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A indiferença perante o horror da realidade

Biografia de Francesc Boix revela a realidade do campo de extermínio de Mauthausen.

Preservar a memória é fundamental num tempo em que a informação – e a falta dela – é tão etérea e passa tão depressa quanto surge: à velocidade de um clique.
“O Fotógrafo de Mauthausen”, disponível em edição portuguesa da Gradiva, é um tributo à memória de um homem, o espanhol Francisco Boix, que esteve preso no campo de extermínio de Mauthausen, um local para onde iam os “irrecuperáveis”, um local de onde nenhum dos prisioneiros “deveria sair vivo”.
Tendo de fugir após a guerra civil do país ao lado, Boix tornou-se refugiado político em França, onde seria integrado à força numa divisão do exército local e acabaria prisioneiro dos alemães, em 1941, quando o seu poderio militar e a sua expansão atingiam o auge.
Depois do filme de 2018, de Mar Targarona, esta é mais uma forma de contar, possivelmente a outra faixa de potencial público, o que Boix viveu em Mauthausen e, mais do que isso, o que ele viu por lá.
Porque naquele campo de extermínio, triste coincidência, havia quem tivesse o mesmo propósito: ilustrar a verdade para que ela perdurasse, embora não pelos mesmos motivos. Paul Rincken, um dos oficiais nazis, gostava de retratar a morte dos prisioneiros em fotografias artísticas, ao mesmo tempo que ‘fabricava’ outro tipo de imagens para dar uma ideia distorcida, até agradável, do local.
Boix, caído nas graças dele devido ao seu jeito para a fotografia, decidiu então que teria de fazer sair do campo os negativos e as fotos que poderiam mostrar ao mundo a hedionda realidade. É neste pressuposto que se baseia esta narrativa realista com toques de ficção, em que a bestialidade nazi nos entra pelos olhos dentro em contraponto com o idealismo de um homem que tenta preservar a memória.
Da leitura, agradável, composta por um muito extenso dossier final, ilustrado por muitas das fotos que Boix preservou que situa e contextualiza os acontecimentos, fica uma dupla sensação de incómodo: pelo que foi levado a cabo naquele lugar e pela indiferença com que o pós-guerra – e os dias de hoje? – receberam a verdade.

O Fotógrafo de Mauthausen
Salva Rubio, Pedro J. Colombo e Aintzane Landa
Gradiva
168 p., 32,50 €


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F. Cleto e Pina

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Fim de ciclo no Velho Oeste

Um western para descobrir o género ou matar saudades. Quarto volume de “Lonesome”, publicado quase em simultâneo com a edição francófona, encerra a série.

Se às novas gerações o western dirá pouco, houve uma época em que o género imperava e seduzia. Na banda desenhada, como no cinema, os grandes espaços naturais, o confronto entre o homem branco “civilizado” e os peles-vermelhos “selvagens”, e a necessidade de superação constante eram os principais atractivos, a par de figuras marcantes que preencheram o imaginário de muitos, do western puro e duro, com muitos tiros e poucas considerações, de que “Tex” será um dos melhores exemplos, aos relatos humanistas, que têm em “Buddy Longway” um dos mais relevantes.
Em anos mais recentes, o género tem sabido renovar-se e “Lonesome”, uma dessas propostas, chega agora ao fim em “O território do Feiticeiro”, quarto e último volume, editado pela Gradiva quase em simultâneo com a edição original. Assinado por Yves Swolfs, já autor de “Durango”, apresentava como principal nota distintiva uma certa aura fantástica, baseada na capacidade que o protagonista tem de ver o passado e o destino daqueles em quem toca mas, com o desenvolver da série, essa característica atenuou-se e até o culto diabólico evocado neste derradeiro tomo, não passa de simples referência.
Por isso, esta história de busca e vingança, acaba por apostar mais decisivamente nos confrontos violentos resolvidos a tiro, que deixam um longo cortejo de cadáveres ao longo das páginas. Isso não invalida um argumento consistente, com algumas surpresas, enriquecido com uma contextualização histórica que evoca o racismo contra negros e pele-vermelhas, a eminente luta contra a escravatura que originará o confronto entre Norte e Sul na Guerra da Secessão e a apetência económica pelos novos territórios, como contornos genéricos para um relato baseado em laços familiares que o destino separou, nas intrigas políticas e na eterna luta pelo poder terreno que levam os homens a extremos inimagináveis.
Especialista do género, Swolfs, com o seu traço realista, credível na reconstituição histórica e rico em pormenores, recria de forma atractiva paisagens naturais e urbanas do Velho Oeste e personagens que, apesar de representarem estereótipos reconhecíveis, apresentam espessura psicológica, contradições e dúvidas que as tornam mais humanas, fazendo de “Lonesome” uma boa proposta para descobrir o género ou matar saudades dele.

