Autor: bedeteca_sslidk

A acção por detrás das câmaras e das luzes

Quentin Tarantino segundo ele próprio. Obra de Amazing Ameziane é um tributo ao realizador e ao seu tributo à 7.ª arte.

Se começou por ser cómica, daí a sua designação americana, e se se expandiu ao vestir traço realista para narrar todo o género de aventuras, a banda desenhada, que aos poucos assumiu também o género histórico e a adaptação de romances e filmes, em décadas recentes tem demonstrado à exaustão a sua capacidade para servir todas as temáticas. A autobiografia, por exemplo ou, mais além e ousadamente, a reportagem ou reflexões sobre a sociedade, o nosso mundo, a sua viabilidade e o seu futuro, têm comprovado a pluralidade e todo o potencial de uma forma narrativa que durante muitos anos foi considerada por muitos “para as crianças”.
“Quentin por Tarantino”, que em boa hora a ASA disponibilizou em edição portuguesa, é mais um exemplo, que explora de forma bastante feliz o género biográfico, mas fugindo ao que seria o estereótipo mais óbvio: a dramatização linear da vida do realizador.
Aproveitando a sua faceta provocadora e pretensiosa – alguns dirão a consciência do seu valor e capacidades – o autor, o francês Amazing Ameziane, fez da obra um longo monólogo do próprio Tarantino que, dessa forma, nos conduz num passeio pelo cinema, por alguma da sua História, a dos filmes B e de (algum) cinema de autor, mas, principalmente pela sua própria obra. E apesar de ser uma biografia escrita por outrem, o livro funciona como um discurso na primeira pessoa do realizador norte-americano que vai desfiando as suas memórias, histórias e pequenas anedotas, a forma como contratou estrelas caídas em desgraça ou fez outras, desfila opções, devaneios, sonhos e desilusões. Em resumo, expõe abertamente a sua forma singular de pensar e viver os filmes, funcionando o todo como um enorme tributo ao seu tributo à 7.ª arte.
Apesar do protagonismo absoluto na primeira pessoa, “Quentin por Tarantino” é formalmente uma boa banda desenhada, pela forma como Ameziane consegue ritmar, dar fluidez narrativa e sequência gráfica ao livro, através de uma planificação variada, que alterna grandes planos, cenas e cartazes de filmes que (re)conhecemos ou sequências mais tradicionais no que à BD concerne.
Ideal para quem conhece bem os filmes marcantes que Tarantino escreveu e realizou, “Quentin por Tarantino” é também para todos aqueles que gostam de cinema e de saber o que está por detrás das câmaras e das luzes.

Quentin por Tarantino
Amazing Ameziane
ASA
248 p., 29,90 €


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F. Cleto e Pina

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Academia Nacional das Belas Artes à descoberta da banda desenhada

