Categoria: Recortes

Um documentário trágico e chocante

A realidade das “mulheres de conforto” usadas pelos japoneses durante a II Guerra Mundial. Terceira obra da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim publicada em Portugal em pouco mais de meio ano.

Num mercado que continua a dar sinais de crescimento e diversificação, a presença da coreana Keum Suk Gendry-Kim já começa a ser natural; depois de no ano passado nos terem sido propostos “Alexandra Kim” (Levoir) e “A espera” (Iguana), agora, esta última editora sugere “Erva”, mais uma história real, sobre as adolescentes e mulheres que foram utilizadas pelos japoneses como escravas sexuais durante a II Guerra Mundial.
Na sua base, está a sul-coreana Ok-Sun Lee, que no final da vida se tornou activista dos direitos das mulheres. Foi das suas memórias, descobertas em várias conversas, que Gendry-Kim partiu para expor em meio milhar de páginas, traçadas com o seu preto e branco contrastante, um capítulo negro e aberrante da História da humanidade.
Ainda criança, a protagonista foi vendida pelos pais para ajudar num restaurante, mas a realidade veio a revelar-se chocante já que, levada para a China, foi mais uma das “mulheres de conforto” utilizadas pelo elementos do exército nipónico para satisfazerem os seus apetites sexuais – ou a sua bestialidade.
Entremeando as conversas da autora com Ok-Sun, com o desfiar de memórias desta última, cada uma mais trágica do que a anterior, “Erva”, título que remete para a resistência da planta, que pode vergar e ser calcada mas volta a erguer-se, lê-se quase como se de um documentário se tratasse, quer pela sua sólida base histórica e de história pessoal, quer pelo distanciamento que Gendry-Kim coloca na sua narrativa, tornando-a mais custosa uma vez que isso obriga o leitor a criar as suas próprias emoções e sentimentos perante uma realidade para muitos inimaginável.
Situação agravada, pelo menos psicologicamente, quando no final da guerra o Japão foi vencido e teve se submeter às condições dos vencedores, pois aquelas mulheres, as que sobreviveram, quando foram libertadas e regressaram às suas terras, às suas famílias, ansiando por regressar a uma vida tão normal quanto possível, em inúmeros casos foram rejeitadas e banidas por terem ‘servido’ o inimigo durante o conflito…

Erva
Keum Suk Gendry-Kim
Iguana
488 p., 23,95 €


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F. Cleto e Pina

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Abordagem pudica à pedofilia e à pornografia infantil

Pela primeira vez, Prado retoma personagens, os inspectores Tabares e Sotillo.

Há alguns autores que, por razões diversas, caíram no goto dos editores e dos leitores nacionais. Miguelanxo Prado, com uma longa relação com o nosso país desde 1985, quando foi convidado do 1.º Salão de BD e do Fanzine, no Porto, pela sua inegável qualidade e pela relevância da sua obra no panorama da banda desenhada internacional, é um desses casos.
Por isso, o seu mais recente álbum, “Presas Fáceis – Abutres”, saiu em português em simultâneo ou quase com a original, numa belíssima edição da Ala dos Livros.
Caso único, Prado decidiu retomar duas personagens, os inspectores Tabares e Sotillo, estreados em “Presas Fáceis – Hienas” (Levoir, 2016), para abordar temas com tanto de sensível quanto de actual: a pornografia infantil e a pedofilia.
A primeira constatação, é o modo extremamente pudico como o faz, já que era fácil um descambar gráfico, mostrando o que pretende denunciar e embarcando involuntariamente na cadeia predadora que está em causa.
Porque, é isso que está em causa neste relato de tom policial, que abre com o aparente suicídio de uma adolescente ucraniana, acolhida por uma casal espanhol, sem filhos e bem na vida: as muitas ramificações que a pedofilia e a pornografia infantil assumem, atravessando transversalmente a sociedade, sem se ater a questões de idade, estatuto social ou capacidade financeira.
À medida que a investigação avança, credível, com avanços, recuos e momentos de estagnação, os factos tornam cada vez mais abjecta a actuação dos diferentes envolvidos, sendo evidente o mal-estar que afecta os inspectores – e que o próprio autor também assumiu na sua passagem pela Comic Con, pelos muitos meses que passou embrenhado no tema, durante a preparação e execução do álbum.
E se não pode ser colocada em causa a qualidade do seu traço realista, o superior uso de cor, sombras e volumes, e o argumento consistente, bem desenvolvido e incomodamente credível, torna-se evidente que é a denúncia de práticas obscenas e inqualificáveis que presidiu à concepção da obra.

