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Contar sempre a mesma história

O eterno triângulo amoroso, com novas roupagens. Mestria gráfica de Marini faz a diferença em “Noir Burlesc.

Há quem defenda que só existe um punhado de histórias para contar e o que varia são as épocas, os locais e as roupagens com que são vestidas as personagens que as vão interpretar. E acima de tudo, a forma como são (re)contadas.
Por essa ordem de ideias, “Noir Burlesco” é (mais) uma variação de uma temática tantas vezes abordada, aquela que tem por base o eterno triângulo amoroso.
Apertando a grelha, desta vez, Marini, o seu autor, localiza a acção nos Estados Unidos pós-II Guerra Mundial – mais precisamente em 1950, em Filadélfia – e entrega o protagonismo a um trio: Terry Slick, um bandido que gosta de trabalhar sozinho, segundo o seu próprio código de honra, de regresso à cidade após ter sido desmobilizado; Rex, um dos chefes mafiosos locais, com quem Slick tem contas a ajustar, a mais recente das quais ele ter noivado com a sua ex-namorada; e esta última, a bela e sensual Deb Caprice, que deixa os leitores a suspirar, de olhos esbugalhados, e se revela capaz de tudo para servir os seus próprios propósitos. A par deles, passa perante os nossos olhos uma forte galeria de personagens secundárias, que se revelam fundamentais para o desenvolvimento do relato e para dar diversidade, maior conteúdo e consistência ao todo.
Uma das principais diferenças na narrativa de Marini, é a mestria gráfica com que dá vida à sua narrativa, com um traço realista e credível, que representa na perfeição os cenários urbanos, os automóveis de época ou a figura humana, tudo pintado com uma variada gama de tons de cinzento e aplicações pontuais de vermelho vivo que tanto podem destacar buracos de bala ensanguentados como os lábios sensuais de Caprice.
Para além disso, Marini deixa que a imagem prevaleça sobre o texto, reduzindo este aos diálogos essenciais, curtos, assertivos e acutilantes, aqui e ali com uma pitada de humor negro, inevitável num registo policial do mesmo tom, duro e violento quanto baste, com algumas surpresas no percurso.

A edição do segundo tomo deste díptico, de novo em co-edição entre a Arte de Autor e A Seita, permite que a leitura das 240 páginas da história seja feita como ela pede: de seguida, sem paragens nem interrupções, para a fruirmos completamente outra vez, mas pela primeira vez.

Noir Burlesco 2
Marini
Arte de Autor/A Seita
136p., 29,50€


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F. Cleto e Pina

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Criador de “O Expresso do Amanhã” regressa com nova história de superação

Confronto entre um pastor e um lobo, nos Alpes franceses, é o tema da obra

Em Portugal, Jean-Marc Rochette é conhecido como autor dos dois volumes de “O Expresso do Amanhã” (Levoir, 2020), a banda desenhada que esteve na origem da série homónima da Netflix, uma história de sobrevivência de uns quantos eleitos ou privilegiados, transformada em luta de classes no interior de um extenso comboio, que circula a grande velocidade, numa viagem interminável pela superfície coberta de neve do planeta Terra.
Revelado na época áurea da mítica revista “(À Suivre)”, Rochette tem agora editado pela Arte de Autor “O Lobo” que, curiosamente, é também uma história de sobrevivência, de novo numa paisagem regularmente coberta de neve, os Alpes franceses.
Desta vez, são só duas as personagens no terreno, um pastor e um lobo, que as circunstâncias específicas – a ocupação de um e o instinto de outro – e os acasos provocados pela natureza colocam violentamente em lados opostos, num crescendo natural mas bizarro, que culminará numa longa, arriscada e potencialmente mortal perseguição.
Como elementos adicionais à trama, surgem a solidão do homem, traumatizado por em pouco tempo ter perdido o filho, na guerra, e a mulher, como consequência, a dívida de gratidão do animal para com ele, por ter sido poupado quando ainda era uma cria, e o facto de os lobos serem uma espécie protegida no parque natural alpino em que decorre a acção.
Com a imponência dos contrafortes rochosos como cenário, o traço de Rochette revela-se mais duro, agreste e conscientemente impreciso do que é habitual, retratando de forma muito realista as dificuldades de vida e deslocação, o lado selvagem do animal e as belezas naturais que são simultaneamente perigosas armadilhas.
Alternando sequências mudas, que pontuam os ciclos naturais e evidenciam como nascimento e morte fazem parte da mesma realidade, com monólogos do protagonista e narrativa em off impessoal, que reforça e se sobrepõe ao que as imagens transmitem, para acentuar a mensagem, Rochette proporciona-nos uma leitura intensa e de certa forma dolorosa, por nos sentirmos divididos entre o homem e o lobo, afinal apenas seres vivos a tentarem sobreviver, cujo final nunca é evidente, até ao desfecho em que a aparente pacificação contrasta com o trágico pormenor evidenciado.