Mostra “Desenho, Palavra e Sequência” para ver até final de Maio

“Desenho, Palavra e Sequência – Banda Desenhada, a 9ªarte” é o título da exposição que a Academia Nacional das Belas Artes (ANBA) propõe a partir de amanhã, dia 26 de Março, com a inauguração agendada para as 15 horas.
Esta iniciativa surge após a ANBA ter reconhecido, em Outubro último, pela primeira vez, a Banda Desenhada como forma superior de expressão cultural, juntamente com o Cinema e a Dança, acentuando a ideia de que a arte é um conceito em permanente evolução. Na altura, teve lugar uma sessão solene presidida pelo Ministro da Cultura, Dr. Pedro Adão e Silva, que serviu também para receber como novos académicos ligados à BD, Penim Loureiro (arquitecto e autor de “Umbigo do Mundo”) e Paulo Monteiro (responsável pela Bedeteca e pelo Festival Internacional de BD de Beja e autor de “O Amor infinito que te tenho e outras histórias”).
A mostra funciona como introdução de um conjunto de novos eventos que irão decorrer no seio da comunidade das Belas Artes (Academia e Faculdade) em torno da banda desenhada, considerada a 9.ª arte, termo este cunhado por Claude Baylic, em 1964, no artigo “La Bande Desinée est-elle an art?”.
A exposição, contempla uma pluralidade de estilos e, apoiando-se em pranchas de diferentes autores portugueses contemporâneos como André Lima Araújo, António Jorge Gonçalves, Bernardo Majer, Filipe Andrade, Joana Afonso, Jorge Coelho, Luís Louro, Marco Mendes, Mosi, Nuno Saraiva, Osvaldo Medina ou Riuta Alfaiate, evidencia os paradigmas da estrutura da linguagem da BD, do argumento até à composição final de todos os componentes da prancha, reforçando o pressuposto de que a simultaneidade e interligação de “Desenho, Palavra e Sequência” é constante e inseparável.
Do programa fazem igualmente parte três conferências: “Tradição e Rutura” (12 de Abril); “Arquitetura e Banda Desenhada” (3 de Maio) e “A Escrita na Banda Desenhada” (17 de Maio), que assumirão a forma de conversas com alguns dos autores nacionais representados na mostra, patente até 29 de Maio e com entrada livre.


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F. Cleto e Pina

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O lado sério da vida universitária

Retrato jovem e com humor das últimas décadas do século passado. Dos jornais e fanzines ao livro colorido, obra também ilustra percurso pessoal de Derradé.

Quem viveu por dentro do mundo da banda desenhada nos anos 1980 e 1990, antes do aparecimento das tecnologias que revolucionaram também a impressão, e tinha aspirações a ser autor, inevitavelmente pelos fanzines, ou seja pelas edições amadoras.
É o caso de Dário Duarte, aliás Derradé que, entre os jornais em que colaborou, os fanzines que auto-editou e algumas edições um pouco mais profissionalizadas em que publicou, foi traçando um retrato do mundo jovem e universitário em que vivia então, que obviamente era também um retrato de um certo Portugal. Entre as suas criações da época, destaca-se Bubas, um adolescente tardio em que se adivinham apontamentos auto-biográficos, perdido num mundo ao qual apontava mais defeitos do que qualidades, e que procurava em muito álcool, pouca droga, algum romance e quase nenhum sexo, respostas para a vida que, afinal, surgiam principalmente nas amizades.
São essas histórias, primeiro no formato de tira de jornal e mais tarde como histórias curtas, que foram agora compiladas no volume “Bubas – Addicted to love”, pela Polvo. Como sinal dos tempos, evidentes também na progressão da personagem, as aventuras e desventuras de Bubas surgem agora coloridas por Beatriz Duarte, filha de Derradé, num convite a voltar ao passado, mas revisto agora com um olhar diferente, costuma dizer-se mais maduro, para redescobrir um Portugal ainda mal refeito e ciente das possibilidades que Abril abriu, mas em que então, como agora, os jovens viam principalmente pontos de interrogação, dúvidas e incertezas no seu futuro.
Como em todas as suas obras, o olhar que Derradé propõe vem filtrado por um humor cáustico para com a sociedade, impiedoso para si próprio e muitas vezes desencantado, mas que ajuda a moderar a sua visão de uma época e das vivências que narra.
Se na primeira parte deste “Bubas – Addicted to love”, correspondente às tiras, impera o humor, a segunda parte revela um autor mais completo e consciente da especificidade da narrativa em BD que, sem alterar a temática de base, ao focar o quotidiano de Bubas na questão da sempre adiada primeira relação com a namorada, que quer esperar pelo momento certo, permite uma leitura mais adulta e estimulante que, depois de seduzir o leitor, o deixa pendurado perante um final em aberto que pede uma continuação.

