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Plácido e Mosca, a Memória de Outros Tempos

A 17 de Março de 1946, estreava na revista francesa “Vaillant” #56 uma nova série intitulada “Placid et Muzo”, protagonizada por dois animais antropomorfizados, um urso negro e uma raposa, que juntos viviam divertidas aventuras que raramente ultrapassavam uma página.
Se aquele título poderá dizer pouco aos leitores portugueses, o caso mudará com certeza de figura entre aqueles que leram histórias aos quadradinhos nas décadas de 50 e 60 do século passado, se lhes dissermos que em Portugal os dois heróis, numa aproximação à pronúncia original, foram rebaptizados como Plácido e Mosca.
E foi com esta designação que foram presença recorrente em títulos da Agência Portuguesa de Revistas como o Mundo de Aventuras, Condor ou Tigre, a preto e branco ou a uma cor, chegando até a estampar cadernos escolares em meados de 1950.
Inicialmente usando apenas umas calças com alças, os dois amigos – frequentemente em conflito, devido ao seu carácter distinto, mais pacífico Plácido, mais irrequieto Mosca – comporiam depois o seu visual vestindo pólos ou coletes, protagonizando tanto cenas quotidianas quanto episódios como polícias, cowboys, exploradores ou aventureiros, cuja leitura fácil e directa, os desfechos inesperados e os jogos de palavras contribuíram para conquistarem os leitores.
O seu criador foi o catalão José Cabrero Arnal (1909-1982), que os portugueses já conheciam como colaborador de “O Mosquito” onde, entre muitas outras bandas desenhadas, tinha brilhado com o cão Top, antepassado daquele que seria a sua mais famosa criação, Pif le Chien, publicado pela primeira vez em 1948. Claramente inspirado pelo traço Disney, as suas diversas criações, quase sempre animais com postura humana, combinavam humor, charme e poesia de forma harmoniosa.
Plácido e Mosca, que originalmente tinham argumentos de Pierre Olivier, seriam retomados por Jacques Nicolaou, quando Arnal se dedicou a Pif, perdendo no entanto um pouco da poesia e da originalidade dos gags iniciais.

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O Mosquito Abriu Asas há 75 anos

A 14 de Janeiro de 1936 chegava aos quiosques portugueses um novo jornal infanto-juvenil. Era o primeiro voo de O Mosquito, “O semanário da rapaziada”, que duraria 17 anos e 1412 números e marcaria de forma indelével os quadradinhos portugueses.

O começo – como toda a sua vida, aliás – foi modesto: apenas oito páginas em formato A4, papel de jornal de fraca qualidade e a presença de uma única cor apenas nas capas e nas páginas centrais. E um preço a condizer: 5 tostões, os oficiais 50 centavos, qualquer coisa como 25 cêntimos nos tempos do euro que hoje vivemos, o que durante muitos anos lhe serviu de bandeira, apresentando-se como “o jornal infantil mais barato”.
Ao leme do insecto, estavam dois dos maiores nomes do jornalismo infanto-juvenil nacional, António Cardoso Lopes, o famoso Tiotónio, já com experiência similar de outras publicações, responsável pelo grafismo, e Raul Correia, que asseguraria grande parte da criação literária da nova publicação, bem como as traduções (livres, quase sempre autênticas novas versões) das bandas desenhadas publicadas. Juntos fizeram de O Mosquito “o primeiro movimento colectivo de rebeldia das crianças em Portugal”, escreve António Dias de Deus em “Os Comics em Portugal” (Cadernos da Bedeteca, Cotovia). Porque, acrescenta, o seu conteúdo fugia às “lindas e bem-formativas revistas, como O Senhor Doutor e O Papagaio”. Por isso, “O Mosquito foi perseguido, confiscado, rasgado, queimado, deitado para o caixote do lixo, anatemizado e esconjurado. Os pais, aparentemente, tinham a razão e a força (…) mas acabaram por perder a guerra”.

Altos voos
E o sucesso foi imediato. Iniciado com uma tiragem de apenas cinco mil exemplares, no auge da sua popularidade atingiu 30 mil, era publicado duas vezes por semana e as máquinas onde era impresso, trabalhavam seis dias por semana, em dois turnos de oito horas!
Combinando novelas ilustradas, textos mais moralistas e bandas desenhadas, recortadas e remontadas, ocupando todos os espaços de cada página, O Mosquito, “o jornal mais bonito”, que ao longo da sua vida mudou de formato cinco vezes e chegou a ter 16 páginas, fez da interactividade com os leitores um dos seus grandes trunfos. Por isso, a par das cartas dos leitores e da publicação das suas fotografias, teve um emblema, multiplicaram-se os concursos, as separatas e as construções para armar. O sucesso crescente levou à criação de colecções paralelas, números especiais, um suplemento para meninas – A Formiga – e emissões radiofónicas, que o fizeram voar atravessando as mudanças de três décadas e de uma guerra mundial.

