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Prémio Artemisia para Johanna

Johanna Schippers, nascida em Taiwan e aluna da Escola Superior de Imagem de Angoulême, foi contemplada com o Prémio Artemisia 2008, pelo álbum “Nos âmes sauvages” (Futuropolis). Tal como “Nèe quelque part” (Delcourt), esta é uma obra autobiográfica, na qual Johanna, num estilo semi-realista e caricatural, confronta a sua experiência com o chamanismo dos índios jívaros e o quotidiano ocidental onde ainda está bem presente o estereótipo do “bom selvagem”.
Aberto apenas á participação feminina e atribuído agora pela primeira vez, o Prémio Artemisia, foi criado pela associação com o mesmo nome – fundada, entre outras, pelas autoras de BD Chantal Montelier e Jeanne Puchol e a escritora Marie-Jo Bonnet – que tem por objectivo dar visibilidade e reconhecimento à criação de BD no feminino.


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F. Cleto e Pina

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Parar de fumar

Foi o que decidiu fazer Cati Baur, que conta aos quadradinhos a sua experiência nesse sentido no livro “J’arrête de fumer” (Delcourt). Experiência inicialmente narrada de forma regular (o que dá ao livro um tom de quase diário íntimo) no blog que mantém desde 2004, que é mais um exemplo de como as novas tecnologias podem ser usadas pelos quadradinhos.
No livro, que combina ilustração e sequências narrativas, desenhadas em traço fino, expressivo, composto com tons de cinzento dados a pincel, Cati Baur descreve, sem intenções moralistas (“eu fanfarrono o que quiser, é o meu livro”, escreve ela) e algum humor (que se vai esbatendo ao longo das páginas), o que passou para conseguir cumprir o seu propósito: a falta da nicotina, os sonhos em que fumava, como passou a contabilizar tudo em maços de cigarros (poupados) e não em euros, o aumento de peso, a indiferença dos próximos (“quando se acende um cigarro há sempre alguém para exprimir desaprovação; quando não o fazemos, ninguém nos felicita…”), como certas coisas (tomar um café, ir a uma festa ou um bar) parecem não fazer sentido sem um cigarro a acompanhar, aspectos que quase ofuscam por completo as alegrias das pequenas (grandes) vitórias quotidianas, sempre que um cigarro fica por acender….
Porque a recaída é sempre possível e parar de fumar “…nunca, nunca é algo adquirido”.

PS: Quase 10 anos (que se completariam a 11 de Fevereiro) e 456 colunas depois, este espaço “Aos Quadradinhos” chega ao fim. Àqueles que me acompanharam, (mais ou menos) regularmente, o meu obrigado; espero que tenham encontrado tanto prazer como eu em (pelo menos) algumas das centenas de edições aos quadradinhos, cuja leitura me pareceu relevante.


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F. Cleto e Pina

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Musicalidade

E se o autor da terceira melodia mais tocada de sempre não tivesse escrito uma única nota dela, antes a tivesse “roubado” de ouvido ao seu alcoolizado compositor?
É esta confissão, motivada pelos remorsos, do autor de “Happy Living”, tema fictício que dá título a mais uma edição da interessante colecção “Mirages” (Delcourt), que vai arrastar François Merlot, um jornalista francês que prepara o primeiro livro, sonhando com fama e sucesso, numa longa investigação pelos EUA, de Nova Iorque à Costa Oeste. Investigação que o vai levar a diversas descobertas – algumas bem surpreendentes – que ilustram o âmago do ser humano e as reais motivações por detrás de atitudes banais ou altruístas, espontâneas ou calculadas, e a questionar-se a si próprio e às suas opções de vida.
Este elegante romance gráfico, criado por Jean-Claude Gotting, é também um pequeno passeio pelo jazz de meados do século passado, traçado a negro, num estilo agreste, semi-realista, marcado pelo estatismo das personagens – fruto da dedicação do autor à pintura e à ilustração antes deste (conseguido) retorno à BD? – que faz com que cada vinheta se assemelhe a uma foto envelhecida…
O que não significa que falte ritmo à obra, sendo ele transmitido pelo texto, marcante, bem trabalhado, credível, envolvente – quase musical – e pela utilização sucessiva de diferentes planos na ilustração das muitas conversas que a pontuam.