Presas fáceis – Abutres
Miguelanxo Prado
Ala dos Livros
88 p., 28,00 €


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F. Cleto e Pina

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A indiferença perante o horror da realidade

Biografia de Francesc Boix revela a realidade do campo de extermínio de Mauthausen.

Preservar a memória é fundamental num tempo em que a informação – e a falta dela – é tão etérea e passa tão depressa quanto surge: à velocidade de um clique.
“O Fotógrafo de Mauthausen”, disponível em edição portuguesa da Gradiva, é um tributo à memória de um homem, o espanhol Francisco Boix, que esteve preso no campo de extermínio de Mauthausen, um local para onde iam os “irrecuperáveis”, um local de onde nenhum dos prisioneiros “deveria sair vivo”.
Tendo de fugir após a guerra civil do país ao lado, Boix tornou-se refugiado político em França, onde seria integrado à força numa divisão do exército local e acabaria prisioneiro dos alemães, em 1941, quando o seu poderio militar e a sua expansão atingiam o auge.
Depois do filme de 2018, de Mar Targarona, esta é mais uma forma de contar, possivelmente a outra faixa de potencial público, o que Boix viveu em Mauthausen e, mais do que isso, o que ele viu por lá.
Porque naquele campo de extermínio, triste coincidência, havia quem tivesse o mesmo propósito: ilustrar a verdade para que ela perdurasse, embora não pelos mesmos motivos. Paul Rincken, um dos oficiais nazis, gostava de retratar a morte dos prisioneiros em fotografias artísticas, ao mesmo tempo que ‘fabricava’ outro tipo de imagens para dar uma ideia distorcida, até agradável, do local.
Boix, caído nas graças dele devido ao seu jeito para a fotografia, decidiu então que teria de fazer sair do campo os negativos e as fotos que poderiam mostrar ao mundo a hedionda realidade. É neste pressuposto que se baseia esta narrativa realista com toques de ficção, em que a bestialidade nazi nos entra pelos olhos dentro em contraponto com o idealismo de um homem que tenta preservar a memória.
Da leitura, agradável, composta por um muito extenso dossier final, ilustrado por muitas das fotos que Boix preservou que situa e contextualiza os acontecimentos, fica uma dupla sensação de incómodo: pelo que foi levado a cabo naquele lugar e pela indiferença com que o pós-guerra – e os dias de hoje? – receberam a verdade.

O Fotógrafo de Mauthausen
Salva Rubio, Pedro J. Colombo e Aintzane Landa
Gradiva
168 p., 32,50 €


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F. Cleto e Pina

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Só muda a cor das ditaduras

Agitar memórias para evitar que as coisas se repitam. Romance gráfico aborda a vida pelos olhos de um adolescente em Praga na década de 1950.

Com a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril ainda como pano de fundo, permanece a necessidade de lembrar o que a revolução quis mudar e fazer e não deixa de ser uma coincidência agradável a publicação agora deste livro, “Jonas Fink: Inimigo do povo”, cuja acção decorre numa ditadura de outro tom, a Checoslováquia “vermelha” do bloco soviético da década de 1950, mas em que os métodos repressivos e os efeitos que provocavam eram indiscutivelmente similares.
Iniciada em 1992, a obra nesta primeira edição em português pela Arte de Autor, foi dividida em dois tomos; o primeiro inclui “A infância” (distinguida em Angoulême como melhor álbum de 1995) e “A aprendizagem”; o segundo, a lançar no último trimestre deste ano, recolherá “O livreiro de Praga”.
Como bom romance desenhado que é, “Jonas Fink” centra-se no adolescente que dá título à obra. Filho de um intelectual, assiste à prisão do pai com apenas 11 anos, e irá experimentar na pele as consequências de ‘herdar geneticamente’ a condição de ‘inimigo do povo’: a proibição de continuar a estudar; o afastamento da maioria dos antigos colegas devido à sua ‘condição’; a necessária sujeição a trabalhos menores, como pedreiro ou ajudante de canalizador, que a sua excelência nos estudos não pareciam indicar… Por tudo isto, Jonas terá de crescer aceleradamente, passando em poucos anos de um adolescente despreocupado e feliz para um jovem na flor da idade que tem de ter cuidado com o que diz, com o que faz, com quem se dá.
Bons amigos onde menos esperava e a companhia de um grupo de jovens que buscam nos livros proibidos uma réstia da liberdade que a vida lhes nega e onde conhece a bela Tatiana, filha de um oficial do regime, por quem se apaixona, farão com que Jonas comece a perceber que, à sua dimensão, também pode resistir e aspirar a mais do que aquilo que o poder lhe quer conceder.
Retrato realista e credível da opressão de um regime sobre um povo, em especial sobre aqueles que pensam ou podem pensar de forma diferente, “Jonas Fink – Inimigo do povo”, servido por um traço agradável e belas cores, para além de uma boa leitura, é importante como memória de tempos que lá, como cá, como em tantos outros locais, ninguém deve querer viver outra vez.