Lonesome #4 – O território do feiticeiro
Yves Swolfs
Gradiva
64 p., 20,99 €


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F. Cleto e Pina

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Dono do seu próprio destino

Hernán Cortés, conquistador ambicioso e estratega refinado
O contraste entre duas civilizações em mais um volume da colecção “Descobridores”

A existência de um verdadeiro mercado editorial e, por consequência, de uma verdadeira indústria de banda desenhada (no melhor sentido do termo), para lá da diversificação permite também a especialização em segmentos específicos.
É o caso, por exemplo, das biografias históricas que, tendo por base numa sólida pesquisa que garante a veracidade da informação disponibilizada, proporcionam bandas desenhadas na completa acepção do termo.
No catálogo da francesa Glénat existe um bom número dessas propostas e a Gradiva tem ‘pescado’ nele de forma regular e assertiva títulos mais adequados ao mercado português, dividindo-os por duas coleções: “Eles fizeram História”, onde já pudemos ler sobre Mao, Churchill ou Estaline; e esta “Descobridores”, por onde já passaram Marco Polo, Darwin ou Fernão de Magalhães e onde surge agora “Cortés 1/2: A guerra de duas faces”, dedicado a um dos conquistadores espanhóis que desbravaram o então chamado Novo Mundo para a coroa do país vizinho – e para si próprio – movendo-se com habilidade junto dos seus concidadãos e aproveitando com mestria as guerras internas que grassavam no território.
A a história arranca, em 1492 – ao mesmo tempo que Colombo chegava à América! – quando um muito jovem Cortés, em perigo de vida, desafiando ostensivamente os santos cristãos, se compromete a uma peregrinação depois de… cumprir o seu destino!
Esse destino e o percurso que o levará até lá, vai ser-nos contado em paralelo com o do imperador asteca Montezuma, o que permite uma convincente reconstituição histórica de ambas as civilizações, num relato assente num traço semi-caricatural pouco comum neste registo, tal como a ousadia de algumas cenas mais sensuais ou a violência explícita de alguns confrontos. Numa trama assente em intrigas, guerras – pelo poder e pelas riquezas – e pontuada por uma componente mística e pela forte relação de Cortés com a cativa e amante Leonor, vamos descobrindo o retrato de um homem que foi um conquistador ambicioso e um estratega refinado e que merece ser conhecido hoje, pelo modo como se destacou dos seus congéneres e no seu tempo, contra os poderes instituídos por princípio, mas usando-os quando lhe eram proveitosos, e que via como suprema façanha ser dono do seu próprio destino.

Cortês 1/2: A guerra de duas faces
Christian Chavassieux e Cédric Férnandez
Gradiva
64 p., 20,99€


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F. Cleto e Pina

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O homem mais inteligente do mundo

Richard Feynman: músico, arrombador de cofres, PrémioNobel
Obra em BD transmite com fluidez vida exuberante e complexa