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F. Cleto e Pina

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Clássicos da Literatura renascem aos quadradinhos

Obra integral de Agatha Christie começa a ser editada em BD no próximo mês; Editoras francesas apostam em adaptações feitas por autores conhecidos; Shakespera em manga é aposta para o leitores mais jovens; Clássicos portugueses revisitados em BD no Brasil

A obra integral de Agatha Christie vai ser integralmente editada em banda desenhada pela editora britânica Harper Collins. A “Agatha Christie Comic Strip Edition” terá um total de 83 livros que ficarão disponíveis até ao final de 2008, chegando os 12 primeiros, entre os quais os conhecidos “Crime no Expresso do Oriente” ou “Morte no Nilo”, às livrarias no próximo mês. As adaptações estão a cargo do romancista francês François Riviére que, em BD, assinou nomeadamente “O encontro em Seven Oaks”, “O Dossier Harding” e “À Procura de Sir Malcolm” (edição portuguesa da Meribérica/Líber), surgindo no desenho, entre outros, Frank Leclerq, Marc Piskic, Solidor e Laurence Suhner.

Mas este não é caso único no que toca à apetência da BD pela literatura. Em França, por exemplo, a Delcourt criou há poucos meses a colecção “Ex-libris”, dirigida por Jean David Morvan, argumentista de Spirou e Sillage, onde já foram editados em BD “Oliver Twist”, de Dickens, “Frankenstein”, de Mary Shelley, “Os três Mosqueteiros”, de Dumas ou “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe. Como premissas, a colecção apresenta “um profundo respeito pelas obras”, a sua recriação “por autores que pretendam revisitar um dos seus livros de cabeceira” e “adaptações fiéis mas personalizadas”. Longe vão as versões maçudas e maçadoras de tempos idos que, mais do que adaptações em BD eram obras (mal) ilustradas, o que permite, num segundo passo obras como “Cidade de vidro” (Edições ASA), em que Paul Karasik e David Mazzucchelli recriaram graficamente de forma magistral um texto quase hermético de Paul Auster, “Fagin, o judeu” (Gradiva), em que Will Eisner desmonta a visão estereotipada dada dos judeus na versão original de “Oliver Twist”, recontando-o sob o ponto de vista de Fagin, o vilão, ou “Long John Silver” (Glénat/Futuropolis), de Dorison e Lauffray, que, numa variação curiosa, exploram as (prováveis) aventuras do pirata de “A Ilha do Tesouro”, de Stevenson.

Ainda em França, onde a Casterman e a Soleil avançam também neste campo, é incontornável o exemplo de Jacques Tardi, com uma ligação de longa data a ligação aos policiais de Léo Mallet, que lhe permitem desenhar a sua Paris natal por quem nutre uma verdadeira paixão.

Entretanto, do outro lado do oceano, a 9ª arte é igualmente utilizada para fazer a (re)descoberta da literatura. E uma das editoras que nisso aposta é a Marvel, conhecida pelos seus super-heróis, para quem Roy Thomas, um veterano dos comics, adaptou “O último dos moicanos”, de Fenimore Cooper, “A Ilha do tesouro”, de Stevenson e “O Homem da Máscara de Ferro”, entregando os desenhos a Hugo Petrus, Mario Gully e Steve Kurth.

Neste país, e também em Inglaterra, em finais do ano passado, duas editoras, respectivamente a John Wiley and Sons, especializada em livros técnicos, e a Self Made Hero, divulgaram, quase em simultâneo, a aposta em obras de Shakespeare (“Hamlet”, “Romeu e Julieta”, “Macbeth”, etc.) aos quadradinhos, mas em estilo… manga (bd japonesa), tentando ir ao encontro das preferências actuais das camadas jovens e do público feminino.

