Categoria: Destaques

Doações — Um Breve Relance

A Bedeteca Comicarte, promovida pela Comissão de Jovens de Ramalde nos anos 90, constituiu um acervo de livros graças aos apoios que, na altura, foram conseguindo com a doação de editoras como a Asa, a Edinter, a Meribérica /Liber, a Editorial Futura, a Verbo etc.

O acervo que a Bedeteca hoje já disponibiliza — herdado do trabalho desenvolvido nessa altura — não estaria disponível se não tivesse existido essa colaboração e boa vontade, e o relançamento do projeto passa, portanto, também por reativar essa solidariedade e interesse por parte das editoras nacionais.

Estamos seguros de que, como nós, também estas estarão convictas que a leitura pública é sempre a base do crescimento dos hábitos de leitura. E que o crescimento dos hábitos de leitura leva ao crescimento de um público interessado, que desenvolve o seu gosto e as suas preferências e contribui para o crescimento do mercado e do consumo. Em nosso entender, a disponibilização de títulos de banda desenhada não será excepção.

Algumas destas editoras são já nossas parceiras neste objectivo.
Já aderiram, portanto, a este desafio.
E porque consideramos que nada melhor do que a visão do editor, pedimos aos seus responsáveis que escolhessem uma peça — um livro — de entre aqueles que doaram e que desenvolvessem num curto texto aquilo que lhes parece de realçar nessa publicação.

Deixamos aqui alguns dos testemunhos já produzidos:

Para uma “bedeteca” é fundamental existir algum conteúdo que seja meta-conteúdo de BD, reflexão sobre a BD ou mesmo, reflexão sobre as reflexões sobre a BD. E quando esse conteúdo vem sob forma ele próprio de BD, melhor ainda! “Em Busca do Tintin Perdido”, do brasileiro Ricardo Leite”, que editámos no nosso país, é exactamente isso, uma viagem semi-autobiográfica pela vida, pelas experiências, pela imaginação do autor, reflecte sobre uma vida a reflectir sobre BD, as suas personagens, autores e obras. E para mais, magnificamente desenhado, um livro que faz surgir o panorama da BD das últimas décadas de uma maneira tremendamente viva.

—José Hartvig de Freitas, A Seita


Livro: L’Orso Borotalco e la Bambola nuda italiana.
Este livro obedece a um ritmo sequencial de 4, 3 e 1 imagem, pontuado por diálogos entre um jarro e um copo ao longo do arco de um dia, segundo uma linguagem entre a banda desenhada e o cartoon.

—Diniz Conefrey, Quarto de Jade


Escolho o “Cantiga d’Erasmo”.
Este fanzine foi elaborado no outono de 2018, por ocasião de ter sido artista convidada na YCON Paris desse mesmo ano. Não querendo aparecer sem algo inédito, elaborei uma história curta sobre dois estudantes de erasmus em viagem de fim-de-semana que se perdiam do seu grupo. Os dois rapazes têm agora de voltar sozinhos para a cidade onde se encontram a estudar, descobrindo coisas que têm em comum e partilhando algumas dores pelo caminho. Foi auto-publicada por mim em inglês e português. O fanzine recebeu posteriormente uma menção de bronze no 13th Japan International Manga Award em 2020.

—Daniela Viçoso


Pedem-me que escreva um parágrafo sobre um dos livros por mim doados, sobre o que nele gosto. Pois bem, não vou escrever sobre um livro mas antes sobre uma colecção: “Príncipe Valiente”, que tive de publicar em espanhol – sim, porque mais do que doador, sou o editor dela – por não ter mercado em português. São 17 volumes com mais de 1700 pranchas da melhor banda desenhada de sempre. A melhor, nem mais nem menos! É a edição com que sonhei durante mais de vinte anos, a edição que, não importava em que língua fosse, ansiava que algum editor fizesse; uma edição que reproduzisse os desenhos do seu autor com nitidez cristalina. Quando descobri que ninguém a fazia porque os detentores dos direitos de autor não tinham em boas condições o material que o permitisse, compreendi que teria de ser eu a fazê-la, restaurando o material existente. E, numa aventura que aqui não há espaço para contar, consegui iniciá-la! Depois, demorei 15 anos a completá-la, tive de lutar contra ventos, marés e ogres, mas consegui! Saiba o leitor, portanto, que entrar na obra imortal de Hal Foster pela primeira vez através da minha edição é quase pisar terreno sagrado.