Um dos melhores exemplos do potencial que a banda desenhada tem, é a forma como, em tempos recentes, tem abordado duas temáticas que durante anos foram marginalizadas pelos seus leitores: a adaptação de romances e a biografia.
E tem-no feito, não enumerando dados biográficos à exaustão ou ilustrando longos excertos de obras, mas apostando nas virtudes da narrativa sequencial, no equilibro entre texto e desenho e na noção fundamental da interpretação pelo leitor do espaço branco entre as vinhetas.
“Feynman”, edição recente da Gradiva, exemplifica-o de forma conseguida na evocação da vida de uma personalidades de eleição, Richard P. Feynman (1918-1988) que, para além de ter sido músico, desenhador, arrombador de cofres e contador de histórias, trabalhou no desenvolvimento da bomba atómica lançada em Hiroshima, foi laureado com o Prémio Nobel da Física, inovou no domínio da Electrodinâmica Quântica e fez parte da equipa que investigou as origens da explosão do vaivém Challenger.
A sua vida plena, sempre atento às pequenas coisas que, em conjunto, originam os grandes fenómenos, e apostado em falar sobre eles de forma a torná-los simples e acessíveis ao maior número, é o tema deste romance gráfico com quase três centenas de pranchas.
Narrado na primeira pessoa, revela uma invulgar fluidez, tendo em conta a imensa quantidade de informação transmitida e também a enorme complexidade de muita dela, conseguindo seduzir o leitor e levá-lo página após página na peugada de um homem extremamente inteligentea.
O traço simples, mas dinâmico e expressivo, uma boa utilização da cor para evitar a queda na monotonia na sucessão das páginas e, principalmente, o recurso a diálogos equilibrados, assertivos e estimulantes, com o todo combinado num relato ritmado que nos deixa recorrentemente em suspenso sobre o que se seguirá, mesmo tratando-se de uma biografia, fazem deste um livro a ler de forma apaixonada, sim, mas também uma obra sobre um homem exuberante, que ao contrário do que assevera o ditado, tinha muito de sábio e muito de louco, e que nos leva a pensar e reflectir sobre a simplicidade dos fenómenos complexos que nos rodeiam e gerem o nosso mundo.

Feynman
Jim Ottaviani, Lelland Myrick e Hilary Sycamore
Gradiva
272 p., 25,50 €


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F. Cleto e Pina

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O sagrado e o profano perigosamente próximos

Umberto Eco e Milo Manara reunidos na versão em BD de“ O Nome da Rosa”
Quase com 80 anos, o ilustrador italiano continua a ser um mestre do desenho e da composição

“O Nome da Rosa” é uma das surpresas editoriais do ano, e não só em Portugal, onde a Gradiva acompanhou a edição original, devido à junção de dois nomes grandes da narrativa, Umberto Eco, da literatura, e Milo Manara, da banda desenhada. A uni-los, surge o emblemático romance de Eco, publicado pela primeira vez em 1980, que Manara apresenta na sua versão aos quadradinhos.
Escolha inesperada, pode dizer-se, pela fortíssima predominância masculina nos protagonistas e figurantes, uma vez que o ilustrador italiano é mais conhecido pelas suas obras eróticas e pelas belas e sensuais mulheres que nelas sempre desenhou, mas é uma opção em linha com a última proposta de Manar, a biografia de “Caravaggio” (edição Arte de Autor).
Se adaptar um romance em BD nunca é fácil, “O Nome da Rosa” tinha como contra o peso das suas palavras e os diálogos com muitos frases em latim e isso reflecte-se de alguma forma na versão desenhada, com algumas páginas sobrecarregadas de balões para situar o leitor no âmago da intriga. Mas se este relato pode ser classificado como um romance policial no século XIV, centrado numa abadia beneditina isolada no topo de uma montanha, onde os cadáveres começam a multiplicar-se, a verdade é que a investigação levada a cabo pelo inquisidor frei William de Baskerville, vai bem além disso, na forma como é contextualizada histórica e religiosamente a acção que decorre sob a sombra ameaçadora da Inquisição, pela ironia com que que Eco aborda a questão da teoria versus a prática na religião, e ainda pela sólida caracterização dos intervenientes.
Graficamente, a obra assenta em três registos diferentes, consoante o momento da narrativa apresentado e, se a divisão da prancha em vinhetas se apresenta quase sempre demasiado rígida, é quando se liberta desse espartilho que Manara mostra que, quase com 80 anos, continua a ser um mestre na representação do ser humano e na composição de sequências que ficam na retina pela sua beleza plástica.
No final do primeiro dos dois volumes previstos, “O Nome da Rosa” de Milo Manara deixa o leitor em suspenso, com a incerteza de dever atribuir as mortes a desígnios divinos ou à interpretação destes pelos sempre falíveis seres humanos.