Em Portugal, esta prática foi corrente entre os anos 30 e 60 do século passado, quando a censura a isso obrigava os autores, podendo-se citar as adaptações que Fernando Bento fez de romances de Júlio Verne, a “Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, revisitada por José Ruy ou “O Caminho do Oriente”, em que Raúl Correia e E. T. Coelho recontam a viagem de Vasco da Gama vista pelos olhos de um miúdo. Em tempos mais recentes Filipe Abranches e Diniz Conefrey, beberam nas obras de Raúl Brandão e Herberto Hélder (ver caixa). E no ano passado, no Brasil, os clássicos da literatura lusa – Camões e Eça – inspiraram os “quadrinhos” de Lailson Cavalcanti de Holanda (ver caixa) e a Marcatti (ver texto à parte).

[Caixa]

Saber Mais

Arquipélagos
Diniz Conefrey
ÍmanEdições, 2001

A partir de dois textos de Herberto Hélder, (“Os Passos em Volta”, de 1963, e “Photomaton &icom”, de 1979), Diniz Conefrey constrói uma obra cromaticamente diversificada e forte, dando visibilidade à intensa carga poética do original.

O diário de K.
Filipe Abranches
Polvo, 2001

Partindo de “A morte do palhaço”, de Raúl Brandão”, Abranches, numa das suas obras mais conseguidas, brilhante no seu preto e branco esquemático, pejado de imagens invulgarmente fortes, recria graficamente a angústia, o medo e a solidão do protagonista perante a morte.

Lusíadas 2500
Lailson Cavalcanti de Holanda
Companhia Editora Nacional/IBEP (Brasil), 2006

Utilização do texto integral de “Os Lusíadas,” de Luís de Camões, “numa encenação futurista, transposta para um outro meio – a Arte Sequencial – onde a narrativa gráfica complementa a narrativa literária”.

“A Relíquia” de Marcatti

Lançada em Julho no Brasil, “A Relíquia” (Conrad) é exemplo de uma adaptação bem conseguida. O que à partida podia ser posto em causa, dado o tom escatológico das obras anteriores de Marcatti, autor underground brasileiro, nascido em 1962, que fez o que deve ser feito numa adaptação: interiorizou o espírito do romance de Eça e o seu peculiar sentido de humor, na sua crítica exacerbada à Igreja Católica e aos seus fiéis fanáticos, transpondo-os depois para a nova linguagem. A opção de manter “a estrutura da história original” contribui para a consistência do livro, bem como a utilização, nos textos, de “uma mistura de coloquialidade e erudição para facilitar a leitura sem perder o tom clássico da obra”.

Com eles, e apesar do seu traço caricatural, recria em “quadrinhos” o clima tenso e opressivo que Eça deu à sua narrativa, e transmite o estado de prostração e impotência que Raposão, o boémio sobrinho da beata Titi, sente face à rédea curtíssima com que ela o mantém. Paradoxalmente, é o seu traço caricatural, caracterizado por personagens de olhos vivos e grandes narizes e corpos de inusitada mobilidade, o outro trunfo do livro, pois a sua vivacidade e dinamismo contrabalançam o tom mais pausado do texto, marcando o ritmo da obra e expressando à saciedade os diversos estados de espírito, mostrando sentir-se como peixe na água na representação das cenas mais ousadas, divertidas caricaturas que surgem como oásis na vida de Raposão e como aliviadoras da tensão na leitura do livro, bem recebida pela crítica brasileira, e que Marcatti faz questão de apresentar como “a sua Relíquia”.


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7

7 x 7 x 7. Esse é o conceito base desta colecção da Delcourt. 7 duplas de autores, contam 7 histórias, cada uma com 7 protagonistas. Que serão ladrões num ambiente de espada e fantasia, piratas, guerreiros do século VI, missionários (culpados dos… 7 pecados capitais), prisioneiros do futuro ou yakuzas. Ou os “Sept Psychopates” do álbum de estreia (os restante sairão até final de 2008), enviados em 1941, por um coronel britânico, em desespero de causa face ao desenrolar da II Guerra Mundial, para assassinar Hitler.