Histórias memoráveis
Quem leu O Mosquito – quando foi publicado ou anos mais tarde, herdado de pais ou tios – recorda com certeza “Pelo mundo fora…”, “Formidáveis aventuras do grumete Mick, do velho Mock e do cão Muck”, “Jovens Heróis”, “O Capitão Bill, o grumete Bell e o cozinheiro Ball”, “Águias da Lei”, “O Capitão Meia-Noite”, “O Gavião dos Mares”, “Pedro de Lemos, Tenente, e o ‘Manel’, Dez Reis de Gente”, “O Voo da Águia”, “Serafim e Malacueco”, “Anita Pequenita” e, sobretudo, possivelmente, as aventuras do Cuto. E desconhecendo, com certeza, que todas elas eram estrangeiras, a maior parte inglesa, com algumas espanholas à mistura. Quase no final, surgiriam também americanas: “Príncipe Valente”, “Terry e os Piratas”, “Tommy, o rapaz do circo”…
Mais tarde, esta colaboração estrangeira seria quase completamente substituída pela produção nacional. O grande sustentáculo da revista, foi então Eduardo Teixeira Coelho (o célebre ETC), que desenhou “Os Guerreiros do Lago Verde”, “Falcão Negro”, “Os Náufragos do Barco sem Nome” ou o mítico “O Caminho do Oriente” (considerado por muitos Os Lusíadas da BD nacional). “A Casa da Azenha” (de Vítor Péon), “Os Espíritos Assassinos” (Jayme Cortez), “O reino proibido” (José Ruy) ou “O Inferno Verde” (José Garcês) são outros títulos que deixaram marca nas páginas de O Mosquito

O último bater de asas
Com o correr dos anos, a chegada de novos concorrentes – O Diabrete, O Mundo de Aventuras, O Cavaleiro Andante -, a saída de Cardoso Lopes, “uma obcecação pela história pátria e pelos clássicos da língua portuguesa”, escreve António J. Ferreira, outro especialista da BD nacional (em O Mosquito nº 1, V série), a revista perde a rebeldia e “fala cada vez menos à imaginação infantil, tornando-se um prolongamento da escola”.
Chegaria ao fim, de forma discreta, já não era “o semanário infantil português de maior tiragem”, a 24 de Fevereiro de 1953. Mas deixara de tal forma a sua marca, que, escreve Leonardo de Sá no recém-lançado “Dicionário Universal da Banda Desenhada – Pequeno Léxico Disléxico”, o termo “mosquito” chegou a ser usado “para designar em Portugal qualquer revista de histórias aos quadradinhos”.

Outros voos
Por isso, também, se compreende que ao longo dos tempos tenha havido várias tentativas de retomar o título – e o fantástico e o maravilhoso a ele associados. Em 1960, Eduardo Carradinha e José Ruy, autor na primeira série, deram-lhe uma segunda vida, similar à primeira, que durou apenas 30 números. Um ano depois, nova tentativa de renascimento, teve apenas quatro números, mais longa mesmo assim que o número único de prospecção lançado em 1975.
Já nos anos 80, albergando sob as suas asas o melhor da BD europeia de então a par da recuperação de alguns clássicos, O Mosquito voou de novo, durante uma dúzia de números e um Almanaque natalício, na sua última ressurreição. Até hoje.

Quanto vale O Mosquito?
Apesar da sua idade e longevidade, ainda hoje surgem colecções completas de O Mosquito, que podem valer até 7500 euros. O alfarrabista José Vilela, estima que existirão umas 50 no total, mas Alberto Gonçalves, da Timtim por Timtim, refere que, com alguma paciência, gastando mais um pouco, através da internet e procurando em alfarrabistas, é possível completar uma colecção num prazo de um ou dois anos.
Os números mais difíceis, para além dos primeiros, mais antigos, e dos últimos, que tiveram menor tiragem e distribuição, são os que correspondem às mudanças de formato, pois estragavam-se com mais facilidade. Quase impossível, é encontrar as diversas separatas e construções que a revista ofereceu.
De qualquer forma, como este tipo de coleccionismo está geralmente associado à recordação das leituras de infância, são cada vez menos aqueles que ainda procuram O Mosquito.