O Nome da Rosa I
Milo Manara segundo Umberto Eco
Gradiva
80 p., 24,50 €


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F. Cleto e Pina

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O Oeste ao ritmo de um tique-taque

Dois séculos da conquista do Oeste evocados em histórias curtas
Dezasseis autores de referência dão corpo a um projecto de Tiburce Oger

Dos tempos dos confrontos entre franceses e britânicos até às vésperas da II Guerra Mundial, “Go West Young Man”, acabado de editar em português pela Gradiva, traça uma história do Oeste norte-americano ao ritmo do tique-taque de um relógio de ouro que vai passando de mão em mão. Na verdade, este álbum, que assenta numa estrutura não original mas poucas vezes utilizada desta forma, é uma colectânea de histórias curtas que vão saltitando no tempo ao longo dos quase dois séculos que o livro abarca, unidas pelo tal relógio cujo proprietário, protagonista de um único conto, mas muitas vezes referenciado (no)s seguinte(s), vai mudando, quase sempre por razões pontuadas pela violência que associamos facilmente aos tempos da sangrenta conquista do Oeste selvagem.
Inicialmente oferecido por uma esposa a um oficial britânico, passaria pelas mãos de homens e mulheres, adultos e crianças, brancos, negros ou pele-vermelhas, pobres e mais abonados, gente com formação ou sem ela, personalidades de alguma importância, lendas do velho oeste ou gente anónima, tendo todos eles, a determinada altura, a possibilidade de terem como seu o aparelho usado para conhecer as horas e de pertencerem assim a uma longa mas involuntária cadeia humana.
A vida como a morte, a solidariedade como o desprezo, o respeito como o insulto, situações banais do quotidiano, assaltos, vinganças, emboscadas ou tiroteios são os inevitáveis condimentos de um conjunto de histórias, que até podem ser lidas de forma isolada e primam pela diversidade e pelo inesperado, mas que, apesar disso, ostentam uma coerência e uma continuidade narrativa que deve ser realçada.
Projecto de Tiburce Oger, argumentista e desenhador francês, apresenta também como particularidade o facto de cada um dos dezasseis relatos estar entregue a um ilustrador diferente, contando-se entre eles nomes de referência na banda desenhada franco-belga bem conhecidos dos leitores portugueses como Michel Blanc-Dumont, Ralph Meyer, François Boucq, Michel e Corentin Rouge, Christian Rossi ou Marini (que assina a capa).
Se na prancha de abertura alguém refere que “só Deus sabe as histórias que [o relógio] poderia contar”, agora, nós também as podemos conhecer.

Go West young man
Tiburce Oger e vários desenhadores
Gradiva
112 p., 27,50 €


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F. Cleto e Pina

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A irresistível atracção pelo abismo

Jean-Yves Delitte é garante de rigor histórico
Colecção “As Grandes Batalhas Navais” abre com Jutlândia, confronto decisivo da Primeira Grande Guerra

Pode soar estranho, mas possivelmente não é mais do que reflexo da atracção irresistível do ser humano pelo abismo, mas há temáticas que parecem não passar de moda e regressam regularmente aos gostos do público.
Entre elas estão, indiscutivelmente, as relacionadas com as duas grandes guerras e isso ajuda a perceber que nos últimos meses tenham surgido em Portugal várias propostas de banda desenhada dentro do género, sendo o mais recente a colecção “As Grandes Batalhas Navais”. O volume inaugural intitula-se “Jutlândia” e tem a assinatura de Jean-Yves Delitte, desenhador e argumentista especializado nestes temas bélicos.
Autor de todos os tomos da colecção, nalguns casos só como argumentista, noutros, como em “Jutlândia”, como autor completo, Delitte é garante de rigor histórico e de fidelidade na reconstrução das embarcações representadas, omnipresentes ao longo das pranchas, entremeadas pontualmente com espectaculares vinhetas de página dupla.
Tendo como principal qualidade a reconstituição de época de uma das batalhas decisivas da Primeira Grande Guerra, o argumento de Delitte acrescenta-lhe um factor humano ao incluir na narrativa algumas personagens, provenientes de um e outro lado das forças em confronto, que servem para balizar os horrores dos conflitos armados e para criar alguns laços com o leitor: um oficial em vésperas de se divorciar e outro apaixonado pela mulher; um veterano marinheiro alemão; um francês morador em territórios ocupados, que se voluntariou para a aviação para poder cumprir o sonho de voar mas acabou num navio – e os seus pais.
Em torno deles, num relato pontuado por informações sobre a situação política e militar e o valor e constituição das frotas britânica e alemã prestes a enfrentar-se ao largo da península dinamarquesa que dá título à obra, Delitte constrói um relato que foge à frieza do simples documentário e ganha alguma consistência e calor humano.
Se o final surge algo abrupto, deixando a sensação – para quem está à distância – de que a montanha – a grande batalha naval em perspectiva – pariu um rato – as baixas perdas relativamente à dimensão que poderiam ter atingido pelo muito superior número de embarcações e homens em confronto – isso é atenuado pelo dossier final que ajuda a contextualizar e dimensionar o trágico acontecimento.