O Lobo
Jean-Marie Rochette
Arte de Autor
112p., 25,00€


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F. Cleto e Pina

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Suspensos de uma folha de papel de carta

Uma jovem independente em plena época vitoriana
“Colecção Zidrou” distingue um dos mais interessantes argumentistas actuais

Se no cinema é normal seguir actores, na banda desenhada geralmente procuram-se determinados desenhadores. Mas, tal como na Sétima Arte há quem escolha os filmes preferencialmente pelos seus realizadores, também na BD há leitores que fazem as suas escolhas com base no nome do argumentista.
Neste particular, Zidrou é um dos nomes a reter e, se as suas obras de tom humano estão hoje espalhadas por diversos catálogos nacionais, em boa hora as editoras A Seita e Arte de Autor se uniram para lhe dedicarem uma colecção de que “Emma G. Wildford” é o tomo mais recente.
Ambientada durante o reinado da rainha Vitória, com toda a carga que isso implica em especial sobre as mulheres, tem como protagonista a jovem Emma, que contraria todo o espírito da época. Autónoma, aspirante a escritora, independente e decidida tem, no entanto, a vida suspensa do regresso do noivo, Roald Hodges, membro da National Geographic Society, desaparecido durante uma expedição à Lapónia.
Perante o silêncio da renomada organização e as tentativas de consolação e comiseração por parte dos mais próximos, Emma decide partir à aventura, em busca do seu amado.
Para trás, num clima de desaprovação total, deixa tudo e também uma carta que Roald lhe deixou caso não voltasse e que nunca quis ler, acreditando que isso mantinha vivo o seu noivo – ou pelo menos a sua esperança. A viagem, por locais inóspitos, de clima rigoroso, será feita num misto de descoberta e afirmação, com Zidou a aproveitar para caracterizar, com realismo e um humor contido, a jovem Emma bem como uma época plena de regras castradoras e preconceitos, num relato não isento de surpresas cujo desfecho vai bem para lá do acabar “bem” ou “mal”.
Graficamente, Edith com um traço simples, despido de pormenores desnecessários mas muito eficiente em termos narrativos dá vida a uma Emma que atrai e dispõe bem o leitor, embora possa revelar-se algo desconcertante pela forma como tantas vezes decide tomar em mãos as rédeas do seu destino.
Leitura de conforto, pelo tom optimista que apesar de tudo dela exala, “Emma G. Wildford” na edição portuguesa, a exemplo da original francófona, tem – literalmente – um exemplar da famosa carta que pontua todo o relato e cuja leitura, a fazer apenas no final, confere um sentido acrescido ao que foi sendo narrado.

Emma G. Wildford
Zidrou e Edith
A Seita e Arte de Autor
104 p., 24 €


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F. Cleto e Pina

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Humor, suspense e “vozes na cabeça”

Psicóloga bipolar investiga homicídio em Barcelona
Jordi Lafebre assina registo policial com traço dinâmico e sensual