—Manuel Caldas, Libri Impressi


Para Além dos Olivais – Um livro que reúne 12 autores que abordam o bairro dos Olivais na altura da comemoração dos 600 anos de Santa Maria dos Olivais. São 12 visões sobre 12 espaços como o aeroporto, os “perdidos e achados da PSP, o Shopping Center… em que destaco os trabalhos de Ana Cortesão e Luís Lázaro, sem querer desvalorizar as outras belas peças. Este livro tem um significado pessoal, saiu em 2000, ano em que entrei para a Bedeteca de Lisboa e uma das primeiras tarefas era chatear o Designer que estava atrasado na entrega do livro. Atrasado!? Leiam a BD do Nuno Saraiva, coordenador da antologia, a relatar os seus míticos atrasos deste trabalho, é hilariante, se for verdade, que ele tenha conseguido percorrer a construção, a celebração e a ressaca da Expo 98. Na BD, a auto-depreciação de Saraiva é balançada com a generosidade de João Paulo Cotrim. Ouve-se perfeitamente a voz de Cotrim… Mas… espera lá… é possível ouvir vozes em  BDs? Nesta sim, tal como na página 141 de “Alguns dias com um mentiroso” de Davodeau mas isso já é outra história…

—Marcos Farrajota, Bedeteca de Lisboa


Sabe-se lá porquê mas há uma década, Tiago da Bernarda, um estagiário jornalismo (e sem formação em desenho) fartou-se de ser explorado pelo sistema falido da imprensa social e começou a fazer tiras de crítica a discos de música portuguesa, criando um alter-ego felino, o Gato Mariano, e publicando em plataformas digitais ou em fanzines auto-editados. A Chili Com Carne juntou toda essa produção num “luxuoso” livro que se tornou num compêndio para quem gosta de música. Do Punk ao Hip Hop, dos GNR aos 10 000 Russos, os discos são arranhados ou acariciados pelo Gato. Depois do livro ter saído, o bichano começou a miar para outras bandas mais “fashion”, políticas e sociais, para além de ter arranjado um sobrinho pós-irónico, o Bruninho, para expor as contradições geracionais. Alguém se digne a comemorar os 10 anos de existência deste gato desbocado!

—Chili Com Carne


Quando este livro saiu um suposto crítico de BD não entendia porque havia publicado esta obra em capa dura, ao que parece ela não era digna de tal. Ó feliz ironia, o que diria esse senhor dos dias de hoje, em que se edita os maiores horrores estéticos em desastres ecológicos de capa dura, a cores e papeis grossos? Que diria essa pessoa se soubesse que o Garth Ennis, em Helsínquia, disse-me que não só estava admirado pela edição como lembrava-se da qualidade do trabalho? Christopher Webster auto-publicou o “Malus” em quatro números num fanzine. Ele, Janus e Mike Diana foram a razão que me fizeram criar a MMMNNNRRRG. Sabia que as suas obras únicas iriam desaparecer por serem publicações marginais. Webster que participou em projectos comerciais – há pouco tempo descobri que ele tinha sido publicado em Portugal “Astrologia para principiantes” (Bertrand; 1997) – incluindo uma BD para a grande Kodansha, fartou-se dos formatos pré-estabelecidos das indústrias e realizou este “Malus”, que é uma terra-de-ninguém. Demasiado comercial para o “underground”, demasiado bizarro para o “mainstream”, é um conto de fadas que come pedaços de sci fi, que digere Mangá e regurgita super-heróis para voltar a comer uma “sucessão de factos biológicos”. Merece uma capa dura, claro que sim! E o verniz localizado, by the way!

