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Georges Bess: “Não escolho os livros que adapto pelos monstros, mas…”

Depois de “Drácula”, a sua adaptação de “Frankenstein” acaba de ser editada em português

Georges Bess aproveitou a oportunidade para ficar mais uns dias e descobrir os encantos da cidade do Porto.
Foi a oportunidade para um encontro com o Jornal de Notícias, durante o qual evocou a sua longa carreira e, em especial, os dois livros disponíveis em português em edições de A Seita : “Drácula” e “Frankenstein”, este último lançado naquele evento.
Nascido em 1947, recorda que desenha “desde pequeno”. Aos 20 anos encontrou “uma sueca e atrás do amor foi para a Suécia”. Evoca “um país muito acolhedor e interessante” mas, “como tinha de ganhar a vida, o desenho pareceu uma via interessante”, Começou por ilustrar “livros de aprendizagem de francês”, mas depois decidiu “tentar a sorte na banda desenhada”. Foi contactando “diversos editores”, até que um dia lhe pediram para “substituir um autor que estava doente” As substituições foram-se sucedendo, permitindo-lhe demonstrar uma das suas principais características: a versatilidade do traço, capaz de se adequar às necessidades.
Do seu período escandinavo, evoca “a participação na versão local da revista ‘Mad’, a personagem ‘Dante’ e, principalmente, o desenho de ‘The Phantom’ (‘Fantasma’), lido e relido em criança, nas tiras recortadas dos jornais”. Mais uma vez, a característica camaleónica do seu traço prestou-se a desenhar “o herói durante cerca de 15 anos, nas diferentes épocas e locais de acção, por vezes aproximando-se do traço de autores que admirava, como Joe Kubert”. Inicialmente “destinado ao mercado sueco, seria distribuído depois na Escandinávia e em dezenas de países”. Numa época em que “se trabalhava sem contrato”, nunca viu “um cêntimo de royalties dessas publicações”.
De regresso a França no final da década de 1980, conheceu o chileno Alejandro Jodorowsky, cineasta, dramaturgo, escritor e argumentista de BD que lhe propôs a série “Le Lama Blanc” (parcialmente editada em Portugal). Foi um “conhecimento fortuito, mas a sua proposta veio ao encontro de uma viagem ao Tibet que tinha realizado anos antes” e o influenciou fortemente”. No mesmo período, com o mesmo escritor desenvolveu uma surpreendente parceria: “um conjunto de histórias infantis publicadas no “Le Journal de Mickey” francês”.
O sucesso da série, inicialmente “pensada para um filme que nunca se realizou, prolongaria a colaboração em ‘Anibal Cinq’ e ‘Juan Solo’”. Mais uma vez, “os estilos diferentes permitiam diversificar e distrair”.
A partir daí, Bess tornou-se “autor completo”. Recorda que “a partir de certa altura, Jodorowsky apenas fornecia a ideia base oralmente”, tendo ele que “escrever o guião e os diálogos”. Por isso, pensou que se já fazia “tudo sozinho, também podia criar histórias próprias”.
Há poucos anos, na sequência de uma operação ao estômago, tendo que ficar imobilizado durante seis meses, começou a fazer desenhos, “a preto e branco, num estilo fantástico; depois, ia ampliando a imagem inicial por várias folhas, obtendo enormes quadros. Eram exercícios de desenho puro, sem qualquer objectivo. Um galerista viu-os, gostou muito e propôs expô-los; foram vistos por um editor que me convidou a fazer uma adaptação de ‘Drácula’ naquele estilo”.
Bess confessa que a princípio não se sentiu “muito atraído” mas, “após uma visita a Londres, onde passeou “no bairro em que Bram Stoker viveu, nas ruas que ele percorreu” e visitou “um cemitério extraordinário e casas góticas muito interessantes, senti uma enorme vontade de o desenhar”.
Depois de “Drácula” (edição portuguesa de A Seita), seguiu-se “Frankenstein”. “São duas obras lidas muito novo, marcantes e cuja influência ainda persiste”.
Gostou de estar no Maia BD, “um pequeno festival recém-nascido, simpático e acolhedor”, mas a sua preferência vai para estar em casa a desenhar. Trabalha “de manhã até ao fim da tarde, de domingo a sábado. Um dia, o desenho a lápis, no seguinte a passagem a tinta. Um álbum de 200 páginas, demora 400 dias a concluir. Mais o tempo de escrita!”
Com “Drácula”, começou por “ler o original”. Depois, colocou-o de lado e desenhou-o “como tinha sentido, realçando as emoções, sem utilizar demasiado o texto original”. Mesmo assim, em obras claramente visuais, mas Bess afirma ter “tentado valorizar a escrita, mantendo alguns termos da época, mas actualizando a linguagem para que seja compreendida hoje”.
A opção pelo preto e branco vem do facto “que torna os desenhos mais fortes, dá-lhes maior impacto”. Nestas obras, mudou “o formato, a técnica, a planificação é muito diversificada, as cenas podem estender-se por páginas duplas, sem seguir modelos mais tradicionais. Poder fazê-lo, ter esta liberdade, é magnífico!” revela claramente satisfeito.
Actualmente, trabalha numa terceira adaptação de “um romance clássico, de um dos mais conhecidos autores franceses”, que ainda não pode divulgar pois encontra-se no segredo dos deuses e dos editores, entre os quais A Seita que já garantiu a edição portuguesa. Curiosamente, como as outras duas, de certa forma também tem um ser deformado como protagonista. Bem-disposto, Bess adianta que não escolhe “as obras a adaptar por terem um monstro, mas…”