A Arte de Autor deu a conhecer Jordi Lafebre aos leitores portugueses como desenhador da ternurenta e bem-disposta série familiar “Verões Felizes” e, depois, como autor completo, na comédia romântica “Apesar de tudo”, que só podia ser narrada em BD, dada uma brilhante característica da sua concepção.
Agora, regressa de novo a solo em “Sou o seu silêncio”, num registo policial ambientado em Barcelona, com uma protagonista feminina, Eva, uma psicóloga algo excêntrica com traços de bipolaridade que, como tantas vezes neste género, dá por si inesperadamente envolvida numa investigação de homicídio.
Tudo começa quando é convidada por uma amiga e ex-paciente para a acompanhar a uma reunião para leitura de um testamento, no seio da família Monturós, com muitas posses e socialmente relevante, como produtora do espumante que leva o seu nome. A atravessar uma fase difícil e sujeita a avaliação psicológica para ser decidido se pode continuar ou não exercer a sua profissão, devido às vozes que “ouve na sua cabeça”, embora reticente, Eva acaba por aceitar.
Inevitavelmente, acontece um homicídio, o que provoca a entrada em cena de uma detetive bastante discreta para investigar o crime e todos os que aspiram à herança e são por isso potenciais suspeitos.
Atravessando-se uma e outra vez no caminho da detective, Eva, com as suas mudanças de humor, a constatação das decisões pouco sensatas que frequentemente tomou e os fantasmas interiores com que se debate, leva à introdução de notas dissonantes de humor ou suspense numa intriga bem urdida, em que Lafebre vai expondo cada um dos membros da família Monteiro, bem como uma teia de interesses pouco claros, negócios mais ou menos esconsos e os ardis que levam a cabo para se posicionarem face ao pecúlio em jogo.
O relato, em que a vida particular da protagonista se mistura com a investigação, é servido pelo traço dinâmico, elegante, sensual e apelativo a que o autor nos habituou, com o qual dá vida a este teatro de costumes, arrastando-nos em loucas correrias ou mergulhando-nos nos momentos depressivos que Eva vai vivendo, ao mesmo tempo que a investigação vai avançando de forma inesperada e surpreendente.

Sou o seu silêncio
Jordi Lafebre
Arte de Autor
112 p., 25,95 €


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F. Cleto e Pina

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Desta vez, a culpa foi do gato

E se as telas que atribuímos a Van Gogh tivessem outro autor?
Um mergulho irreal e bem-humorado nos meandros da criação

E se afinal, as sublimes pinturas que desde sempre atribuímos ao génio de Van Gogh, afinal não tivessem sido pintadas por ele, mas sim… pelo seu gato?! É esta a base de “Vincent e Van Gogh”, que a Arte de Autor acaba de editar em versão integral.
O autor é Gradimir Smudja, nascido na então Jugoslávia, em 1954, que desenvolve aquela tese, de forma bem-humorada e original, partindo do salvamento do felino pelo artista. Como recompensa, este último desata a pintar, ao mesmo tempo que entre os dois se desenvolve uma relação tóxica com Vincent (o gato) a ser dominante e tirano e a submeter e reduzir à sua pequenez aquele que conhecíamos como pintor.
Explorando factos históricos, a relação com outros artistas da época, as técnicas, cores e telas que (re)conhecemos como da autoria de Van Gogh e explicando até a famosa perda da orelha, Smudja acaba por nos levar por um passeio com tanto de histórico quanto de irreal numa época-chave da História da Pintura europeia, subvertendo e fantasiando enquanto faz a narração. Vivendo como um pobre diabo, Van Gogh só depois de morto, por mãos travessas, irá assinar as telas e ascender à fama que em vida não gozou, espelhando uma realidade comum a outros criadores.
Se o relato inicial, “Vincent e Van Gogh”, tinha tido edição nacional há duas décadas, já “Três Luas”, segundo relato deste sólido volume, era até agora inédito em português. Partindo da ressurreição do pintor e do gato, quais zombies, fá-los embarcar numa viagem pelo tempo e pelas artes porque, para lá da pintura, desta vez também são evocados o cinema, a escultura, a poesia e a própria banda desenhada, numa corrida desenfreada em que tempo e espaço se confundem.
Vladimir Smudja, de quem a Arte de Autor já tinha proposto “Mausart” no ano transacto, uma versão ficcionada das vidas de Salieri, Mozart e Stradivarius, com animais antropomorfizados, direccionada primeiramente para um público juvenil, neste díptico mais uma vez utiliza a técnica de pintura a pastel em que é mestre para desafiar leitores maduros a deixarem-se mergulhar nos meandros da criação, nas questões de autenticidade e propriedade intelectual e, de forma subjacente, nas próprias telas e noutras obras famosas e reconhecidas.