O Mosquito em números
17 anos (1936-1953)
1412 números
1512 bandas desenhadas curtas
250 bandas desenhadas em continuação
381 contos
425 cartas do Avozinho
180 números de A Formiga (suplemento para meninas)
Tiragem inicial: 5000 exemplares
Tiragem máxima: 30 000 exemplares (duas vezes por semana)
Tiragem no final: 7000 exemplares

José Garcês e José Ruy: autores de O Mosquito relembram revista

Dos muitos desenhadores a quem O Mosquito serviu de escola e de montra, restam quatro: António Gomes Ferreira, Servais Tiago, José Garcês e José Ruy. Os dois últimos, na casa dos 80, continuam a fazer dos quadradinhos o seu dia-a-dia, tendo álbuns programados para o primeiro semestre deste ano.
Em comum, têm também o facto de terem sido leitores d’O Mosquito antes de nele trabalharem. Ruy, que tinha cinco anos quando tomou “contacto com esse tipo de narrativa”, ficou fascinado: “O Mosquito, pelos enredos e pela diversidade de temas, era uma janela aberta para um mundo que os miúdos desconheciam”. Já Garcês, descobriu a revista pelas “construções de armar”, atribuindo o seu fascínio à qualidade “das espantosas bandas desenhadas inglesas, o melhor que havia na altura, ficção muito bem contada e desenhada”.
Desse tempo de leitores, evocam os (futuros) colegas nacionais: Eduardo Teixeira Coelho, Vítor Péon, e, na escrita, Raul Correia e José Padinha; dos espanhóis, em especial Emílio Freixas e Jesus Blasco.
Ruy, que começara no Papagaio aos 14 anos, entrou n’O Mosquito para fazer “a litografia das cores do jornal, legendas e ilustrações” e chegou a ajudar “o Tiotónio na máquina de impressão”, tendo publicado uma única BD, O reino proibido, iniciada no nº 1352.
Quanto a José Garcês, depois de uma passagem pelo Pluto, fez mais cedo a sua estreia “n’O Mosquito, no nº 762, com O Inferno Verde”. Dessa época, recorda “o contacto com grandes autores e a disciplina que criou”, enquanto Ruy evoca “a vertigem que era trabalhar lá, sem rede nem margem para errar”.
Garcês tem como “primeira memória d’O Mosquito, uma visita às oficinas, ainda estudante”, de que guarda “ainda uma prova impressa a partir de um desenho feito para uma chapa de off-set”. Ruy, recorda “um episódio divertido e inusitado: a captura de uma ratazana, das muitas que lá havia, para servir de modelo vivo para uma BD”. Só que, “feitos os desenhos, faltou coragem para matar a bicha; pintou-se-lhe a cauda com tinta de impressão encarnada, mas nunca mais deu notícias”!
Curiosamente, nenhum dos dois possui a colecção da revista. Comenta José Ruy: “em casa de ferreiro, espeto de pau”!

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Marijac nasceu há 100 anos

Injustamente pouco lembrado nos dias que correm, Marijac, um dos grandes nomes da BD francesa, à qual dedicou quase 70 anos de vida como argumentista, desenhador e editor, nasceu há 100 anos.
Foi em Paris, contava o século XX apenas oito anos. Baptizado Jacques, recebeu o apelido de Dumas, como o grande romancista, e, como ele, criou uma obra vasta e multifacetada, na qual, como argumentista, desenhador, autor completo, chefe de redacção ou até editor, abordou todos os géneros e estilos, do western de “Jim Boum”, um dos primeiros criados na Europa, à ficção-científica de “Guerre à la Terre”, das narrativas de piratas de “Captain Fantôme”, ao humor de “Line et Zoum”.
Publicou as primeiras ilustrações em 1926, colaborou depois na revista “Coeurs Vaillants” e, tendo sido incorporado durante a Segunda Guerra Mundial, criou os jornais “La Vie est Belle” e “Le Chéval Mécanique”. Como os seus heróis, viveu aventuras: foi feito prisioneiro pelos alemães, mas fugiu; acolheu Hergé, o criador de Tintin, em sua casa durante a ocupação da Bélgica e uniu-se à resistência, para quem criou “Le Corbeau déchaîné” onde publicaria aquela que é possivelmente a sua obra-prima, “Les trois mousquetaires du maquis”, no qual satirizava os nazis, feitos eternos perdedores.
Após a guerra, criou e dirigiu durante quase 20 anos “Le Coq Hardi”, onde continuou a dar largas ao seu talento, a solo ou em colaboração com os grandes autores do seu tempo: Le Rallic, Cazanave, Poivet, Mathelot, Dut…, tocando sucessivas gerações de leitores de quadradinhos. Foi justamente consagrado com o Grande Prémio de Angoulême, em 1979.
Em Portugal, estreou-se nas páginas do mítico “O Mosquito”, podendo também ser encontradas diversas bandas desenhadas suas no “Cavaleiro Andante”.
Faleceu em Lyons-la-Forêt, França, a 21 de Julho de 1994.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

Publicação

Jornal de Notícias

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