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F. Cleto e Pina

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O pequeno problema das últimas semanas

A difícil gestão de sentimentos ao lidar com a perda
Primeiro romance gráfico da portuguesa Joana Mosi aborda a questão do luto

Júlia é trintona, professora de educação física, vive na antiga casa da avó, junto à praia e tem um problema: um mangusto – supõe ela – que apareceu no seu jardim e destruiu a pequena horta caseira que tinha começado.
Este é o resumo, tão intrigante quanto desconcertante, de “O mangusto”, o primeiro romance gráfico da portuguesa Joana Mosi, editado pelo colectivo A Seita.
Porque, na realidade, “O mangusto” é um mergulho no íntimo de Júlia e na forma como ela está a gerir – ou não – o luto relativo à perda do seu marido Paulo. Um luto que a torna quase invisível aos olhos do irmão Joel, mais novo e game designer, que vive com ela desde que ficou desempregado e passa o dia a jogar videojogos; que torna irritante a relação com a mãe protectora e todos os seus conselhos; que a faz cumprir de forma intermitente as responsabilidades profissionais na escola em que está colocada. Em resumo, um estado de negação, que a afasta de tudo e de todos, e em que a passagem do tempo não torna menos dolorosas as recordações em que teima em refugiar-se – ou afogar-se. E de que tenta fugir, ao tornar quase obsessiva a questão do eventual mangusto, problematizando-a e fugindo às eventuais soluções.
Se a temática, delicada, não é nova, “O mangusto” seduz pela sensibilidade com que Joana Mosi a aborda e, acima de tudo, pelo tratamento gráfico que apõe ao seu relato, gerindo curtos diálogos, conversas monocórdicas ou silêncios ensurdecedores com uma surpreendente maturidade.
Por outro lado, a narrativa raras vezes é linear, com presente e passado a alternarem, ou com diversos momentos da actualidade a sucederem-se nas mesmas páginas que, dessa forma, assumem vários planos de acção, numa planificação aparentemente indefinida e anárquica que impede a acomodação do leitor.
Devemos atentar em especial na forma como Joana Mosi gere os tempos, o movimento
e a dicotomia som/silêncios, numa narrativa quase sempre lenta, proporcionando uma leitura profunda e detalhalista, apesar da aparente simplicidade do traço utilizado, que se arrasta no tempo, de forma insidiosa, a um tempo próxima e incómoda, pelo modo como transborda sentimentos e emoções de tão difícil gestão.