Bubas – adicted to love
Derradé com Beatriz Duarte
Polvo
68 p., 13,90 €


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F. Cleto e Pina

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LouriBD enche a Lourinhã de banda desenhada

Italiano Andrea Ferraris é o cabeça de cartaz do evento

A segunda edição do LouriBD – Festival de Banda Desenhada da Lourinhã, uma parceria entre o município local e a editora local Escorpião Azul, com o apoio da Antena 1, abre portas segunda-feira, 18 de Março, e promete uma semana repleta de actividades em torno da chamada 9.ª arte, até dia 24.
Sediado no Centro Cultura da Lourinhã e também com atividades na Biblioteca Muncipal, o evento pretende tornar acessível a banda desenhada e aproximar dela pessoas de todas as idades, afirmando este género literário como único e dotado de um enorme potencial artístico e cultural. Para isso, propõe, diariamente, nos dias de semana, workshops direccionados para alunos de todas os níveis de ensino, com a formação a cargo de diferentes autores portugueses.
De segunda a quinta, a partir das 17 horas, terá lugar uma conversa seguida de sessão de autógrafos com um criador diferente cada dia, respectivamente Filipe Duarte, João Amaral, Sharon Mendes e Joana Geraldes.
Apostando este ano na temática monstros, o LouriBD dedica-lhes uma exposição, sejam eles oriundos da arte popular, das lendas e mitologias, da imaginação ou da investigação científica de fauna e flora, entre vários outros universos. Apesar de ter actividades a partir de dia 18, a inauguração oficial do certame será dia 22, com uma visita guiada, às 18h30, e exibição da primeira longa-metragem de animação portuguesa feita em stop-motion, “Os Demónios do Meu Avô”, seguida de uma conversa com o realizador Nuno Beato.
No fim-de-semana multiplicar-se-ão os workshops e as conversas em torno dos diferentes aspectos da banda desenhada, da criação à edição e divulgação, estando prevista a presença de muitos autores nacionais, entre os quais Paulo J. Mendes (autor de “Elviro”, distinguido como Melhor Álbum de Autor Português no Amadora BD 2023), Álvaro Santos (“Porra… voltei!”), Duarte e Henrique Gandum (“Congo”), Luís Louro (“Corvo”), Paulo Monteiro (“O amor infinito que te tenho e outras histórias”) ou Rita Alfaiate (“Neon”). Estarão também presentes André Mateus e Filipe Duarte, para lançamento do seu livro “E Depois do Abril”, cujos originais podem ser vistos no local.
O principal destaque, no entanto, vai para a presença de Andrea Ferraris, autor italiano, nascido em Génova, em 1966, que tem editadas em português duas obras pela Escorpião Azul: “A Cicatriz”, sobre os dramas que se vivem a cada instante na fronteira entre o México e os Estados Unidos, e “Churubusco”, que aborda a trágica história do Batalhão São Patrício e a sua deserção, a favor do México, durante uma guerra desigual (1846-1848) contra os Estados Unidos.
Do programa do LouriBD, cuja entrada é livre, constam igualmente uma feira do livro e fanzines, um concerto ilustrado e exposições de peças de arte.


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F. Cleto e Pina

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O perigo da unanimidade que “Blacksad” justifica