—Marcos Farrajota, editor da MMMNNNRRRG (2000-20)

Clube de Leitura: Palestina de Joe Sacco

Os Companheiros da Penumbra

por David Pontes

Há um tempo em que o mundo parece um lugar aberto a todas os sonhos e possibilidades e, simultaneamente, o destino onde os nossos medos moram, à espera de se tornarem a realidade. Um tempo em que forjamos carácter, conjugamos forças, exorcizamos destinos marcados. Procuramos companhia para a viagem, naqueles com quem podemos partilhar códigos indecifráveis para a maioria e uma imparável vontade de não nos vermos diluídos na multidão.

Esse tempo chama-se juventude e é nela, que de uma forma empolgante, Nunsky nos leva a mergulhar no seu “Companheiros da Penumbra”.

É desse tempo, em que podíamos ser músicos, editores, organizadores de espectáculos, estilistas, realizadores de cinema, autores de banda desenhada, sem ter de gastar uma vida em cada uma dessas vocações, que nos fala esta banda desenhada ímpar. Anos feitos de conspirações à mesa do café, sessões de cinema em casa de amigos, palcos improvisados em casas de alterne, incursões ao Portugal “real”, excessos e amores suspirados, conquistas e derrotas amargas. Mesmo para quem não se entregou às trevas da nação gótica, mas abraçou uma qualquer tribo urbana, “Companheiros da Penumbra” é um local perfeitamente reconhecível, nostalgicamente familiar.

Até porque esta é uma viagem a um Porto muito diferente da cidade conquistada pelo turismo de hoje. Um tempo de passagem em que especialmente a Sé e a Ribeira, mas também os centros comerciais decadentes, encontravam novos habitantes nas hordas de juventude que iam enchendo bares e discotecas, onde antes havia armazéns e estabelecimentos comerciais. Nessa altura, a cidade, com todas as suas promessas adiadas de cosmopolitismo, pertencia-lhes, era o lugar onde se erguia alto a bandeira do direito à diferença.

Nunsky consegue unir isto tudo com um traço distintivo e sólido e com uma banda sonora irrepreensível, que faz de “Companheiros da Penumbra” um excelente parceiro para regressar a esses tempos negros e brilhantes.

Exposição

Na Galeria Mundo Fantasma, de 10 de Fevereiro a 24 de Março

Companheiros da Penumbra

All we ever wanted was everything
All we ever got was cold

—Bauhaus

Nunsky

Companheiros da Penumbra
Companheiros da Penumbra.

Nunsky é o pseudónimo de um autor de BD que desde há vários anos tem dado à estampa obras que surpreendem pela qualidade e coerência. Companheiros da Penumbra, a sua última obra (edição da Chili com Carne) é já um livro de culto e um sucesso de público à medida do mercado português.

No âmbito da apresentação da Bedeteca, a Galeria de BD e Ilustração Mundo Fantasma apresenta uma exposição dos originais desta obra e promove uma conversa em torno dela e da cena alternativa do Porto dos anos 80/90, com a presença de Esgar Acelerado (editor de fanzines e de discos), Carlos Moura (alternador de discos), José Alberto Pinheiro (professor e ex editor de fanzines) e Miguel T. (proprietário da Piranha, ex-Peresgótika Records e Fanzine, ex-O Arco do Cego — programa de rádio).

Data

10 de Fevereiro às 15h00

Companheiros da Penumbra

Nunsky, um criador nortenho (Maia) que só participou em três números do zine Mesinha de Cabeceira nos tempos das fotocópias…

Assina o número treze por inteiro, um número comemorativo dos 5 anos de existência do zine e editado pela Associação Chili Com Carne. Essa banda desenhada, 88, pode ser considerada única no panorama português da altura (1997) mas também nos dias de hoje, pela temática psycho-goth e uma qualidade gráfica a lembrar os Love & Rockets ou Charles Burns.