O mangusto
Joana Mosi
A Seita
184 p., 25,00 €


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F. Cleto e Pina

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Declaração de amor à banda desenhada

Ricardo Leite demorou meio século a concretizar o sonho de fazer BD
Conversa iniciática com os autores que admira e as personagens que o fizeram sonhar

Ricardo Leite é um autor brasileiro, conhecido pelos seus trabalhos de ilustração de capas de discos e de design, para além de ser o CEO da famosa Crama Design Estratégico. E é também o autor de “Em busca do Tintin perdido”, que A Seita em boa hora decidiu editar em Portugal.
O autor define este seu livro como ‘uma ficção autobiográfica’, mas vendo a forma como revela o seu amor pela banda desenhada, é evidente que o seu relato ultrapassa a simples ficção, é reflexo de uma vida real.
Leitor de ‘quadrinhos’ desde os mais tenros anos, aos 13 anos esteve quase a cumprir um sonho, conhecer Hergé, mas o criador de Tintin estava de férias quando o jovem passou por Bruxelas. Esse desencontro, de alguma forma marcou-o e, anos depois, uma estadia de dois anos em França, para tentar afirmar-se como autor, levou-o de desilusão em desilusão, até a falta de fundos e a próxima paternidade o terem obrigado a regressar ao seu país. Aí, a vida real sobrepôs-se ao sonho e durante décadas tornou-se um dos melhores no seu ramo, sem nunca deixar de ser leitor de BD.
Finalmente, aos 55 anos, mudanças profundas levaram-no numa viagem iniciática a Bruxelas, onde pode espreitar o mais fundo de si mesmo, para perceber se os seus sonhos ainda estavam vivos, porque, quando estamos numa encruzilhada, precisamos de descobrir se as nossas aspirações e anseios ainda têm força para nos fazer voar ou estamos já irremediavelmente presos à monotonia do quotidiano.
Para Leite, o resultado foi este “Em busca do Tintin perdido”, uma obra que levou uma década a executar e uma vida a preparar e que se afirma como uma belíssima declaração de amor à banda desenhada, nos seus inúmeros estilos, temáticas e propostas, e um passeio por um século de História desta arte.
São duas centenas de páginas intensas e profundamente emocionais, resultantes de um mergulho no seu âmago e de um passeio inquiridor e de descoberta da banda desenhada, ao longo das quais Leite, em simultâneo autor e personagem, dialoga no papel com os autores que ao longo da vida foi admirando, convive com as personagens que o fizeram viver momentos únicos e maravilhosos e, procurando no seu interior, redescobre a capacidade de ser feliz e ser capaz de fazer viver o seu sonho – e nós com ele.

Em busca do Tintin perdido
Ricardo Leite
A Seita
220 p., 26,00 €


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F. Cleto e Pina

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Tudo o que sempre quiseram saber sobre Tex

Autor português analisa 70 anos do western há mais tempo em publicação
Obra com quase 500 página é um autêntico compêndio sobre o herói

