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Da espada ao avental

Com “Hägar, o Horrendo”, massacres e pilhagens tornam-se divertidas

Manuel Caldas, depois da notável restauração das pranchas originais dos primeiros volumes do “Príncipe Valente” e do western humanista “Lance”, duas obras realistas, propõe agora o humor de “Hägar, o horrendo”, um clássico das tiras diárias norte-americanas. Comum aos três projectos é o cuidado apaixonado posto nas edições e o grande respeito pela obra original e (consequentemente) pelo autor.
Hägar é um vicking atípico, ou não divida ele o tempo entre as actividades inerentes à sua “profissão” – invadir, pilhar, saquear – e as banais tarefas domésticas quotidianas a que Helga, a sua mulher – que usa cornos maiores, símbolo do poder entre os vickings de Browne – o obriga.
Com um universo reduzido – inspirado na sua família e amigos – que junta a Hägar e Helga, Hamlet, o filho letrado, Honi, a filha que sonha com proezas guerreiras, Lute, o trovador pacifista que aspira ao seu coração, Eddie (nada) Felizardo, companheiro de batalhas, e poucos mais, Browne explana um humor simples mas eficaz, assente num traço arredondado, simpático, expressivo e desprovido de pormenores desnecessários, com divertidos anacronismos e desfecho sempre surpreendentes, parodiando não só a época de Hägar mas também o quotidiano de todas as épocas, mostrando que dentro de cada um de nós há um pouco deste vicking permanentemente insatisfeito e rude mas também submisso, e transformando as pilhagens e massacres cometidos pelos vickings, um dos mais violentos povos da História, em algo divertido por que ansiamos página após página.

Obra da maturidade

Hägar, um vicking de sorriso inofensivo e feliz – Ano I
Dik Browne
Editor: Manuel Caldas; Distribuição: Gradiva

Não é vulgar, mas quando Dik Browne (1917-1989) imaginou Hägar, em 1973, já passara os 55 anos. Até aí, tivera uma carreira mediana, com um Prémio Reuben (1963) para a tira familiar “Hi and Lois”, criada e escrita por Mort Walker, como ponto alto.
E sem alguns problemas de visão, que o levaram a querer precaver o futuro da família, talvez Hägar nunca tivesse saltado duma folha de papel para 1900 jornais de todo o mundo, privando-o do Reuben de 1973, da fama e dinheiro que nunca tivera e da completa realização pessoal e artística.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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Clássico da BD portuguesa dos anos 70 reeditado

Wanya – Escala em Orongo” foi lufada de ar fresco no panorama nacional; Obra chegou a estar no index dos livros que não convinham ao regime

Corria o ano de 1973. Às livrarias portuguesas, com a surpreendente tiragem de 5000 exemplares, chegava “Wanya – Escala em Orongo”, uma banda desenhada com “uma mensagem pacifista de carácter universal”, escrevia então Vasco Granja. Com um traço realista, assente numa cuidada técnica de pontilhado e numa planificação dinâmica e diversificada, “Wanya…” abria novos caminhos para a BD portuguesa que, no entanto, nunca foram trilhados.
Agora, 35 anos depois, a reedição, pela Gradiva, cumpre o desejo da pintora Maria João Franco de “dar a conhecer a obra de Nelson Dias”, seu marido e desenhador da obra, já falecido, e “revelar a importância de “Wanya” a uma nova geração”.
Que, conta Augusto Mota, o argumentista, então professor em Leiria, “nasceu por acaso, na onda da nova BD francesa dos anos 60. O Nelson” – também professor – “elaborou seis pranchas, para experimentar a “gramática” da narração figurativa e desafiou-me para criar um texto que o levasse a conseguir uma história com princípio, meio e fim; ao longo de três anos fomos discutindo a estrutura gráfica da obra, para que texto e desenho se complementassem”. Acrescenta Mª João que o marido “trabalhou exaustivamente na obra, desenhando preciosa e apaixonadamente cada centímetro da página, como se de uma teia imensa se tratasse”.
Para modelo da heroína, Dias usou a esposa que gostou “de se ver no papel, como Vânia, a jovem mulher símbolo de um sonho para um mundo melhor; aquele deveria ser o “papel” de todos nós: resgatar o Mundo para os vindouros, para o Homem como ser total, pondo as suas capacidades ainda por descobrir ao serviço da paz e da justiça”.
A reacção “dos leitores e da crítica ultrapassou as expectativas”, relembra Mota: “ficaram seduzidos pelo rigor e beleza do desenho; o texto era quase só pretexto para que o leitor-espectador não se perdesse naquele universo de imagens”. Para o qual são unânimes ao indicar uma influência: “A Saga de Xam”, de Nicolas Devil”.
Apesar da temática abordada em “Wanya” – a libertação de um povo oprimido – aludindo a “um clima de opressão, que todos sentiam, embora sem qualquer intenção panfletária da nossa parte”, garante o argumentista, “não houve problemas com a censura”. Mas podia ter havido, “se não se tivesse dado o 25 de Abril, porque foi incluída no “índex” dos livros que não convinham ao regime”.
Curiosamente, foi a revolução que tornou Vânia, heroína de uma só BD, porque “o Nelson foi destacado para a reestruturação da Escola do Magistério Primário de Leiria, e deixou de ter tempo e disponibilidade de espírito”, recorda a esposa, pelo que “a segunda aventura, “O Povo dos Espelhos”, passada noutra dimensão, atrás da realidade que os espelhos reflectem”, revela Augusto Mota, se ficaria “apenas por seis pranchas, a cores”.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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Avril Lavigne + Lupin III