O autor nunca mais se voltou para bd desde então, tanto que preferiu tornar-se vocalista da banda psychobilly The ID’s cujo o destino é desconhecido.

Nunsky foi um cometa na bd underground portuguesa e como se sabe os cometas costumam voltar… em 2014 eis que aparece um romance gráfico de 144 páginas: Erzsébet!!! Seguido por mais dois livros metidos no Mesinha de Cabeceira. Novo silêncio e eis ele em 2022 com Companheiros da Penumbra, uma obra-prima na BD portuguesa.

Links de Interesse

Chaputa!

Chili Com Carne

Piranha

Cão Raivoso na Bedeteca

Cão Raivoso

O fanzine, acabado de sair do prelo, vai ser apresentado no próximo Sábado na Bedeteca!
O clube de banda desenhada Cão Raivoso convida-vos para o lançamento do primeiro número do fanzine, que terá lugar Sábado, dia 10 de Fevereiro no Mercado do Contra, pelas 18h (Centro Comercial Brasília, Loja 503).
O Mercado do Contra contará com uma feira de fanzines, exposições e conversas com diversos autores do panorama nacional português.

Clube de Leitura: Palestina de Joe Sacco

Palestina, de Joe Sacco, é um dos mais paradigmáticos exemplos de jornalismo em formato de Banda Desenhada. Baseado numa viagem do jornalista Joe Sacco à Palestina entre 1991 e 1992, inicialmente tendo como intenção uma reportagem autobiográfica, mas que rapidamente se reflete num interesse pelo lado humano das histórias individuais de cidadãos nativos.

Vindo dos EUA (mas original de Malta), Sacco consegue dialogar com os dois lados, reportando sobre os pontos de vista israelita e palestiniano. Sacco apercebe-se que foi influenciado a identificar-se mais com os israelitas e os judeus americanos através da propaganda americana, que, num viés claro, noticiava actos terroristas da Frente Popular pela Libertação da Palestina, sem mostrar imagens humanizadas do povo palestiniano. Assim, neste livro, recolhe testemunhos, focando histórias individuais, reconhecendo ao mesmo tempo o seu estatuto de privilégio para fazer aquela reportagem, numa constante sátira de si mesmo.

Pelas várias zonas por onde passa, conhece e dá-nos a conhecer retratos de famílias separadas, histórias de encarceramento, de destruição, de tortura e de imposição de colonatos judeus em terras palestinianas. Reporta também, entre outros temas, sobre a estrutura das prisões, onde se formam comunidades autogeridas e sobre o estatuto da mulher na sociedade palestiniana, apontando sempre um olhar crítico aos media sedentos, nos quais ele mesmo se insere.

Tentando compreender o conflito, mas sabendo-se ocidental e exterior a ele, Sacco retrata um povo e território que, desde 1948, é pilhado e sujeito a uma violência genocida.

Neste clube do livro, falaremos sobre o potencial da BD para levar a cabo um retrato jornalístico, numa inversão daquilo que normalmente são os seus tópicos convencionais. Que particularidades da BD são aqui exploradas e que dimensão traz a estas imagens que representa, que a fotografia ou o texto, isolados, não podem trazer? Atentaremos à linguagem gráfica e aos enquadramentos de Sacco e de que forma nos transportam para a geografia local, as paisagens, roupas e detalhes comuns do ambiente. E, por fim, de que forma é que o autor se insere (desenhado e escrito) na própria narrativa?

— Goteira

Palestine
Palestine de Joe Sacco, Fantagraphics.
Organização

Goteira – Colectivo de BD

Data

17 de Fevereiro de 2024, 17h00

Local

Bedeteca
Shopping Center Brasília
1.º andar, Loja 503