Se em mercados em que a banda desenhada tem maior expressão e indústria são vulgares obras que reflectem sobre ela própria, os autores ou os heróis, devido à pequena dimensão do mercado português são poucas as edições que abordam esta temática.
Uma das excepções – e também uma das mais significativas – é “Tex – Mais que um herói”. uma edição da cooperativa A Seita, com assinatura de Mário João Marques.
Obra monumental, com quase meio milhar de páginas, à dimensão dos mais de 70 anos que o western mais antigo da banda desenhada em publicação ininterrupta justifica, consegue apresentar na sua concepção três facetas que nem sempre andam reunidas, mas que se revelam muito importantes numa obra que se pretende de referência.
Refiro-me a uma aturada pesquisa histórica para garantir a credibilidade do que fica escrito; ao conhecimento profundo – e, com certeza, aprofundado durante a sua escrita – que o autor revela das centenas de histórias protagonizadas por Tex, pela forma como evoca cenas, momentos ou pormenores de várias delas; finalmente e em linha com esta última, é evidente a paixão de quem escreve pela trajetória do ranger, transmitindo ao longo das páginas essa emoção.
Desta forma, Mário João Marques proporciona aos apreciadores de Tex, em particular, e aos interessados pelo western e pela banda desenhada, em geral, um mergulho completo e apaixonado por Tex, em capítulos profusamente ilustrados que abordam o mito, o herói, os companheiros e adversários, a evolução da série ao longo do tempo, as diferentes colecções e edições, as capas – as originais, as brasileiras (das edições em que muitos leitores portugueses descobriram Tex) e as portuguesas… – os ambientes, as histórias mais marcantes e os autores, argumentistas e desenhadores, que fizeram de Tex o que ele ainda é hoje.
Como é evidente, uma obra desta dimensão, que esmiúça e aprofunda até ao seu âmago a série, tem de ser degustado ao ritmo pausado das cavalgadas de Tex e Kit Carson nas primeiras páginas das histórias em que é a aventura que vai ao encontro dos heróis.
E, num mundo ideal, em que o tempo parasse sempre que lêssemos um livro, seriam muitas as aventuras a (re)descobrir estimulados pelo que sobre elas escreve Mário João Marques.

Tex – Mais que um herói
Mário João Marques
A Seita
488 p., 40,00 €


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F. Cleto e Pina

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Trair o original para o recriar melhor

Protagonismo no feminino acentua o tom trágico do original de Shakespeare
Obra autoral faz brilhar tanto o original quanto a sua versão aos quadradinhos

Com a adaptação de romances em banda desenhada de novo em alta, assiste-se a dois tipos de abordagem: a aposta numa leitura mais simplificada e linear para tentar seduzir os mais jovens ou aproveitar a oportunidade para fazer brilhar tanto o original quanto a sua versão aos quadradinhos.
“Macbeth, Rei da Escócia”, que A Seita acaba de disponibilizar, segue a segunda via. Tendo como ponto de partida uma obra de William Shakespeare que muitos poderiam citar como tal mas menos seriam capazes de resumir e situar, assume uma traição ao dramaturgo inglês, pois o argumentista, Thomas Day, declara ter tomado como ponto de partida a tradução de François-Victor Hugo, que data de 1866. Ou seja, mais de 200 anos depois da obra original e numa outra língua, embora “tendo sempre como fonte… o texto na língua original” nas citações, numa versão que define como de “alta traição”.
“Macbeth” é uma narrativa de tom trágico, baseada num regicídio e nas respectivas consequências, ambientada numa Escócia rude e feudal. Nela, acompanhamos um general apreciado por todos que, empurrado por uma profecia de três bruxas que o apontam como futuro Rei da Escócia, mata o seu senhor e ocupa o seu lugar, desposando ainda a sua esposa.
Em nova traição, Day faz desta a (verdadeira) protagonista: ambiciosa, implacável e impiedosa, disposta a tudo em nome do sonho de ser rainha, mesmo que isso se torne um pesadelo para os demais.
A obsessão, a violência e a submissão implícita que exalam da obra são enfatizadas pelo grafismo de Sorel, num misto de realismo, rudeza e traço agreste que sublinha o lado demoníaco de Lady Macbeth e o sofrimento e divisão interiores do novo monarca, acentuando o peso dos seus remorsos, em consequência das acções funestas de que foi cúmplice ou perpetrador em nome da pulsão sexual, do desejo e do fascínio que sobre ele exerce a futura co-soberana. Em simultâneo, Sorel confere ao relato a dimensão épica que era exigida, adicionando a uma planificação aparentemente caótica, vinhetas de comprimento duplo em paginas contiguas para criar cenas sobredimensionadas que retratam planos de conjunto, a desolação dos cenários escoceses, o tom sangrento e sanguinário de determinados momentos ou tão só a força visceral das personagens.