Policial negro actual, embora situado décadas atrás

Sei que a unanimidade é perigosa mas no caso de Blacksad é impossível não ficar deslumbrado pelo originalidade da estrutura, pela qualidade das histórias e pela desenvoltura do traço desta criação dos espanhóis Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido
O título mais recente “Então, tudo cai” é, até agora, o mais ambicioso da série e, talvez por isso, foi necessário dividir a história por dois álbuns, que a Ala dos Livros já disponibilizou em português, reproduzindo as capas originais que compõem uma imagem única, com quatro dos principais intervenientes e a coragem de a segunda não ter o protagonista.
Ambientado numa Nova Iorque efabulada, o relato, apesar de se situar décadas atrás, soa estranhamente actual, pois combina ambições pessoais, lutas sindicais, interesses imobiliários e ligações perigosas entre políticos e gente pouco recomendável, numa trama bem urdida, consistente e sólida, repleta de segredos incómodos, em que os passados de algumas personagens as atrapalham e os cadáveres se vão multiplicando.
A par deste contexto mais genérico, em que arte e progresso parecem servir propósitos antagónicos, o protagonista, que dá título à série, reencontra antigas ligações, como sempre escolhe o lado errado das trincheiras e acabará por pagar caro as suas opções, fazendo, também ele jus ao título que aponta para a finitude da impunidade, das injustiças e dos negócios esconsos, sem que isso implique nenhum fundo nem lições de moral.
Policial negro, contido nos diálogos, deixando que a arte – e que arte! – de Guarnido tenha a primazia na narração da história – revela no entanto como Canales é extremamente assertivo e certeiro nas palavras que coloca na boca das suas personagens, com uma qualidade de escrita peculiar e uma enorme capacidade de transmitir muito com pouco.
E se, adequadamente, numa história que também tem ligações com a representação e o teatro, o tom de tragédia vai aumentando página a página, nenhum leitor estará preparado para a cena final, monumental e ao mesmo tempo representativa da pequenez do ser humano ou, em “Blacksad”, dos animais antropomórficos que assumem na sua forma as suas características intrínsecas, nos espelham e representam de forma tão forte, marcante e reveladora.
…porque, na verdade, é nessa última vinheta que, “Então, tudo cai”.

Blacksad: Então, tudo cai
Díaz Canales e Juanjo Guarnido
Ala dos Livros
60+56 p., 17,50€ (cada)


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F. Cleto e Pina

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Tex tem 60 anos

É o mais duradouro western dos quadradinhos; Edição a cores e reedição do único romance que protagonizou assinalam data; Jornal do Vaticano dedicou amplo espaço à criação de Bonelli e Galep; Blog português homenageia herói com conto literário de Jorge Magalhães e Augusto Trigo

1948, 30 de Setembro, um homem espreita por detrás de umas rochas. A roupa identifica-o como cowboy, nas mãos tem duas pistolas prontas a utilizar e, mais tarde, saber-se-á que se chama Tex Willer. Assim se iniciava o mais duradouro western da história da banda desenhada, então protagonizado por um fugitivo da justiça que viria a tornar-se um ranger do Texas e também chefe dos navajos, como “Águia da Noite”. A história, intitulada “Il Totem Misterioso”, da autoria de Gianluigi Bonelli (texto) e Aurelio Galleppini (desenhos), aparecia na “Collana del Tex”, uma publicação com um estranho formato alongado, com apenas uma tira por página.
Era o princípio de uma lenda, que marcaria gerações e definiria um género, os “fumetti”, a banda desenhada italiana, de características populares (preço baixo, papel de qualidade inferior, formato médio, impressão e preto e branco, histórias com duas ou três centenas de páginas), combinando relatos ficcionais com muita acção e uma sólida base histórica. E dava origem a um verdadeiro império dos quadradinhos em Itália, mais tarde alargado a criações como “Dylan Dog”, “Martin Mystère”, “Mágico Vento” ou “Júlia”, mas sempre alicerçado na imensa popularidade de Tex que, nalguns períodos chegou a vender mais de um milhão de exemplares mensais, chegando depois aos quatro cantos do mundo. A Portugal, as suas aventuras cujo protagonismo compartilha quase sempre com Kit Carson e, por vezes, com Jack Tigre e o filho Kit, chegam desde os anos 70 via Brasil, agora em edições da Mythos Editora que cativam três a quatro milhares de leitores por mês.
Agora, 60 anos depois, a revista “Tex #575” assinala a data com a história a cores “Sul sentiero dei ricordi”, escrita por Cláudio Nizzi e desenhada por Fabio Civitelli, que evoca o seu breve casamento com a índia Lylith, e oferecendo a reedição de “Il massacro di Goldena”, o único romance protagonizado pelo ranger, escrito por G. Bonelli em 1951.
Inspirado em Gary Cooper e nos míticos westerns cinematográficos, Tex é um homem duro e obstinado, típico de um Oeste duro e agreste, onde a força das armas impunha a lei, sempre ao lado dos desfavorecidos, independentemente da sua raça ou cor. Também por isso, até o “L’Observatore Romano”, o jornal oficial do Vaticano, lhe dedicou algumas páginas na sua edição de 14 de Agosto, descrevendo-o como “um justiceiro americano, capaz de distinguir ‘sem ses e sem mas’, o bem do mal”, que “agrada aos operários, aos estudantes, aos intelectuais e aos políticos”, e tem “comportamentos  irrepreensíveis  ditados  por valores não negociáveis”, embora “ao mesmo tempo  se torne protagonista de acções que por vezes desembocam na justiça sumária”, tendo matado ao longo de 60 anos “quase três mil pessoas, uma média de sete cadáveres por edição”.