Vincente e Van Gogh (integral)
Vladimir Smudja
Arte de Autor
120 p., 27,505 €


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F. Cleto e Pina

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Lado a lado com Hercule Poirot

O detective belga protagoniza investigação com trama original
Colecção dedicada a adptações em BD de romances de Agatha Christie ultrapassa a dezena de títulos

E de forma paulatina, a colecção que a editora Arte de Autor dedica às adaptações em BD dos romances policiais de Agatha Christie, acaba de ultrapassar a dezena de volumes.
Se dela constam já o célebre “No início, eram dez…” e obras protagonizadas por Miss Marple ou por Tommy e Tuppence, também conhecidos como os Beresford, a verdade é que, como seria expectável, é o detective belga Hercule Poirot que protagoniza a maior parte delas, sete no total, incluindo já este “Jogo Macabro”, o décimo-primeiro tomo da colecção, recém-editado.
Como era apanágio da escritora britânica, também neste caso a trama está longe de seguir os cânones do género ou situações triviais, tomando como ponto de partida original um assassinato fictício a ser resolvido pelos visitantes de uma quermesse, enigma esse que, no entanto, rapidamente dará origem a um cadáver, transformando-se a situação hipotética num verdadeiro crime.
Presente para de alguma forma servir de júri ao inusitado desafio, a convite da organizadora, uma velha amiga sua, e assumindo depois as despesas da investigação, o detective de pequena estatura e cabeça em forma de ovo vai ter de interpretar o que lhe vai sendo dito, distinguindo entre verdades, meias-verdades e mentiras, estudando posturas corporais e atitudes e gestos que à maioria passam despercebidos, para descobrir o(s) culpado(s) num ambiente senhorial que evoca tempos passados e exibe uma aristocracia em plena decadência.
Como é inevitável nos relatos do género, nem tudo o que parece é e nem todos se apresentam como realmente são, podendo o leitor acompanhar o detective nas suas deduções e, quem sabe, chegar à solução antes dele a expor.
A adaptação do original, o desenho e a cor são da responsabilidade de Marek que já tinha assinado a ilustração de outro volume desta colecção, “Hercule Poirot: Encontro com a morte”. Com um traço semi-caricatural, mais à-vontade na representação dos cenários do que do corpo humano bem proporcionado, e com uma paleta de tons suaves, Marek consegue concretizar o que nestes casos é fundamental: fazer com que a trama original funcione de forma autónoma no suporte escolhido, a banda desenhada.

Hercule Poirot – Jogo Macabro
Marek, segundo Agatha Christie
Arte de Autor
64 p., 18,95€


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F. Cleto e Pina

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Preferir não fazer nada

O direito à individualidade em oposição à ditadura da(s) maioria(s)
José-Luís Munuera adapta conto clássico de Herman Melville

Todos fazemos opções no dia-a-dia, mesmo que a opção seja não optar. Obriga-nos a isso a nossa vida, a nossa sobrevivência, a nossa família, as nossas obrigações profissionais… em suma, a nossa responsabilidade social.
Bartleby, um simples escriturário de Wall Street, é o protagonista de um conto com a assinatura de Herman Melville, publicado pela primeira vez em 1853. Contratado para copiar documentos, distingue-se pela forma metódica e diligente como trabalha. Demais, dirão alguns pois, consagrado à sua responsabilidade, passando os dias – e depois as noites – sentado à sua secretária, em frente a uma janela que dá para a parede de tijolos do edifício contíguo, quando lhe é proposto realizar outras actividades, sejam elas tarefas profissionais básicas como ir aos correios ou comparar cópias em conjunto ou até convites para ir beber um copo com o patrão, reusa liminarmente. Ou melhor, nega-se dizendo: “Preferiria não o fazer”. E responde de forma tão liminar quanto educada, desarmando qualquer reacção do seu patrão, dividido entre a vontade de o despedir e a inação devido à incompreensão pelo sucedido.
A versão em banda desenhada, que assume o título original, “Bartleby, o escriturário – Uma história de Wall Street”, chega por estes dias às livrarias nacionais numa edição da Arte de Autor e tem a assinatura do espanhol José-Luís Munuera, que alguns, muito bem, associarão a uma fase não muito antiga de “Spirou”. Trata-se da sua segunda investida na adaptação de um clássico da literatura, depois da sua visão provocadora de “Um conto de Natal”, de Dickens, em que entrega, de forma bastante conseguida, o protagonismo a uma mulher.
Em “Bartleby”, Munuera utiliza o mesmo traço semi-caricatural, que acentua o ridículo e o inesperado da situação, recorrendo a uma traço mais realista, esbatido, para recriar os fundos e os cenários em que a acção decorre, realçando, assim, duplamente, os protagonistas e os respectivos diálogos.
História mordaz sobre o direito à individualidade em oposição à ditadura da(s) maioria(s), mesmo que esta seja a sociedade em que vivemos e para com a qual temos obrigações e responsabilidades, “Bartleby” apenas não se transforma num total absurdo devido ao seu final trágico que leva o leitor a questionar quem realmente sai vencedor no final…