Macbeth, Rei da Escócia
Thomas Day e Guillaume Sorel
A Seita
124 p., 25,00 €


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F. Cleto e Pina

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Maia BD traz banda desenhada de volta ao Norte do país

Primeira edição do festival decorre de 16 a 18 de Junho

A primeira edição do Maia BD, que vai decorrer de 16 a 18 de Junho, no Fórum da Maia, promete trazer ao Norte do país o melhor da banda desenhada.
Iniciativa da Câmara Municipal da Maia através do Pelouro da Cultura, com organização da cooperativa editorial A Seita, anunciou já três das exposições que vão estar patentes: uma retrospectiva de “As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizza Boy”, de Filipe Melo e Juan Cavia, cuja edição integral, pela Companhia das Letras, deverá chegar às livrarias em meados de Junho; “Auto da Barca do Inferno”, de Joana Afonso, que a Levoir lançará na sua colecção “Clássicos da Literatura em BD” ainda este mês; “Juventude”, de Marco Mendes, que, ao contrário das outras duas, estará de 6 a 30 de Junho na Biblioteca Municipal Doutor José Vieira de Carvalho, também na Maia.
A organização garante ter em agenda cerca de vinte autores convidados, incluindo nomes internacionais relevantes, tendo confirmado numa primeira fase a presença de Filipe Melo, Joana Afonso e Marco Mendes.
Numa espécie de aquecimento para o Maia BD, no próximo dia 18 de Maio, às 21h30, o público vai ter a oportunidade de conhecer em primeira mão a programação do festival, no Grande Auditório do Fórum da Maia. A seguir a essa apresentação, serão exibidas as três curtas-metragens nacionais que fizeram parte da short list para os Óscares da Academia de 2023, “Ice Merchants” de João Gonzalez, “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves e “O Lobo Solitário” de Filipe Melo. Os dois primeiros estarão presentes para uma conversa moderada por Elsa Cerqueira, seguida por uma sessão de perguntas e respostas com o público.
O Maia BD, de entrada gratuita e aberto ao público de todas as idades, incluirá lançamentos de novidades editoriais, exposições, cinema de animação, ilustração, cosplay, workshops e feira do livro, marcando assim o regresso de um grande evento de BD ao Norte de Portugal.
Aliás, antes do Amadora BD, do Festival Internacional de Beja e da Comic Con, o Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto foi pioneiro na organização de um grande certame do género no nosso país. Fundado pelo Projecto Comicarte, que depois se associou à Comissão de Jovens de Ramalde, antes de dar origem à Associação do Salão Internacional de BD do Porto (ASIBDP), o evento portuense teve dez edições, anuais entre 1985 e 1989 e bienais entre 1991 e 1999, tendo por elas passado grandes nomes da BD mundial, como Miguelanxo Prado, Dave McKean, Ed Brubaker, Marjane Satrapi, François Schuiten, Benoît Peeters ou Don Rosa.


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F. Cleto e Pina

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Por detrás das vinhetas desenhadas

Colectânea de entrevistas com autores portugueses actuais
Conhecer melhor as pessoas possibilita uma nova abordagem às obras que criam