7 psicopatas, “loucos furiosos”, como são apelidados no subtítulo do álbum, ideais porque totalmente imprevisíveis, logo cujas acções seriam impossíveis de antecipar pelos nazis, retirados dos asilos em que estavam internados e lançados de pára-quedas sobre a Alemanha, para cumprirem a missão que poderia mudar o desfecho da guerra.

E se o traço sombrio de Sean Philips, algo rígido e preso de movimentos, mais à vontade no tratamento de cenários e veículos do que da figura humana, mesmo assim não deixa de ser eficaz, é o argumento de Fabien Vehlmann que faz a diferença. Ágil, credível, bem construído, foge à vulgaridade, e, embora se interesse mais pelos loucos – cada um dava uma boa história – do que pelo seu propósito, não o esquece, conseguindo um desfecho imprevisível, com um toque de humor negro, mas sem beliscar a “realidade histórica”.


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F. Cleto e Pina

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Quando a BD reinventa a literatura

Fagin, o judeu
Will Eisner
Gradiva
12,00€
128 pp.

E de repente, sem muito bem se saber porquê, a banda desenhada volta a descobrir os clássicos da literatura. Quer no mercado franco-belga, onde editoras como a Delcourt (ver texto ao lado), a Soleil, a Casterman e a Glénat estão a lançar títulos ou colecções dedicada às suas adaptações aos quadradinhos, quer nos EUA, onde a Marvel, detentora do Homem-Aranha ou do Quarteto Fantástico, anunciou também uma colecção com as mesmas premissas. Ou até no Brasil, onde a Conrad acaba de editar a (re)leitura que Marcati fez de “A Relíquia” de Eça de Queiroz. Mas estas adaptações não se anunciam como as maçudas e maçadoras versões de tempos idos, que nem BD eram, quando desenhadores anódinos ilustraram (mal) os textos integrais; hoje, elas estão entregues a autores de créditos firmados, que as escolheram como projectos pessoais em que se empenharam, transmitindo através de uma forma de expressão diversa o espírito da obra original e os sentimentos e as emoções que a sua leitura lhes proporcionou.
Marcando uma relação diferente entre a BD e a Literatura, surgem “Long John Silver #1”, de Dorison e Laufray (Glénat/Futuropolis), homenagem a “A Ilha do Tesouro”, de Stevenson, que explora as eventuais aventuras daquele pirata, ou “Fagin, o judeu”, de Will Eisner.
Como pressuposto, Eisner, nesta obra da velhice (data de 2003, tinha o grande mestre norte-americano já 86 anos), pretende desmontar a visão estereotipada dada dos judeus na versão original do romance clássico de Charles Dickens, “Oliver Twist”. Para isso, não (re)conta aos quadradinhos aquele drama vitoriano, mas sim a vida (inventada…) do seu vilão, Fagin (“o judeu”), mas não para o absolver dos crimes que cometeu nem sequer para o justificar; divergindo de Dickens, traça um retrato díspar de Fagin, mostrando-o não como a incarnação do mal mas como um ser humano como outro qualquer, com dúvidas, contradições e incertezas, empurrado para o crime pelas vicissitudes de uma vida que lhe foi por demais madrasta, equiparável, afinal, ao retrato delicodoce que Dickens nos deixou de Oliver Twist, com o senão de que a Fagin a fortuna nunca sorriu… ou sorriu demasiado tarde.
Para isso, aproveita a história base, num interessante diálogo com a literatura, para fazer um retrato expressivo da opressiva Londres vitoriana onde ela decorre e para onde transporta o leitor, das vielas lúgubres e esconsas às ricas mansões, através da riqueza, precisão e expressividade do seu traço, aqui servido por tons sépia, que nada retiram da força dos jogos de luz e sombra em que se mostra mais uma vez mestre incontestado, bem como no domínio do ritmo narrativo marcado à custa da forma como compõe as pranchas, construindo uma narrativa forte e bem estruturada através da qual defende o seu ponto de vista e tenta suavizar a imagem exageradamente anti-semita que o texto original de Dickens transmite, mesmo que involuntariamente.
E constrói, assim, uma obra de crítica social e de costumes e também histórica, na qual contextualiza a presença judaica numa Londres tolerante e liberal mas fechada, mostrando como os judeus da Europa Central (os asquenazitas, judeus de segunda, atrás dos (mais ricos) judeus ibéricos – sefarditas), eram empurrados para vidas feitas de esquemas e expedientes nada honestos, que estiveram ma origem da imagem estereotipada dos judeus, ainda hoje comum.