Bartleby, o escriturário
José-Luís Munuera
Arte de Autor
72 p., 18,50 €


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F. Cleto e Pina

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Este mundo será sempre dele

Aos 84 anos, Hermann continua a desenhar como se não houvesse amanhã
“Duke”, um western crepuscular completo em sete álbuns disponíveis em português

“Duke”, de Yves H. e Hermann, de que a Arte de Autor acaba de editar o sétimo e último volume, “Este mundo não é o meu”, é um western crepuscular, ambientado na transição entre os grandes tempos do Oeste selvagem e a caminhada atribulada mas inexorável para a chegada da civilização aos lugares onde a lei e a ordem durante anos foram impostas à força da bala.
É também uma história de perseguição, de várias perseguições, aliás, motivadas pelo desejo de vingança ou pela busca do sempre desejado dinheiro, perseguições essas gizadas pelos acasos do destino, vincando a forma maldosa e cruel como ele joga com as vidas dos seres humanos. Seres humanos que Hermann, bem secundado pelo seu filho e argumentista Yves H., continua a encarar com pessimismo e descrença, realçando sempre o pior de cada um e de todos eles.
Entre os vários perseguidores e perseguidos, cujo número vai variando consoante os momentos da acção e os tiros certeiros que vão sendo disparados, emerge um homem, o Duke que dá título à série, atormentado pelo seu passado, martirizado pelas escolhas que fez ou foi obrigado a fazer, perseguido pela maldição do seu feitio e da sua postura e acossado por sombras que tornam a sua existência penosa e fazem dele constantemente um alvo.
Mas “Duke” é também, claramente, uma obra crepuscular na carreira de Herman que, aos 84 anos, continua a tentar resistir à passagem do tempo, criando, como se disso dependesse a sua vida, novas obras ao ritmo frenético de 2 álbuns por ano. É evidente que o seu traço já não é o mesmo – e as capas são a melhor prova disso – mas Hermann mantém-se mestre na planificação de base tradicional que utiliza e, em especial, no modo como continua a iluminar os seus desenhos com cores intensas ou os carrega de sombras opressivas, da mesma forma que se esmera em contrastes de claro/escuro únicos.
Dispensava-o deste afã o seu passado, plasmado em séries notáveis como “Comanche”, “Bernard Prince”, “Jeremiah” ou “As Torres de Bois-Maury”, que afirmam claramente que o mundo da BD será sempre dele e que todos os leitores, de sucessivas gerações, terão de se render à sua mestria e ao seu traço inigualável, que constituem uma herança que a qualquer momento permite continuar a embarcar na grande aventura.

Duke #1 a #7
Yves H. e Hermann
Arte de Autor
56 p., 18,00 € (cada)


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F. Cleto e Pina

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Viver em função da vingança

Duplo regresso de Yslaire e de “Sambre”
História de amor trágica, narrada em tons sépia com pinceladas de vermelho vivo