A conhecida expressão “espaço branco [ou vazio] entre as vinhetas” define de forma extremamente feliz a magia desta arte narrativa que, na sua essência, vive da forma como o leitor preenche mentalmente esse espaço para sequenciar a narrativa, ‘adivinhando’ o que que decorre entre cada duas vinhetas.
Tentando fazer uma transposição do conceito, posso escrever que o livro “Conversas de Banda Desenhada” tenta preencher o que existe por detrás das vinhetas, ou seja, dar a conhecer um pouco de quem são os criadores de histórias aos quadradinhos.
Não sendo caso único nem original – são famosas, por exemplo, as longas conversas de Numa Sadoul com Hergé ou Franquin – é uma das primeiras vezes que tal é feito de forma continuada com autores portugueses, não em conversas muito extensas, como no caso dos livros de Sadoul, mas transcrevendo em duas ou três dezenas de páginas encontros relativamente breves, mas ricos na abordagem ao quotidiano e ao processo criativo de alguns dos mais marcantes autores nacionais de banda desenhada da actualidade.
A iniciativa partiu de João Miguel Lameiras e Carina Correia, que conversaram com Filipe Melo/Juan Cavia, Joana Afonso, Jorge Coelho, Luís Louro, Marco Mendes, Nuno Saraiva, Osvaldo Medina e Paulo Monteiro.
O que os atraiu para a banda desenhada, o seu posicionamento em relação a esta arte e à realidade portuguesa, o local, horário e forma de trabalhar, as suas influências, a génese das obras mais significativas, os projectos em mão e diversas curiosidades, têm agora resposta, nalguns casos permitindo até uma nova abordagem ou visão das obras já lidas e tornando mais reais e humanos os nomes que nos habituámos a ver impressos nos livros, mas que soavam impessoais e distantes pelo total desconhecimento que temos das pessoas.
Esta edição de A Seita, co-financiada pelos programas Compete 2020, Portugal 2020 e o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, inclui igualmente reproduções de pranchas dos diversos entrevistados e ilustrações, nalguns casos inéditas, como é o caso dos desenhos feitos por cada autor, representando-se a si próprio e aos entrevistadores, de alguma forma, passando-os e também a si próprios para ‘o lado de cá’ das vinhetas.

Conversas de Banda Desenhada
Carina Correia e João Miguel Lameiras
A Seita
184 p., 17,90 €


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F. Cleto e Pina

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O regresso surpreendente inesperado feroz do Capitão Nemo

Partir do que é conhecido para seduzir o leitor
Personagens de Julio Verne e Rudyard Kipling encontram-se para salvar o mundo

Um primeiro passo para conquistar o leitor, é dar-lhe como ponto de partida algo que ele já conheça, no caso de “Nautilus”, o célebre submarino do Capitão Nemo e este vilão visionário que Jules Verne criou em “20000 léguas submarinas” e fez regressar em “A ilha misteriosa”. E, se versões em banda desenhada de romances célebres têm sido utilizadas para tentar conquistar leitores para a literatura, esta é uma outra via que até poderá ser mais eficaz e sedutora. De caminho para Nemo, os autores deste livro co-editado entre nós pela Arte de Autor e A Seita, aproveitam outro facto conhecido e histórico: o confronto latente entre a Grã-Bretanha e a Rússia nos últimos estertores do século XIX, pelo controlo de territórios indianos.
À frente do relato, como protagonista, surge Kimball O’Hara, o Kim imaginado por Rudyard Kipling no romance homónimo, um irlandês com sangue indiano e mentores tibetano e britânico, agora adulto e agente dos ingleses. Tão fascinante pela sua origem dupla e díspar quanto pela forma decidida e independente como actua, Kim vê-se apanhado numa armadilha que fez dele traidor e rastilho para o conflito, sendo a solução recuperar uns documentos num navio afundado a grande profundidade. A única forma de o conseguir é recorrendo ao desaparecido capitão Nemo, prisioneiro numa prisão na Sibéria, e ao seu mítico submarino Nautilus.
Com este pressuposto, o argumentista Mathieu Mariolle e o desenhador Guénaël Grabowski levam-nos numa grande aventura, com ritmo alucinante, personagens fortes, complexas e convincentes, situações impossíveis e perseguições de cortar a respiração, em cenários exóticos, imponentes ou deslumbrantes, fiquem eles no topo de montanhas geladas ou no mais profundo dos mares, com Kim a tentar impedir mais uma guerra fratricida entre os impérios dos czares e britânico e conseguir provar aos que o perseguem e aos que o conhecem, a sua inocência.
O traço realista de Grabowski e a forma como ocupa muitas das páginas até às margens, esquecendo o habitual contorno branco, contribui para a espectacularidade deste volume inicial de “Nautilus”, cujo final abrupto deixa os leitores sedentos da continuação deste tríptico, que ostenta a aventura e a grandiosidade das obras de Verne e o suspense dos grandes romances de espionagem.