As Grandes Batalhas Navais – Jutlândia
Jean-Yves Delitte
Gradiva
64 p., 19,50€


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F. Cleto e Pina

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Uma história entre duas guerras

Biografia de Albert Eistein, o pacifista por detrás da bomba atómica
A impossibilidade de colocar limites ao uso das descobertas científicas para fins militares

Se é o nome de Albert Einstein que surge na capa deste díptico editado pela Gradiva, a verdade é que ele traça a sua biografia em paralelo com a de um dos seus grandes amigos, o químico Fritz Haber.
Dois homens, dois prémios Nobel, com uma relação próxima, mas tumultuosa, que expõe uma interessante dualidade: um deles, Haber, o nacionalista germanófilo que não se importa de pôr as suas descobertas, no caso o amoníaco que daria origem ao gás mostarda que provocou tantos massacres nas trincheiras, ao serviço dos militares alemães na Primeira Grande Guerra; o outro, o pacifista convicto, Einstein, ciente da importância da descoberta da teoria da relatividade e da sua influência, mas temeroso do uso bélico – a construção da bomba atómica – que poderia advir dela. No final, ambos entregaram aos militares as suas descobertas científicas pela mesma razão: o fim das guerras; um por convicção, outro por não ver outra solução. O resultado? O mesmo: milhares, milhões de mortos… Este antagonismo e as certezas de um e as dúvidas e remorsos do outro, contribui para os humanizar e aproximar do leitor.
De novo em voga, este tipo de obras de carácter histórico, tem tudo para agradar àqueles que gostam de banda desenhada. A chamada de um argumentista com provas dadas, como Corbeyran, garante a fluidez do relato e uma verdadeira abordagem em BD. Por outro lado, “As Guerras de Albert Einstein” têm também tudo para agradar a quem procura biografias ou narrativas históricas de leitura mais ligeira, sem que se perca a credibilidade e a solidez garantidos pela pesquisa rigorosa que esteve na sua base.
Graficamente a narrativa funciona muito bem, com uma divisão da prancha mais tradicional muitas vezes desfeita pelas vinhetas de grande dimensão para cenas de conjunto ou pormenores relevantes que ajudam a dar ao relato um outro dinamismo e permitem ao leitor espraiar o olhar pelo desenho enquanto a História decorre em fundo. Essas cenas de conjunto tanto podem levar-nos a Zurique ou a Berlim, como podem mergulhar-nos nas mais chocantes e violentas consequências trágicas da aplicação da ciência aos objectivos militares, transubstanciada em campos a perder de vista pejados de cadáveres e destruição.

As guerras de Albert Einstein 1 e 2
Closets, Corbeyran e Chabbert
Gradiva
64 + 56 p., 19,50€ (cada um)


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F. Cleto e Pina

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O Regresso de Eternus 9

Mais de 30 anos depois da publicação de “Um Filho do Cosmos”, Eternus 9, a mítica criação de Victor Mesquita, regressa com “A Cidade dos Espelhos”, segundo volume de uma anunciada trilogia de ficção científica, género de que Mesquita é um dos raros cultores em Portugal.

