processo de criação do livro que estamos a ler. E nesta segunda parte, que é mais uma continuação de “O Sindroma de Babel” (veja-se a cidade de Olissipólis, ou os cães bicéfalos), uma história curta publicada em álbum em 1996, pelo Festival da Amadora, a presença de Eternus 9 está quase reduzida às maquetes que enchem o estirador de Vick Meskal/Victor Mesquita, cedendo lugar ao autor cheio de dúvidas e inquietações, em luta com uma história que ganhou vida própria que, como bem lembrou João Ramalho Santos, remete para o filme “8 ½” de Federico Fellini, paradigma máximo do filme sobre o autor em crise de inspiração.

Embora respeitando vagamente os cânones da ficção científica, sobretudo em termos estéticos, “A Cidade dos espelhos” é uma obra inclassificável, cujo principal fascínio vem precisamente da forma como o autor explora criativamente as suas dúvidas e complexidades, num complexo jogo de espelhos, mais próximo da Banda Desenhada autobiográfica.

Quanto à excelente edição da Gradiva, padece do mesmo problema da reedição de “Um Filho do Cosmos”, o preço demasiado elevado para a bolsa dos portugueses que, aliado à escassa divulgação, impedirá mais leitores de descobrirem este (tão feliz quanto inesperado) regresso de Victor Mesquita.

(“Eternus 9: A Cidade dos Espelhos”, de Victor Mesquita, Gradiva, 98 páginas, 25 euros)

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Da espada ao avental

Com “Hägar, o Horrendo”, massacres e pilhagens tornam-se divertidas

Manuel Caldas, depois da notável restauração das pranchas originais dos primeiros volumes do “Príncipe Valente” e do western humanista “Lance”, duas obras realistas, propõe agora o humor de “Hägar, o horrendo”, um clássico das tiras diárias norte-americanas. Comum aos três projectos é o cuidado apaixonado posto nas edições e o grande respeito pela obra original e (consequentemente) pelo autor.
Hägar é um vicking atípico, ou não divida ele o tempo entre as actividades inerentes à sua “profissão” – invadir, pilhar, saquear – e as banais tarefas domésticas quotidianas a que Helga, a sua mulher – que usa cornos maiores, símbolo do poder entre os vickings de Browne – o obriga.
Com um universo reduzido – inspirado na sua família e amigos – que junta a Hägar e Helga, Hamlet, o filho letrado, Honi, a filha que sonha com proezas guerreiras, Lute, o trovador pacifista que aspira ao seu coração, Eddie (nada) Felizardo, companheiro de batalhas, e poucos mais, Browne explana um humor simples mas eficaz, assente num traço arredondado, simpático, expressivo e desprovido de pormenores desnecessários, com divertidos anacronismos e desfecho sempre surpreendentes, parodiando não só a época de Hägar mas também o quotidiano de todas as épocas, mostrando que dentro de cada um de nós há um pouco deste vicking permanentemente insatisfeito e rude mas também submisso, e transformando as pilhagens e massacres cometidos pelos vickings, um dos mais violentos povos da História, em algo divertido por que ansiamos página após página.

Obra da maturidade

Hägar, um vicking de sorriso inofensivo e feliz – Ano I
Dik Browne
Editor: Manuel Caldas; Distribuição: Gradiva

Não é vulgar, mas quando Dik Browne (1917-1989) imaginou Hägar, em 1973, já passara os 55 anos. Até aí, tivera uma carreira mediana, com um Prémio Reuben (1963) para a tira familiar “Hi and Lois”, criada e escrita por Mort Walker, como ponto alto.
E sem alguns problemas de visão, que o levaram a querer precaver o futuro da família, talvez Hägar nunca tivesse saltado duma folha de papel para 1900 jornais de todo o mundo, privando-o do Reuben de 1973, da fama e dinheiro que nunca tivera e da completa realização pessoal e artística.


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F. Cleto e Pina

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Clássico da BD portuguesa dos anos 70 reeditado

Wanya – Escala em Orongo” foi lufada de ar fresco no panorama nacional; Obra chegou a estar no index dos livros que não convinham ao regime