Nautilus #1 – O teatro de sombras
Mariolle e Grabowski
Arte de Autor/A Seita
68 p., 19,95€


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F. Cleto e Pina

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Meio século aos quadradinhos

Editores e autores portugueses tentam mostrar-se em Angoulême

Como todos os anos desde há meio século, com excepção dos anos da pandemia, o último fim-de-semana de Janeiro acolhe mais uma edição do Festival de BD de Angoulême, o mais mediático e representativo do velho continente.
Durante quatro dias, a pequena cidade do sudoeste de França é invadida por dezenas de milhares de fãs dos quadradinhos que na sua peregrinação anual duplicam a população local em busca de livros, autógrafos e autores ou simplesmente para participarem da grande festa da BD, mesmo que, progressivamente o festival se tenha afastado das propostas mais comerciais e das preferências do grande público.
Isso reflecte-se nas listagens de nomeados para os vários prémios e nas exposições propostas. Este ano, o maior destaque vai para a retrospectiva dedicada à canadiana Julie Doucet, distinguida em 2022 com o Grande Prémio da cidade pelo conjunto da sua obra, uma autora subversiva e provocadora, que fez o seu percurso nos fanzines e em publicações underground, questionando a identidade feminina em obras auto-biográficas, com um toque surreal.
Os mundos fantásticos de Philippe Druillet e as histórias realistas da costa-marfinense Marguerit Abouet, marcam um absoluto contraste temático em mais duas mostras da edição deste ano que também propõe uma exposição imersiva sobre a cor, evocando uma das exposições do primeiro festival, em 1974, “A estética do preto e branco na BD”.
Atento ao crescimento exponencial do mangá, um segmento de mercado que triplicou entre 2019 e 2021 e é já o mais importante em França, Angoulême preparou três exposições subordinadas a esta temática, as monográficas consagradas a Rioichi Ikegami, o veterano criador de “Crying Freeman”, e a Junji Ito, mestre do mangá de horror, e uma terceira sobre a série “Ataque dos Titãs”.
Para além das exposições oficiais, conferências, apresentações e sessões de autógrafos e dos enormes pavilhões insufláveis onde funciona a Feira do Livro, ao virar de cada esquina, em lojas, restaurantes e até na catedral, é possível descobrir outras mostras e apreciar belos originais.
Mas o festival continua a ser um local de encontro de editores para compra e venda de direitos. É verdade que com as novas tecnologias, “a maior parte dos negócios já estão fechados”, revelou ao Jornal de Notícias João Miguel Lameiras, um dos sócios da cooperativa editorial A Seita, que mesmo assim leva marcadas “4 ou 5 reuniões, para negociar títulos para 2024, pois o programa de 2023 já está carregadíssimo”. Com muitos autores portugueses no catálogo, a intenção “é mostrar a produção nacional, mas não está nada apalavrado”, conclui.
Joana Afonso, actualmente a desenhar uma versão de “O Auto da Barca do Inferno”, a publicar este ano, confessa que devido ao muito trabalho que tem tido, vai “numa de turista”, mas “com trabalhos na mala para mostrar, se se proporcionar”.
O mesmo propósito leva também a Angoulême Filipe Abranches, autor e editor da antologia “UMBRA”, integrado “numa comitiva informal de portugueses encabeçada pelo Paulo Monteiro [director do Festival de Beja]”. Recorda Angoulême como “um espaço de reencontro de velhos amigos da BD”, onde pretende ter “reuniões informais”, uma vez que a “UMBRA” tem que se mostrar, procurar a sua internacionalização e angariar novos autores estrangeiros”. Revela ainda ter a sua “novela gráfica “Jungle!!!” à venda no stand da Breakdown Press” e que dará autógrafos “na edição polaca – “Selwa!!!” – no stand da Timof Comics, o editor que mais tem editado BD portuguesa no mundo”.
Finalmente, Ricardo Magalhães, da Ala dos Livros, pensa que “apesar das novas tecnologias é importante visitar anualmente um ou dois certames internacionais ligados ao livro.” Por isso, “a ida a Angoulême vai ser uma oportunidade para falar com colegas internacionais e aferir o que pensam dos desafios que se colocam à edição, nomeadamente com o aumento generalizados dos custos”. Revela que recebeu “nas últimas semanas diversos pedidos de reunião de novos contactos editoriais” e que leva “as obras dos autores nacionais que publicamos para divulgar e tentar que sejam publicados noutras línguas”. E termina com uma mágoa: “enquanto em Portugal são os editores e/ou os autores a mostrar os seus trabalhos, há países cujos autores são representados em Angoulême por instituições oficiais que têm mecanismos de apoio e divulgação à edição no estrangeiro”.