Lupin the IIIrd (1 e 2 de 5)
Monkey Punch
Mangaline Edições
600 pp., pb, 12,50 €

Avril Lavigne – Pede 5 desejos (1 de 2 )
Joshua Dysart (argumento) e Camilla d’Errico (desenhos)
Gradiva
154 pp, cor, 12,50 €

Estamos no século XXI. Toda a Europa foi invadida pelos manga (banda desenhada japonesa)… Toda? Não! Um pequeno rectângulo à beira-mar plantado, resiste ainda e sempre, orgulhosamente, ao invasor. Mas, ao contrário de Astérix e demais gauleses, a resistência portuguesa de vez em quando abre brechas e o invasor consegue penetrar neste mercado pequeno e inconstante, pouco apetecível para os editores nipónicos habituados a números com muitos zeros.
Caracterizados por terem centenas ou milhares de páginas, personagens de olhos grandes, muitas linhas indicadoras de movimento e privilegiarem a acção ao diálogo, os manga têm neste momento dois títulos em curso de edição entre nós. A Mangaline – formada exclusivamente para a edição de manga – recentemente voltou com um clássico com 40 anos, “Lupin the IIIrd”, um manga de acção e humor, inspirado no célebre ladrão de casaca francês, Arséne Lupin, quanto aos roubos espectaculares e impossíveis, e em James Bond, para a tecnologia avançada, as perseguições frenéticas e a presença recorrente de belas mulheres. Protagonizado por Lupin, um gangster cáustico e impiedoso e um sedutor irresistível, sempre um (ou mais) passos à frente da polícia ou dos seus inimigos, tem a coadjuvá-lo uma galeria, curta mas rica, de personagens secundárias, que tem à cabeça o incompetente inspector Zenigata, que alguém equiparou ao desajeitado Clouseau. Numa edição que merecia ter sido mais cuidada, no que à impressão e tradução diz respeito, e que mantém o sentido original de leitura, da direita para a esquerda e do “fim” do livro para o “princípio” – por isso tantos exemplares são expostos com a anónima contracapa para cima! – “Lupin the IIIrd” apesar de datado nalguns aspectos (desde logo no contido erotismo – sempre são 40 anos…), conta com argumentos leves e divertidos e decorre em bom ritmo graças ao desenho ágil e vivo e à planificação dinâmica.
Quanto a “Pede 5 desejos” é quase um paradoxo: se por um lado exemplifica algo cada vez mais vulgar nos EUA e França, devido à popularidade dos manga junto do público feminino (algo que os comics de super-heróis e a BD franco-belga nunca conseguiram) e dos adolescentes, a criação de manga – enquanto um género com características próprias – por autores ocidentais, por outro lado acaba por só se aproximar dos quadradinhos japoneses pelo desenho, simpático e expressivo, já que, narrativamente, segue modelos ocidentais, devido ao ritmo apropriadamente lento que lhe permite desenvolver e aprofundar o carácter de cada interveniente.
Equiparável ao shojo (manga destinado ao público juvenil feminino), cola-se à popularidade de Avril Lavigne, inspiradora do projecto e personagem enquanto amiga imaginária da protagonista, Hanna, e à temática das suas canções – as dificuldades de vida dos adolescentes – para traçar um retrato realista da enorme solidão que boa parte dos jovens vivem nos nossos dias, perdidos em frente a ecrãs (de TV, computador, telemóvel…), onde assumem identidades e vidas que não passam de sonhos ou ilusões, mas incapazes de um relacionamento normal com seres humanos de carne e osso. Hanna vive assim, solitária, fechada sobre si própria, até que a encomenda num site de um pequeno demónio que, qual lâmpada de Aladino, lhe pode conceder 5 desejos, muda a sua vida. Mas é este toque de fantástico que a torna mais real, levando-a a falhar quando se esforça por acertar, descobrindo-se quando se aproxima dos outros, procurando oferecer aos que a rodeiam a felicidade que deseja para si, hesitando entre o altruísmo e o egoísmo na concretização dos tais cinco desejos.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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Jornal de Notícias