Corria o ano de 1973. Às livrarias portuguesas, com a surpreendente tiragem de 5000 exemplares, chegava “Wanya – Escala em Orongo”, uma banda desenhada com “uma mensagem pacifista de carácter universal”, escrevia então Vasco Granja. Com um traço realista, assente numa cuidada técnica de pontilhado e numa planificação dinâmica e diversificada, “Wanya…” abria novos caminhos para a BD portuguesa que, no entanto, nunca foram trilhados.
Agora, 35 anos depois, a reedição, pela Gradiva, cumpre o desejo da pintora Maria João Franco de “dar a conhecer a obra de Nelson Dias”, seu marido e desenhador da obra, já falecido, e “revelar a importância de “Wanya” a uma nova geração”.
Que, conta Augusto Mota, o argumentista, então professor em Leiria, “nasceu por acaso, na onda da nova BD francesa dos anos 60. O Nelson” – também professor – “elaborou seis pranchas, para experimentar a “gramática” da narração figurativa e desafiou-me para criar um texto que o levasse a conseguir uma história com princípio, meio e fim; ao longo de três anos fomos discutindo a estrutura gráfica da obra, para que texto e desenho se complementassem”. Acrescenta Mª João que o marido “trabalhou exaustivamente na obra, desenhando preciosa e apaixonadamente cada centímetro da página, como se de uma teia imensa se tratasse”.
Para modelo da heroína, Dias usou a esposa que gostou “de se ver no papel, como Vânia, a jovem mulher símbolo de um sonho para um mundo melhor; aquele deveria ser o “papel” de todos nós: resgatar o Mundo para os vindouros, para o Homem como ser total, pondo as suas capacidades ainda por descobrir ao serviço da paz e da justiça”.
A reacção “dos leitores e da crítica ultrapassou as expectativas”, relembra Mota: “ficaram seduzidos pelo rigor e beleza do desenho; o texto era quase só pretexto para que o leitor-espectador não se perdesse naquele universo de imagens”. Para o qual são unânimes ao indicar uma influência: “A Saga de Xam”, de Nicolas Devil”.
Apesar da temática abordada em “Wanya” – a libertação de um povo oprimido – aludindo a “um clima de opressão, que todos sentiam, embora sem qualquer intenção panfletária da nossa parte”, garante o argumentista, “não houve problemas com a censura”. Mas podia ter havido, “se não se tivesse dado o 25 de Abril, porque foi incluída no “índex” dos livros que não convinham ao regime”.
Curiosamente, foi a revolução que tornou Vânia, heroína de uma só BD, porque “o Nelson foi destacado para a reestruturação da Escola do Magistério Primário de Leiria, e deixou de ter tempo e disponibilidade de espírito”, recorda a esposa, pelo que “a segunda aventura, “O Povo dos Espelhos”, passada noutra dimensão, atrás da realidade que os espelhos reflectem”, revela Augusto Mota, se ficaria “apenas por seis pranchas, a cores”.


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Avril Lavigne + Lupin III

Lupin the IIIrd (1 e 2 de 5)
Monkey Punch
Mangaline Edições
600 pp., pb, 12,50 €

Avril Lavigne – Pede 5 desejos (1 de 2 )
Joshua Dysart (argumento) e Camilla d’Errico (desenhos)
Gradiva
154 pp, cor, 12,50 €

Estamos no século XXI. Toda a Europa foi invadida pelos manga (banda desenhada japonesa)… Toda? Não! Um pequeno rectângulo à beira-mar plantado, resiste ainda e sempre, orgulhosamente, ao invasor. Mas, ao contrário de Astérix e demais gauleses, a resistência portuguesa de vez em quando abre brechas e o invasor consegue penetrar neste mercado pequeno e inconstante, pouco apetecível para os editores nipónicos habituados a números com muitos zeros.
Caracterizados por terem centenas ou milhares de páginas, personagens de olhos grandes, muitas linhas indicadoras de movimento e privilegiarem a acção ao diálogo, os manga têm neste momento dois títulos em curso de edição entre nós. A Mangaline – formada exclusivamente para a edição de manga – recentemente voltou com um clássico com 40 anos, “Lupin the IIIrd”, um manga de acção e humor, inspirado no célebre ladrão de casaca francês, Arséne Lupin, quanto aos roubos espectaculares e impossíveis, e em James Bond, para a tecnologia avançada, as perseguições frenéticas e a presença recorrente de belas mulheres. Protagonizado por Lupin, um gangster cáustico e impiedoso e um sedutor irresistível, sempre um (ou mais) passos à frente da polícia ou dos seus inimigos, tem a coadjuvá-lo uma galeria, curta mas rica, de personagens secundárias, que tem à cabeça o incompetente inspector Zenigata, que alguém equiparou ao desajeitado Clouseau. Numa edição que merecia ter sido mais cuidada, no que à impressão e tradução diz respeito, e que mantém o sentido original de leitura, da direita para a esquerda e do “fim” do livro para o “princípio” – por isso tantos exemplares são expostos com a anónima contracapa para cima! – “Lupin the IIIrd” apesar de datado nalguns aspectos (desde logo no contido erotismo – sempre são 40 anos…), conta com argumentos leves e divertidos e decorre em bom ritmo graças ao desenho ágil e vivo e à planificação dinâmica.
Quanto a “Pede 5 desejos” é quase um paradoxo: se por um lado exemplifica algo cada vez mais vulgar nos EUA e França, devido à popularidade dos manga junto do público feminino (algo que os comics de super-heróis e a BD franco-belga nunca conseguiram) e dos adolescentes, a criação de manga – enquanto um género com características próprias – por autores ocidentais, por outro lado acaba por só se aproximar dos quadradinhos japoneses pelo desenho, simpático e expressivo, já que, narrativamente, segue modelos ocidentais, devido ao ritmo apropriadamente lento que lhe permite desenvolver e aprofundar o carácter de cada interveniente.
Equiparável ao shojo (manga destinado ao público juvenil feminino), cola-se à popularidade de Avril Lavigne, inspiradora do projecto e personagem enquanto amiga imaginária da protagonista, Hanna, e à temática das suas canções – as dificuldades de vida dos adolescentes – para traçar um retrato realista da enorme solidão que boa parte dos jovens vivem nos nossos dias, perdidos em frente a ecrãs (de TV, computador, telemóvel…), onde assumem identidades e vidas que não passam de sonhos ou ilusões, mas incapazes de um relacionamento normal com seres humanos de carne e osso. Hanna vive assim, solitária, fechada sobre si própria, até que a encomenda num site de um pequeno demónio que, qual lâmpada de Aladino, lhe pode conceder 5 desejos, muda a sua vida. Mas é este toque de fantástico que a torna mais real, levando-a a falhar quando se esforça por acertar, descobrindo-se quando se aproxima dos outros, procurando oferecer aos que a rodeiam a felicidade que deseja para si, hesitando entre o altruísmo e o egoísmo na concretização dos tais cinco desejos.


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F. Cleto e Pina

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