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F. Cleto e Pina

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Clássicos

Tem por título “Ex-Libris”, por objectivo adaptar em BD os grandes romances da literatura e é dirigida por Jean David Morvan, recém-despedido argumentista de Spirou e autor de êxitos como “Sillage”. Como premissas, apresenta “um profundo respeito pelas obras”, a sua recriação “por autores que pretendam revisitar um dos seus livros de cabeceira” e “adaptações fiéis mas personalizadas”

Já com Dickens, Mary Shelley, Victor Hugo ou Kafka em agenda, esta colecção da Delcourt estreou-se com os primeiros volumes das versões aos quadradinhos de “Les Trois Mousquetaires”, de Alexandre Dumas, e “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe.

No primeiro caso, o argumento de Morvan e Dufranne reteve a essência do original bem como o seu espírito, que o traço semi-caricatural de Rubén acentuou, realçando o lado divertido e alegre da narrativa, a par do dinamismo das muitas cenas em que imperam as espadas, tudo assente numa planificação multifacetada com profusão de vinhetas por prancha.

Já em “Robinson Crusoé”, o traço de Gaultier é bem mais esquemático e sombrio, quase intimidativo, como que antecipando a angústia das quase três décadas passadas na ilha deserta, às portas da qual deixamos o protagonista, depois de este viver algumas aventuras que não aplacaram a sua sede de descoberta, nas quais a grande expressividade dos desenhos permite muitas vezes a omissão do texto escrito.


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F. Cleto e Pina

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Exemplo

“Prédicition” (Delcourt) exemplifica bem o modelo tradicional de edição de banda desenhada franco-belga: álbum cartonado, com 48 páginas a cores, com uma história a ser desenvolvida em vários tomos.

E como quase sempre acontece, este volume inicial – “Fatale Mélodie”- desperta e capta a atenção do leitor, enredando-o numa série de premissas, todas deixadas em aberto no seu final, como forma de o fazer ansiar pela continuação da série. Para lá da questão base da narrativa – “O que fazer quando se tem 39 dias de vida?” – outras são abordadas: a rejeição da religião (e também da arte do equilibrismo) pelo protagonista, devido a um acidente na adolescência que matou parte da sua família; a utilização da arte – escultura, no caso – como forma de libertação interior; a sua complicada relação com a esposa, Carole, internada num asilo psiquiátrico, e, de certa forma, com as mulheres em geral; as estranhas capacidades de Mélodie, igualmente internada e a autora da previsão (só ou algo mais?) da data da morte do protagonista, entre outros …

Para que “Prédiction”, que assenta no traço realista, expressivo e competente de Rotundo, não seja mais uma série de início prometedor que depois rapidamente se esvazia, Pierre Makyo, veterano com provas dadas, terá que ligar capazmente todas estas pontas soltas, como já fez, por exemplo na excelente “Balade au bout du monde”.