Jonas Fink – Inimigo do povo
Vittorio Giardino
Arte de Autor
160 p., 29,95 €


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F. Cleto e Pina

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Quatro autores de Tex em Anadia

9.ª Mostra do Clube Tex Portugal decorre este fim-de-semana no Museu Vinho Bairrada.

A 9.ª Mostra do Clube Tex Portugal, realiza-se este fim-de-semana no Museu Vinho Bairrada, em Anadia, e pela primeira vez são quatro os autores convidados.
Criado em 1948 por Gianluigi Bonelli e Aurelio Galleppini, Tex nas suas aventuras percorreu os Estados Unidos, foi ao Canadá e ao México e chegou mesmo à Argentina, no notável “Patagónia”, que tem edição portuguesa da Polvo.
E desde 2014, vem anualmente a Anadia, onde ano foi apanhado nos vinhedos locais, perto da estação, a comer um cacho de uvas enquanto bebe o néctar que delas sai, numa caneca com o símbolo da autarquia local. Esta imagem, desenhada por Fabio Civitelli, ilustra um dos cartazes da 9.ª Mostra do Clube Tex Portugal, cujos autores convidados geralmente agradecem desenhando o herói junto dos locais e símbolos marcantes da cidade da Anadia. O mesmo fez Sandro Scascitelli, que ilustrou Tex e Kit Carson numa adega local.
A autêntica peregrinação dos fãs da personagem a cada mostra, vindos de Portugal, Holanda, Brasil ou França, é oportunidade para um convívio intenso e conversas com autores, editores e tradutores e os indispensáveis autógrafos dos convidados. Este ano, para lá de Civitelli e Scascitelli, que têm exposições na mostra, o clube Tex Portugal traz também ao nosso país Ivo Milazzo e Pedro Mauro, este o primeiro brasileiro a desenhar uma história de Tex.


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F. Cleto e Pina

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Coimbra BD enche Convento de S. Francisco de Banda Desenhada

Até domingo mais de 30 autores nacionais vão passar pelo evento.

A edição de 2024 do Coimbra BD abriu as suas portas hoje, 25 de Abril, no seu regresso ao Convento de S. Francisco que já o tinha acolhido no ano transacto. Até domingo, uma programação variada, a pensar em toda a família, vai encher o secular edifício com banda desenhada, videojogos e cosplay.
No que respeita à banda desenhada, esta edição, totalmente em português, propõe várias exposições: “A Força do Preto e Branco”, de André Caetano; “A Mensagem – Fernando Pessoa em BD”, com os originais da adaptação para BD assinada por Pedro Moura e Susa Monteiro; “A Revolução Interior: À Procura do 25 de Abril”, de José Carlos Fernandes, João Ramalho-Santos e João Miguel Lameiras; “A Norte de Sul Nenhum”, de João Mascarenhas; e “Homenagens à Alma” em que a convite de Penim Loureiro, 22 ilustradores criaram fan art original inspirada na série de BD, “Umbigo do Mundo”.
O grande destaque, no entanto, vai para “O Corvo: 30 Anos, 30 Pranchas”, que celebra os 30 anos da icónica personagem de Luís Louro, que assinou o cartaz do Coimbra BD e estará presente nos quatro dias para conversas e sessões de autógrafos, salientando-se, no domingo, às 16 horas, o painel “O Corvo – efectivamente sem moralizar”, em que estará acompanhado por Rui Reininho, fã confesso da série.
Ainda em termos de convidados, serão mais de 30 os ilustradores e argumentistas que nestes quatro dias passarão pelo evento coimbrão, entre os quais, para além dos já citados, avultam nomes como Nuno Saraiva, Joana Mosi, Henrique Gandum e Duarte Gandum, Joana Afonso, Derradé, André Lima Araújo ou Jorge Coelho.
Com um programa vasto e diversificado, a edição de 2024 do Coimbra BD promete investir em novas áreas e conteúdos, com vários lançamentos, workshops sobre criação de banda desenhada, sessões de cinema, um “Artists’ Alley! com cerca de 30 novos talentos, conversas e apresentações na área da banda desenhada ou sessões de desenho ao vivo, para além de uma área de Gaming com competições de card e board games, e uma feira de merchandising e BD, com diversas edições que ainda não chegaram às livrarias.
Uma das grandes apostas do Coimbra BD tem sido o Cosplay, a arte de vestir a roupa, a pele e o espírito das suas personagens favoritas, que, para além do tradicional desfile/concurso terá variadas oficinas, painéis com cosplayers embaixadores como “Desafios e Conquistas do Universo do Cosplay” e “Skits de Concurso” e ainda uma exposição de alguns dos mais marcantes fatos criados para competições.
No fim-de-semana, o Coimbra BD acolhe um dos momentos mais esperados no universo dos esports a nível nacional, as eLiga Portugal Finals onde 8 equipas disputam o título de Campeão Nacional de Futebol Virtual, com a grande final a ter lugar dia 28 de Abril.


