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Quando a BD reinventa a literatura

Fagin, o judeu
Will Eisner
Gradiva
12,00€
128 pp.

E de repente, sem muito bem se saber porquê, a banda desenhada volta a descobrir os clássicos da literatura. Quer no mercado franco-belga, onde editoras como a Delcourt (ver texto ao lado), a Soleil, a Casterman e a Glénat estão a lançar títulos ou colecções dedicada às suas adaptações aos quadradinhos, quer nos EUA, onde a Marvel, detentora do Homem-Aranha ou do Quarteto Fantástico, anunciou também uma colecção com as mesmas premissas. Ou até no Brasil, onde a Conrad acaba de editar a (re)leitura que Marcati fez de “A Relíquia” de Eça de Queiroz. Mas estas adaptações não se anunciam como as maçudas e maçadoras versões de tempos idos, que nem BD eram, quando desenhadores anódinos ilustraram (mal) os textos integrais; hoje, elas estão entregues a autores de créditos firmados, que as escolheram como projectos pessoais em que se empenharam, transmitindo através de uma forma de expressão diversa o espírito da obra original e os sentimentos e as emoções que a sua leitura lhes proporcionou.
Marcando uma relação diferente entre a BD e a Literatura, surgem “Long John Silver #1”, de Dorison e Laufray (Glénat/Futuropolis), homenagem a “A Ilha do Tesouro”, de Stevenson, que explora as eventuais aventuras daquele pirata, ou “Fagin, o judeu”, de Will Eisner.
Como pressuposto, Eisner, nesta obra da velhice (data de 2003, tinha o grande mestre norte-americano já 86 anos), pretende desmontar a visão estereotipada dada dos judeus na versão original do romance clássico de Charles Dickens, “Oliver Twist”. Para isso, não (re)conta aos quadradinhos aquele drama vitoriano, mas sim a vida (inventada…) do seu vilão, Fagin (“o judeu”), mas não para o absolver dos crimes que cometeu nem sequer para o justificar; divergindo de Dickens, traça um retrato díspar de Fagin, mostrando-o não como a incarnação do mal mas como um ser humano como outro qualquer, com dúvidas, contradições e incertezas, empurrado para o crime pelas vicissitudes de uma vida que lhe foi por demais madrasta, equiparável, afinal, ao retrato delicodoce que Dickens nos deixou de Oliver Twist, com o senão de que a Fagin a fortuna nunca sorriu… ou sorriu demasiado tarde.
Para isso, aproveita a história base, num interessante diálogo com a literatura, para fazer um retrato expressivo da opressiva Londres vitoriana onde ela decorre e para onde transporta o leitor, das vielas lúgubres e esconsas às ricas mansões, através da riqueza, precisão e expressividade do seu traço, aqui servido por tons sépia, que nada retiram da força dos jogos de luz e sombra em que se mostra mais uma vez mestre incontestado, bem como no domínio do ritmo narrativo marcado à custa da forma como compõe as pranchas, construindo uma narrativa forte e bem estruturada através da qual defende o seu ponto de vista e tenta suavizar a imagem exageradamente anti-semita que o texto original de Dickens transmite, mesmo que involuntariamente.
E constrói, assim, uma obra de crítica social e de costumes e também histórica, na qual contextualiza a presença judaica numa Londres tolerante e liberal mas fechada, mostrando como os judeus da Europa Central (os asquenazitas, judeus de segunda, atrás dos (mais ricos) judeus ibéricos – sefarditas), eram empurrados para vidas feitas de esquemas e expedientes nada honestos, que estiveram ma origem da imagem estereotipada dos judeus, ainda hoje comum.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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