Definido pelo próprio Mesquita, como “um portal caleidoscópico para um mundo cujo coração é Lisboa, após a guerra nuclear que transfigurou a face do Planeta e fragmentou a Lisboa de hoje até quase não se poder reconhecê-la, mas onde continuam as referências que a distinguem”, a “Cidade dos Espelhos”, mais do que o regresso de Eternus 9, é o regresso de Victor Mesquita, aqui na dupla função de autor e personagem da sua própria história.

O primeiro álbum, cuja publicação se iniciou em 1975 na revista “Visão” (a de BD, não a de informação que ainda hoje se publica) de que Mesquita foi fundador e director, tendo sido publicado em álbum em 1979, com direito a edição em França pela Lombard, no ano seguinte, é filho do seu tempo, estando na linha do que melhor se fazia em revistas como a Pilote e Métal Hurlant, com Victor Mesquita a emprestar um fôlego épico ao seu traço, só com paralelo nos delírios cósmicos e arquitecturais de Philippe Druillet, autor com quem a crítica francesa (e não só…) não deixou de o comparar. Mas além do desenho espectacular e da arrojada planificação, sem equivalente em termos da BD nacional, “Eternus 9” era uma história plena de simbolismo e perfeitamente circular, e que, por isso mesmo, não precisava de continuação.

Essa continuação, tantas vezes anunciada pelo próprio, mas que já poucos esperavam, surgiu finalmente em finais de 2010, lançada de forma (demasiado) discreta, no último Festival da Amadora. E se a sombra de Eternus 9 se mantém imutável, apesar da sua presença ser bastante mais simbólica do que efectiva, a verdade é que a meio da história o leitor é levado para o outro lado do espelho, em que Eternus 9 dá lugar a Victor Mesquita, numa narrativa com claros contornos autobiográficos sobre o processo de criação do livro que estamos a ler. E nesta segunda parte, que é mais uma continuação de “O Sindroma de Babel” (veja-se a cidade de Olissipólis, ou os cães bicéfalos), uma história curta publicada em álbum em 1996, pelo Festival da Amadora, a presença de Eternus 9 está quase reduzida às maquetes que enchem o estirador de Vick Meskal/Victor Mesquita, cedendo lugar ao autor cheio de dúvidas e inquietações, em luta com uma história que ganhou vida própria que, como bem lembrou João Ramalho Santos, remete para o filme “8 ½” de Federico Fellini, paradigma máximo do filme sobre o autor em crise de inspiração.

Embora respeitando vagamente os cânones da ficção científica, sobretudo em termos estéticos, “A Cidade dos espelhos” é uma obra inclassificável, cujo principal fascínio vem precisamente da forma como o autor explora criativamente as suas dúvidas e complexidades, num complexo jogo de espelhos, mais próximo da Banda Desenhada autobiográfica.

Quanto à excelente edição da Gradiva, padece do mesmo problema da reedição de “Um Filho do Cosmos”, o preço demasiado elevado para a bolsa dos portugueses que, aliado à escassa divulgação, impedirá mais leitores de descobrirem este (tão feliz quanto inesperado) regresso de Victor Mesquita.

(“Eternus 9: A Cidade dos Espelhos”, de Victor Mesquita, Gradiva, 98 páginas, 25 euros)

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Quadradinhos nacionais

Fruto de uma aposta continuada e consistente na promoção da banda desenhada portuguesa, o Festival da Amadora – e consequentemente a época de Outubro/Novembro – tem-se revelado o local ideal para o lançamento de novidades lusas aos quadradinhos.