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F. Cleto e Pina

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Fim de ciclo no Velho Oeste

Um western para descobrir o género ou matar saudades. Quarto volume de “Lonesome”, publicado quase em simultâneo com a edição francófona, encerra a série.

Se às novas gerações o western dirá pouco, houve uma época em que o género imperava e seduzia. Na banda desenhada, como no cinema, os grandes espaços naturais, o confronto entre o homem branco “civilizado” e os peles-vermelhos “selvagens”, e a necessidade de superação constante eram os principais atractivos, a par de figuras marcantes que preencheram o imaginário de muitos, do western puro e duro, com muitos tiros e poucas considerações, de que “Tex” será um dos melhores exemplos, aos relatos humanistas, que têm em “Buddy Longway” um dos mais relevantes.
Em anos mais recentes, o género tem sabido renovar-se e “Lonesome”, uma dessas propostas, chega agora ao fim em “O território do Feiticeiro”, quarto e último volume, editado pela Gradiva quase em simultâneo com a edição original. Assinado por Yves Swolfs, já autor de “Durango”, apresentava como principal nota distintiva uma certa aura fantástica, baseada na capacidade que o protagonista tem de ver o passado e o destino daqueles em quem toca mas, com o desenvolver da série, essa característica atenuou-se e até o culto diabólico evocado neste derradeiro tomo, não passa de simples referência.
Por isso, esta história de busca e vingança, acaba por apostar mais decisivamente nos confrontos violentos resolvidos a tiro, que deixam um longo cortejo de cadáveres ao longo das páginas. Isso não invalida um argumento consistente, com algumas surpresas, enriquecido com uma contextualização histórica que evoca o racismo contra negros e pele-vermelhas, a eminente luta contra a escravatura que originará o confronto entre Norte e Sul na Guerra da Secessão e a apetência económica pelos novos territórios, como contornos genéricos para um relato baseado em laços familiares que o destino separou, nas intrigas políticas e na eterna luta pelo poder terreno que levam os homens a extremos inimagináveis.
Especialista do género, Swolfs, com o seu traço realista, credível na reconstituição histórica e rico em pormenores, recria de forma atractiva paisagens naturais e urbanas do Velho Oeste e personagens que, apesar de representarem estereótipos reconhecíveis, apresentam espessura psicológica, contradições e dúvidas que as tornam mais humanas, fazendo de “Lonesome” uma boa proposta para descobrir o género ou matar saudades dele.

Lonesome #4 – O território do feiticeiro
Yves Swolfs
Gradiva
64 p., 20,99 €


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F. Cleto e Pina

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Luís Louro: “IA devia significar Inteligência Alheia, porque o que produz é retirado e plagiado de trabalhos de outros!”