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F. Cleto e Pina

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“A liberdade de expressão está posta em causa em França”

Afirma Joann Sfar, devido ao processo contra a revista “Charlie Hebdo” por ter publicado as caricaturas dinamarquesas de Maomé, cuja sentença é conhecida hoje; Autor transcreveu em BD tudo o que se passou em tribunal; Livro chegou ontem às livrarias francesas

A 7 de Fevereiro de 2006, a revista satírica “Charlie-Hebdo” publicava três das polémicas caricaturas dinamarquesas de Maomé, tendo, na capa, um desenho de Cabu, no qual o profeta, com as mãos na cabeça, afirmava “Só sou amado por idiotas”. A revista seria processada pela Grande Mesquita de Paris e pela União das Organizações Islâmicas de França, cujos autos decorreram a 7 e 8 de Fevereiro. A eles assistiu Joann Sfar, autor de BD com 35 anos e quase uma centena de álbuns, que anotou tudo o que se passou no tribunal, saindo de lá “com a mão desfeita”, para o relatar num álbum de BD, intitulado “Greffier” (que tanto pode significar “escrivão” como “gato”), editado pela Delcourt.

Isto porque “este não é um processo qualquer; é um processo feito a desenhadores que admiro e com os quais trabalhei”, justificou Sfar em declarações ao Jornal de Notícias. “Defendo-os com os meus meios: o desenho. Mas, mais do que fazer desenhos militantes, prefiro contar os debates do tribunal, para que o livro tenha um efeito pedagógico. Não pretendo afrontar ninguém, só explicar o que está em jogo”.

A leitura da sentença está marcada para hoje, mas a obra, o sexto caderno autobiográfico de Sfar, com 240 páginas, criadas ao correr da pena, com um traço espontâneo, muitas vezes próximo do simples esboço, outras mais trabalhado, numa diversidade de estilos que, não retiram ritmo, vivacidade nem legibilidade ao conjunto, que revela uma excepcional capacidade comunicativa, chegou ontem às livrarias francesas porque “queria fazer compreender que, quando assistimos a este género de processos, não conhecemos a sentença de imediato. Por outro lado, o livro é eminentemente político e eu quero que ele alimente o debate público que neste momento tem lugar em França”.

Assumindo que, ao contrário de um escrivão, tem “uma visão obviamente subjectiva”, Sfar declara-se “abertamente um defensor da liberdade de expressão e um inimigo irredutível dos que gritam: blasfémia!”. No entanto, “esforcei-me por contar integralmente os debates”.

Não conseguindo sequer imaginar “que a Charlie-Hebdo perca, porque isso colocaria em causa os ideais de liberdade que a França sempre defendeu”, conclui: “actualmente pede-se aos jornalistas e à imprensa para serem comedidos, para se controlarem; é terrível. É a liberdade de expressão que é posta em causa. É preciso batermo-nos contra isso”.


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F. Cleto e Pina

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Cancro da mama

“Comment le cancer m’a fait aimer la télé et les mots croisés” (Delcourt), é o diário da convivência da norte-americana Miriam Engelberg, com o seu cancro da mama, desde a sua descoberta, passando pelas diversas fases subsequentes: estados de depressão, desânimo, negação, raiva, operação, radioterapia, quimioterapia, etc.
O que surpreende nesta obra, servida por um desenho pouco menos do que incipiente, mas de leitura fácil e fluente, é a exposição total de Miriam, com os seus temores e as suas ansiedades, perdida perante a reviravolta que a doença provocou na sua vida, como numa primeira fase tentou ignorar a incontornável nova realidade, através de técnicas de “esvaziamento mental” (palavras cruzadas, consumo obsessivo de televisão) – e como viria a encontrar a via “salvadora” na realização de BD, quer enquanto terapia, quer enquanto realização de um sonho de sempre – a rejeição sistemática à religião (e principalmente aos “religiosos”), e expondo questões como o desconforto da operação, os vómitos, o (difícil) relacionamento com os outros, as relações sexuais, a escolha de uma peruca, etc. Ao mesmo tempo, o tom da abordagem é cáustico e irónico, de um humor desconcertante, atenuando o peso do drama, sem, no entanto, lhe retirar o seu lado emocional e extremamente doloroso.
Miriam Engelberg faleceu em 2006 após a publicação do livro nos Estados Unidos.


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