Os acasos – editoriais – têm destas coisas e, 20 anos depois, Yslaire ressurge no mercado português em dose dupla: com “Menina Baudelaire” (edição da Ala dos Livros), uma biografia do poeta maldito sobre que escrevi aqui na semana passada, e com este “Sambre V/VI” (Arte de Autor), outro regresso pois, na mudança do século, o primeiro ciclo desta série foi editado em português. Trata-se de uma trágica história de amor entre Bernard Sambre, filho de uma família da província abastada e Julie, uma rapariga do povo, contrariada pela família dele, devido aos olhos vermelhos da jovem, supostamente portadores de uma maldição. Com a revolução de 1848, que conduziu à Segunda República Francesa, como pano de fundo, este ciclo correspondente à “Segunda geração” – que a Arte de Autor vai reeditar em breve – revelava-se uma história forte e violenta, de desfecho trágico, sedutora também pelas pinceladas de vermelho vivo que pintam os olhos de Julie, o cabelo de Bernard e alguns pormenores, por entre o tom sépia dominante.
Agora, reencontramos Julie, 11 anos mais tarde, presa nas cadeias do império francês pela sua participação na revolta, e descobrimos o destino dos seus filhos, uma vez que estava grávida no final do primeiro ciclo.
Se há uma evidente mudança de cenário e o centrar absoluto da trama em Julie, o lado trágico desta série, com o contraste entre ódios profundos e paixões arrebatadas, e o retrato cru e realista da podridão moral de quem detinha o poder e, agora, o sistema prisional francês, profundamente opressivo, desumano e violento, continua a tornar a saga dos Sambre uma narrativa apaixonante e o reencontro com Julie não se faz sem emoção.
Mesmo que se trate de uma nova Julie, desenganada com a vida, desejando a morte que não se atreve a provocar para se reencontrar com Bernard, cujo fantasma nunca a deixou, e vivendo apenas para se vingar.
Deportada à força, supostamente para refazer a vida numa colónia longínqua – mas na prática afastada pelo poder político e a família que continua a odiá-la e a atormentá-la – Julie sofrerá um naufrágio que, parecendo uma tragédia, lhe poderá proporcionar uma nova vida. Resta saber se estará disposta a entreabrir o seu coração ou se a amargura e o ódio acumulados a levarão – de novo – ao abismo.

Sambre V/VI
Yslaire
Arte de Autor
104 p., 27,00 €


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F. Cleto e Pina

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O regresso surpreendente inesperado feroz do Capitão Nemo

Partir do que é conhecido para seduzir o leitor
Personagens de Julio Verne e Rudyard Kipling encontram-se para salvar o mundo

Um primeiro passo para conquistar o leitor, é dar-lhe como ponto de partida algo que ele já conheça, no caso de “Nautilus”, o célebre submarino do Capitão Nemo e este vilão visionário que Jules Verne criou em “20000 léguas submarinas” e fez regressar em “A ilha misteriosa”. E, se versões em banda desenhada de romances célebres têm sido utilizadas para tentar conquistar leitores para a literatura, esta é uma outra via que até poderá ser mais eficaz e sedutora. De caminho para Nemo, os autores deste livro co-editado entre nós pela Arte de Autor e A Seita, aproveitam outro facto conhecido e histórico: o confronto latente entre a Grã-Bretanha e a Rússia nos últimos estertores do século XIX, pelo controlo de territórios indianos.
À frente do relato, como protagonista, surge Kimball O’Hara, o Kim imaginado por Rudyard Kipling no romance homónimo, um irlandês com sangue indiano e mentores tibetano e britânico, agora adulto e agente dos ingleses. Tão fascinante pela sua origem dupla e díspar quanto pela forma decidida e independente como actua, Kim vê-se apanhado numa armadilha que fez dele traidor e rastilho para o conflito, sendo a solução recuperar uns documentos num navio afundado a grande profundidade. A única forma de o conseguir é recorrendo ao desaparecido capitão Nemo, prisioneiro numa prisão na Sibéria, e ao seu mítico submarino Nautilus.
Com este pressuposto, o argumentista Mathieu Mariolle e o desenhador Guénaël Grabowski levam-nos numa grande aventura, com ritmo alucinante, personagens fortes, complexas e convincentes, situações impossíveis e perseguições de cortar a respiração, em cenários exóticos, imponentes ou deslumbrantes, fiquem eles no topo de montanhas geladas ou no mais profundo dos mares, com Kim a tentar impedir mais uma guerra fratricida entre os impérios dos czares e britânico e conseguir provar aos que o perseguem e aos que o conhecem, a sua inocência.
O traço realista de Grabowski e a forma como ocupa muitas das páginas até às margens, esquecendo o habitual contorno branco, contribui para a espectacularidade deste volume inicial de “Nautilus”, cujo final abrupto deixa os leitores sedentos da continuação deste tríptico, que ostenta a aventura e a grandiosidade das obras de Verne e o suspense dos grandes romances de espionagem.

Nautilus #1 – O teatro de sombras
Mariolle e Grabowski
Arte de Autor/A Seita
68 p., 19,95€


Escrito Por

F. Cleto e Pina

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