No Dia do Desenhador, o artista fala de si e dos 30 anos do Corvo

O Dia do Desenhador, comemorado a 15 de Abril, data de nascimento de Leonardo Da Vinci, foi o pretexto para uma conversa com Luís Louro, um dos mais populares desenhadores portugueses de BD.
Segundo se lembra, quis “ser desenhador desde sempre… O útero da minha mãe devia estar todo rabiscado por dentro…!”, diz, com uma gargalhada. E prossegue: “em criança” para ser feliz bastava “ter um lápis e papel”. Ser “astronauta era outra possibilidade, pois andava muitas vezes de cabeça na lua!”.
Num tempo em que “não existiam tutoriais online ou workshops de BD”, teve de ser “um verdadeiro autodidacta”. Com a primeira BD publicada em 1985, olha “para trás com orgulho, por ter feito sempre um trabalho honesto, no limite das capacidades, com paixão, dedicação e por vezes (muita) frustração”. Hoje, continua a desenhar “com o mesmo entusiasmo, se não mais… Em parte devido aos leitores que têm sido fiéis e nunca deixaram de acreditar”.
A primeira obra a solo foi “O Corvo”: “a editora pediu uma história sobre Lisboa” e Louro resolveu “criar uma espécie de anti-herói lisboeta” que se identificasse com ele e com o seu sentido de humor. Foi nesse dia, que se tornou “não um argumentista, mas sim um contador de histórias” .
Diz-se “que o Corvo é trapalhão, alienado ou mesmo alucinado”, mas Luís Louro discorda: “o Corvo é um verdadeiro herói, não tem qualquer capacidade especial ou jeito seja para o que for, e no entanto resolveu dedicar-se a ajudar os outros!”.
30 anos e 7 álbuns depois, acredita que “o universo do Corvo se tornou mais consistente e cresceu exponencialmente; em termos de arte, chegou finalmente ao estilo gráfico” que sempre imaginou. E confessa: “o Corvo tem crescido a par e passo comigo como autor de BD”.
Louro tem aproveitado os álbuns do Corvo, supostamente um super-herói, para abordar temas como o bullying, o desajustamento social ou, no recente “O Despertar dos Esquecidos” (Ala dos Livros), o abandono a que são votados os idosos… Apesar “de gostar de aventuras e de humor”, também acha importante “fazer critica social e abordar assuntos sérios, actuais e relevantes”. Odeia o “novo politicamente correto” e tem “leitores e amigos que dizem” que anda sempre “no fio da navalha, empoleirado no muro…” E finaliza com uma gargalhada: “qualquer dia ‘esbardalho-me’ todo!”.
Sendo a BD portuguesa parca em heróis, no sentido de personagens recorrentes, na sua bibliografia há vários. O desenhador diz que sempre preferiu “ler aventuras de heróis que já conhecia, do que histórias isoladas” e que em termos criativos, isso “permite desenvolver as personagens de um modo mais consistente e que os leitores as vão conhecendo cada vez melhor”.
Tema incontornável quando se fala de desenho nos nossos dias, a Inteligência Artificial é “algo que assusta bastante” e que abomina mesmo. E desenvolve: “Não só tira trabalho aos verdadeiros artistas, como não cria nada de novo. Não confundam as coisas… NÃO é mais uma ferramenta, porque as ferramentas não funcionam sozinhas; para as usares, tens de ter o talento para criar e desenhar, o que não acontece com a IA! O próprio nome diz tudo ‘ARTIFICIAL’! Na verdade, IA devia significar Inteligência ALHEIA, porque o que ‘produz’ é retirado e plagiado dos trabalhos de outros!”.
A finalizar, deixa um conselho a quem quer ser desenhador: “estudem muito e candidatem-se à NASA para serem astronautas…!”

Perfil

Chama-se Luís Louro e nasceu em 1965 em Lisboa, cidade que é cenário de muitas das suas bandas desenhadas. Da sua prancheta, com o seu estilo personalizado, saltaram obras como “Alice”, “Watchers”, “Os Covidiotas” ou “Dante” e personagens como Jim del Monaco, Roques e Folque ou o Corvo, que este ano comemora 30 anos, com o sétimo álbum, “O despertar dos esquecidos”, e uma grande exposição no Coimbra BD, de 25 a 28 de Abril.


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F. Cleto e Pina

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Sem destino na estrada da morte

Imagens recriam violência visceral do romance de Cormac McCarthy. Depois de “O Relatório de Brodeck”, Manu Larcenet propõe a sua leitura de “A Estrada”.