O que é compreensível porque, no Amadora BD os originais estão expostos e os autores presentes o que potencia a sua divulgação junto dos leitores. E esta é uma realidade quer para as editoras de maior dimensão, quer para os pequenos editores independentes, cuja distribuição se limita depois a lojas especializadas e, eventualmente, a uma ou outra cadeia nacional de livrarias. Este ano não foi excepção, tendo sido lançados quase uma dezena de novos títulos, bem diversos gráfica e tematicamente, a maioria de jovens autores.
A excepção – e talvez o de maior impacto – é “Eternus 9 – A cidade dos espelhos” (ver caixa), mas o de maior potencial fora do círculo da BD é “NewBorn – 10 dias no Kosovo” (ASA), de Ricardo Cabral, uma espécie de foto-reportagem desenhada. Numa ténue fronteira entre a sequência narrativa e a ilustração, é fruto de uma estadia do autor no Kosovo e traça um retrato mais humano – e, por isso, mais real – do país e da sua situação, para lá dos estereótipos veiculados pela comunicação social.
Também com fundo político é “Agentes do C.A.O.S. – A conspiração Ivanov” (Kingpin Comics), de Fernando Dordio, Filipe Teixeira e Mário Freitas, cuja acção decorre em 1981. Tendo as FP 25 de Abril como pano de fundo, é uma movimentada história de acção, vingança e espionagem, que envolve operacionais da polícia portuguesa e mafiosos russos.
Bem mais intimista é a proposta de Paulo Monteiro, também director do Festival de Beja, em “O amor infinito que te tenho e outras histórias” (Polvo), colectânea, com alguns inéditos, de cariz autobiográfico e poético, onde o traço fino e os tons cinzentos salientam os sentimentos.
Diverso é o projecto colectivo Zona que tem por “objectivo desenvolver e divulgar a BD e a ilustração em Portugal”, que apresentou na Amadora o seu sexto tomo em ano e meio, “Zona Negra 2”, que tem o terror como tema aglutinador e o preto e branco como veículo para fortalecer “o ambiente obscuro do seu conteúdo”.
Também colectiva, da autoria de Álvaro Áspera e Marta Portela (argumento) e António Brandão, João Martins, Pedro Alves, Pedro Colaço, Pedro Serpa e Ricardo Cabrita (desenhos), mas de carácter institucional é “Sete histórias em busca de uma alternativa”, uma edição do Grupo para a Resolução Alternativa de Litígios (GRAL) do Ministério da Justiça, que reúne uma série de histórias em torno dos serviços públicos, ao mesmo tempo que homenageia personagens e autores da banda desenhada portuguesa.
Diferente, no propósito e na forma, é o “BDJornal” #26 (pedranocharco), uma publicação semestral que alia à publicação de BD, artigos de crítica e análise, que neste número destaca Dinis Conefrey e Fernando Relvas.
Apresentados no festival, onde têm exposição, mas ainda não disponíveis embora estejam anunciados para breve, surgem dois outros títulos: “É de noite que faço as perguntas” (Gradiva), uma narrativa ficcionada dos acontecimentos que levaram à implantação da República, escrita por David Soares e desenhada por Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre Silva, e “O Menino Triste – Punk Redux” (Qual Albatroz), um passeio semi-autobiográfico pelas origens, valores e ideias por detrás do movimento Punk, em Londres, em 1976.
São, sem dúvida, um lote de propostas diversificadas que mostram que a BD portuguesa existe e está à procura do seu público.

[Caixa]

O regresso de Eternus 9

Nascido nas páginas da mítica revista Visão, que, animada pela revolução de Abril, agitou as águas da BD nacional no verão quente de 1975, “Eternus 9 – Um filho do cosmos”, um complexo relato filosófico e de ficção-científica, seria suspenso ao fim de 6 números, surgindo em 1979 em forma de álbum (reeditado em 2009).
Agora, 35 anos depois, Eternus 9 regressa em “A cidade dos espelhos” (Gradiva), a sequela que Victor Mesquita há muita anunciara, e nela “um portal caleidoscópico atravessa um mundo cujo coração é Lisboa, depois da Guerra Nuclear que transfigurou a face do planeta e fragmentou a Lisboa de hoje até quase não se poder reconhecê-la, mas onde continuam as referências que a distinguem”.
É o segundo tomo de uma trilogia que se concluirá com “Cidadela 6” que Victor Mesquita resumiu já ao JN: depois de “dois volumes que respiram uma certa serenidade contextual”, encontraremos “um universo de grande violência e denúncia dos aspectos mais crus que se vivem nas sociedades de hoje, onde se constatará que até os santos são humanos e como tal muitas vezes saem dos limites da santidade”.


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F. Cleto e Pina

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