Os 60 anos em Portugal
O 19º Festival de BD da Amadora, de 24 de Outubro a 9 de Novembro, tem prevista uma exposição, o BDJornal #24 vai publicar um dossier sobre o ranger, que inclui uma BD curta, e o “Blog do Tex” (www.texwiller.blog.com), tem on-line “Tex e os Coyoteros”, uma homenagem “não oficial” de Jorge Magalhães e Augusto Trigo, que mostra um Tex diferente, na sua estreia em conto literário, introspectivo e a questionar acções do seu passado, e a ter até um relacionamento romântico, tema tabu nos quadradinhos.


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F. Cleto e Pina

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Nos lugares do fundo do autocarro

Um comando negro em território francês ocupado, em busca de um tesouro patrimonial
História ficcionada, guerra e racismo coexistem no primeiro grande livro de BD do pós-férias

Primeiro grande livro de BD do pós-férias, “Uma estrela de algodão preto” tem como tema central o racismo profundamente enraizado nos Estados Unidos, não desde tempos imemoriais, como quase escrevi, mas desde a sua fundação enquanto nação, o que paradoxalmente implica maior longevidade…
Mas esta obra pode ser encarada sob dois outros registos: o histórico ficcional e o relato de guerra, este mais do ponto de vista humano do que heróico. Na realidade, a obra acompanha um comando de soldados negros, em França, durante a II Guerra Mundial, com a missão de recuperarem a primeira bandeira dos Estados Unidos, utilizada na Declaração de Independência, em 1776. Antes desse momento, Yves Sente e Steve Cuzor fazem um longo preâmbulo para nos mostrarem qual o lugar e como eram tratados os soldados negros no exército norte-americano: tal e qual como na maioria dos Estados Unidos, ocupavam os “lugares do fundo do autocarro”, para utilizar uma frase bem expressiva de um deles…
Se a História em “Uma estrela de algodão preto”, passa também por aqui, ela tem início quase dois séculos antes, nos primeiros passos daquela que viria a ser uma das nações mais poderosas do mundo e porta-estandarte de ideais como liberdade e justiça… pelo menos para os que ostentam a cor de pele correcta.
Voltando ao comando negro do relato, para lá do simbolismos óbvio da missão concedida exactamente a eles, os três homens envolvidos na recuperação da bandeira original têm uma motivação extra: descobrir se uma das suas 13 estrelas tinha por detrás uma estrela negra de algodão, supostamente colocada por uma costureira negra.
A narrativa é tensa, as atitudes depreciativas dos soldados e oficiais brancos em relação aos negros multiplicam-se e Sente arrasta conscientemente o progresso da acção para acentuar o clima tenso e opressivo que perpassa por todas as páginas, reforçado pelo traço realista e rico de contrastes de Cuzor.
Mas, apesar dos momentos de ilusão e de afirmação do valor dos negros, independentemente do sucesso ou não da sua missão, que deixo aos leitores descobrirem, a mensagem que permanece é a mesmo que ecoa ainda nos nossos dias: por mais que as estrelas negras brilhem, o seu presente pouco importa e pouco difere do seu passado…