Um homem e uma criança empurram com dificuldade um carrinho de supermercado ao longo de uma estrada. São pai e filho, como descobriremos rapidamente, mas a condição de sem-abrigo que intuíamos revela-se errada. São sobreviventes de uma catástrofe inexplicada e arrastam-se passo após passo, na ilusão de um local melhor.
Há alguns anos Manu Larcenet deu-nos um violento soco no estômago com a sua visão de “O Relatório de Brodeck” (Ala dos Livros, 2021), de Philippe Claudel; agora, nesta recriação de “A Estrada”, de Cormac McCarthy, Pulitzer em 2007, consegue igualmente violentar-nos e deixar-nos de rastos.
Ambientado num futuro indefinido, numa Terra devastada, em que apenas se sobrevive – mas a que preço! – “A Estrada”, editada pela Ala dos Livros a par da edição original, é uma daquelas narrativas que apanhamos a meio e nos deixa antes de ser atingido um fim, e em que vemos o que resta da Humanidade a tentar manter a réstia de humanidade que lhe resta…
Larcenet opta de novo por um traço realista, duro, agreste, visceral mesmo, num preto e branco contido mas profundamente revelador, tingido aqui e ali de suaves tons amarelo-alaranjados na chama de uma lamparina ou no metalizado de uma lata de Coca-Cola, breves vislumbres do que um dia foi a vida que apenas tornam mais opressivo o ambiente pós-apocalíptico que ele recria. E recria, sim, porque a sua visão da obra de McCarthy tem muito de pessoal e original, pois dá forma e feitio ao pesadelo que o livro apenas descreve, tornando mais palpável, próxima e real a violência, física e psicológica, profundamente incómodas e chocantes, que o leitor prolonga ao preencher com mais horror o espaço em branco entre as vinhetas que desfilam com lentidão atroz pelo prolongar da angústia e da insanidade que transbordam de “A Estrada”.
Entre o pai e o filho há uma imensa cumplicidade, mesmo que aquele sobreviva para garantir que poupará o filho do pior, de forma definitiva, se tiver de ser; há rotinas já criadas de viver a olhar precavidamente para todos os lados, num mundo em que são os restos, o lixo que arrastam com eles, que podem definir a sobrevivência ou não.
Como diz a criança, mais do que uma vez, eles são ‘os bons’, mas também há ‘maus’. Aos nossos olhos, o que os distingue, é se já cederam completamente à selvajaria latente… ou ainda não.

A Estrada
Manu Larcenet, segundo Cormac McCarthy
Ala dos Livros
160 p., 32,90 €


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F. Cleto e Pina

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Os mortos-vivos estão de regresso

Histórias de superação e sobrevivência em cenário zombie. Editora portuguesa Devir retoma publicação da saga criada por Robert Kirkman.

Corria o ano de 2010 e a febre zombie de “The Walking Dead” espalhava-se pelos pequenos ecrãs mais depressa do que a epidemia de origem desconhecida que provocava o ressuscitar dos mortos. Esta série televisiva, terminada uma dúzia de anos depois, adaptava o comic homónimo, estreado em 2003 e que viria a contar 193 números até 2019. Publicada em português pela Devir a partir da estreia na TV, a banda desenhada somaria 14 volumes, correspondentes às primeiras 84 revistas originais. Ao contrário do habitual, não foi a falta de vendas que provocou a paragem da edição nacional, mas sim a subida exponencial das exigências por parte da editora norte-americana.
Agora, já com as dez temporada de “The Walking Dead” vistas – e nalguns casos revistas – a Devir regressa a esta BD, num formato cada vez mais corrente: tomos volumosos, no caso com mais de meio milhar de páginas, que permitirá concluir a edição lusa num intervalo de tempo razoável.
O enredo de base é conhecido: Rick Grimes, polícia numa pequena localidade, acorda sozinho no hospital, após ter sido baleado na sequência de uma perseguição automóvel. Como nós, descobrirá que os mortos começaram a ressuscitar e se alimentam de carne humana. Rick irá reencontrar a mulher e o filho e, juntamente, com outras pessoas, aprender a sobreviver na nova realidade.
Embora na sua origem esteja uma temática querida ao cinema de terror, “The Walking Dead” é muito mais um conjunto de histórias humanas de superação e sobrevivência, do que a sua componente fantástica, embora esta exista e seja determinante.
Com base num grupo heterogéneo, em constante mudança, Robert Kirkman, o argumentista, vai mostrando como o ser humano, em função das suas crenças, vivências e capacidade de adaptação, vai reagindo perante o desconhecido e as adversidades que encontra.
Este regresso à BD dá-se com o tomo que corresponde a boa parte da estadia do grupo de Rick na prisão e à entrada em cena de personagens marcantes como Michonne e o Governador, sendo uma oportunidade de reencontrar ou descobrir as personagens originais mas, mais do que isso, perceber como banda desenhada e televisão, seguindo parâmetros semelhantes, têm opções diferentes tanto em termos narrativos como na introdução, eliminação ou evolução das personagens.

The Walking Dead – Coletânea 2
Kirkman, Adlard e Rathburn
Devir
544 p., 39,90 €


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F. Cleto e Pina

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