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Quando a BD reinventa a literatura

Fagin, o judeu
Will Eisner
Gradiva
12,00€
128 pp.

E de repente, sem muito bem se saber porquê, a banda desenhada volta a descobrir os clássicos da literatura. Quer no mercado franco-belga, onde editoras como a Delcourt (ver texto ao lado), a Soleil, a Casterman e a Glénat estão a lançar títulos ou colecções dedicada às suas adaptações aos quadradinhos, quer nos EUA, onde a Marvel, detentora do Homem-Aranha ou do Quarteto Fantástico, anunciou também uma colecção com as mesmas premissas. Ou até no Brasil, onde a Conrad acaba de editar a (re)leitura que Marcati fez de “A Relíquia” de Eça de Queiroz. Mas estas adaptações não se anunciam como as maçudas e maçadoras versões de tempos idos, que nem BD eram, quando desenhadores anódinos ilustraram (mal) os textos integrais; hoje, elas estão entregues a autores de créditos firmados, que as escolheram como projectos pessoais em que se empenharam, transmitindo através de uma forma de expressão diversa o espírito da obra original e os sentimentos e as emoções que a sua leitura lhes proporcionou.
Marcando uma relação diferente entre a BD e a Literatura, surgem “Long John Silver #1”, de Dorison e Laufray (Glénat/Futuropolis), homenagem a “A Ilha do Tesouro”, de Stevenson, que explora as eventuais aventuras daquele pirata, ou “Fagin, o judeu”, de Will Eisner.
Como pressuposto, Eisner, nesta obra da velhice (data de 2003, tinha o grande mestre norte-americano já 86 anos), pretende desmontar a visão estereotipada dada dos judeus na versão original do romance clássico de Charles Dickens, “Oliver Twist”. Para isso, não (re)conta aos quadradinhos aquele drama vitoriano, mas sim a vida (inventada…) do seu vilão, Fagin (“o judeu”), mas não para o absolver dos crimes que cometeu nem sequer para o justificar; divergindo de Dickens, traça um retrato díspar de Fagin, mostrando-o não como a incarnação do mal mas como um ser humano como outro qualquer, com dúvidas, contradições e incertezas, empurrado para o crime pelas vicissitudes de uma vida que lhe foi por demais madrasta, equiparável, afinal, ao retrato delicodoce que Dickens nos deixou de Oliver Twist, com o senão de que a Fagin a fortuna nunca sorriu… ou sorriu demasiado tarde.
Para isso, aproveita a história base, num interessante diálogo com a literatura, para fazer um retrato expressivo da opressiva Londres vitoriana onde ela decorre e para onde transporta o leitor, das vielas lúgubres e esconsas às ricas mansões, através da riqueza, precisão e expressividade do seu traço, aqui servido por tons sépia, que nada retiram da força dos jogos de luz e sombra em que se mostra mais uma vez mestre incontestado, bem como no domínio do ritmo narrativo marcado à custa da forma como compõe as pranchas, construindo uma narrativa forte e bem estruturada através da qual defende o seu ponto de vista e tenta suavizar a imagem exageradamente anti-semita que o texto original de Dickens transmite, mesmo que involuntariamente.
E constrói, assim, uma obra de crítica social e de costumes e também histórica, na qual contextualiza a presença judaica numa Londres tolerante e liberal mas fechada, mostrando como os judeus da Europa Central (os asquenazitas, judeus de segunda, atrás dos (mais ricos) judeus ibéricos – sefarditas), eram empurrados para vidas feitas de esquemas e expedientes nada honestos, que estiveram ma origem da imagem estereotipada dos judeus, ainda hoje comum.


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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