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F. Cleto e Pina

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A roupa com que a veste

Marini eleva o género negro a um outro patamar
Pranchas em tons de negro, branco e cinza com pinceladas pontuais de vermelho fogo definem o registo

Filadélfia 1950. Terry Slick é um gangster dos duros, um lobo solitário, especialista em assaltos ousados e rentáveis. Os acasos da vida – ou o que dela fez – obrigam-no a trabalhar para Rex Hollow, um dos senhores do crime locais, para pagar uma dívida do seu irmão.
Se, por razões diversas, a relação entre ambos nunca foi a ideal, torna-se mais tensa quando Slick, após ausência para combater na Europa, durante a II Guerra Mundial, descobre que Deb Caprice, a sua grande paixão, permanente e mal resolvida, é agora noiva de Hollow.
História negra e violenta, de paixões avassaladoras, ódios eternos e sucessivos ajustes de contas, “Noir Burlesco” parece não se desviar muito de obras primas que o cinema, a literatura e a própria BD já nos proporcionaram. A diferença para outras, está na roupa com que o autor a veste.
E não me refiro aos provocadores vestidos de Deb, curtos, decotados e reveladores q.b., nem das soberbas pinceladas de vermelho vivo cor de fogo nos seus cabelos e nos seus lábios sensuais, que atiçam todas as paixões e empurram mais para as chamas do inferno os que se aproximam demasiado deles ou os que deixam correr à solta os pensamentos inflamados que despertam.
São estas as roupagens a que me referia: o desenho duro mas atraente, a negro e branco com uma multiplicidade de cinzentos intermédios, conseguidos à custa de aguadas, que recriam magistralmente o lado sombrio da época e acentuam o registo que Marini adoptou nesta criação. Nela, Deb brilha a grande altura, num conjunto que graficamente prima pelo dinamismo das cenas, pela forma como o desenho e a utilização esparsa da cor nos conduzem por elas, muitas vezes sem necessidade de qualquer texto ou com este reduzido a diálogos, curtos, certeiros e incisivos, com a acção a acelerar ao ritmo das viaturas que os protagonistas conduzem, ao som dos tiros que ecoam em noite escura, em locais sombrios ou da violência latente que facilmente explode ao mínimo pretexto.
Primeiro de dois volumes, numa cuidada edição da Arte de Autor e de A Seita, “Noir Burlesco” é tudo o que prometia o traço do conceituado Marini e mais ainda pela forma como ele explora a limitada paleta cromática por que optou, e deixa o leitor (quase) capaz de matar pela conclusão.

Noir Burlesco 1/2
Marini
Arte de Autor/A Seita
104 p., 24,00€


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F. Cleto e Pina

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