Uma estrela de algodão preto
Yves Sente e Steve Cuzor
Ala dos Livros
192 p., 35,00€


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O pequeno problema das últimas semanas

A difícil gestão de sentimentos ao lidar com a perda
Primeiro romance gráfico da portuguesa Joana Mosi aborda a questão do luto

Júlia é trintona, professora de educação física, vive na antiga casa da avó, junto à praia e tem um problema: um mangusto – supõe ela – que apareceu no seu jardim e destruiu a pequena horta caseira que tinha começado.
Este é o resumo, tão intrigante quanto desconcertante, de “O mangusto”, o primeiro romance gráfico da portuguesa Joana Mosi, editado pelo colectivo A Seita.
Porque, na realidade, “O mangusto” é um mergulho no íntimo de Júlia e na forma como ela está a gerir – ou não – o luto relativo à perda do seu marido Paulo. Um luto que a torna quase invisível aos olhos do irmão Joel, mais novo e game designer, que vive com ela desde que ficou desempregado e passa o dia a jogar videojogos; que torna irritante a relação com a mãe protectora e todos os seus conselhos; que a faz cumprir de forma intermitente as responsabilidades profissionais na escola em que está colocada. Em resumo, um estado de negação, que a afasta de tudo e de todos, e em que a passagem do tempo não torna menos dolorosas as recordações em que teima em refugiar-se – ou afogar-se. E de que tenta fugir, ao tornar quase obsessiva a questão do eventual mangusto, problematizando-a e fugindo às eventuais soluções.
Se a temática, delicada, não é nova, “O mangusto” seduz pela sensibilidade com que Joana Mosi a aborda e, acima de tudo, pelo tratamento gráfico que apõe ao seu relato, gerindo curtos diálogos, conversas monocórdicas ou silêncios ensurdecedores com uma surpreendente maturidade.
Por outro lado, a narrativa raras vezes é linear, com presente e passado a alternarem, ou com diversos momentos da actualidade a sucederem-se nas mesmas páginas que, dessa forma, assumem vários planos de acção, numa planificação aparentemente indefinida e anárquica que impede a acomodação do leitor.
Devemos atentar em especial na forma como Joana Mosi gere os tempos, o movimento
e a dicotomia som/silêncios, numa narrativa quase sempre lenta, proporcionando uma leitura profunda e detalhalista, apesar da aparente simplicidade do traço utilizado, que se arrasta no tempo, de forma insidiosa, a um tempo próxima e incómoda, pelo modo como transborda sentimentos e emoções de tão difícil gestão.

O mangusto
Joana Mosi
A Seita
184 p., 25,00 €


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Tinham razão em revoltar-se

De 1968 a 1978, uma década quente em França
Dominique Grange, com desenho de Tardi, traça retrato autobiográfico de militantismo político

Não acredito em ‘leituras de Verão’ nem em ‘aproveitar as férias’ para ler. Quem lê, lê o ano todo; quem não lê, aproveita o tempo livre para descansar e se divertir. Por isso e porque o meu tempo da sua leitura foi agora, trago hoje “Elise e os novos partisans”, uma banda desenhada que é tudo menos ‘leitura de Verão’ na comum acepção facilitista desta designação.
Obra auto-biográfica, mesmo que não intensiva mas militante, este álbum, com a assinatura gráfica do grande Jacques Tardi, companheiro de Dominique Grange, narra uma década da vida desta cantautora e activista política. Mas não uma década qualquer, antes a que mediou entre os anos de 1968 e 1978, dos mais quentes que a França viveu socialmente no pós-II Guerra Mundial.
A Elise do relato é, assim, o alter-ego de Dominique Grange e com ela vamos acompanhar a doutrinação política feita por voluntários por toda a França, os desafiadores debates entre camaradas, os sucessivos levantamentos populares, das lutas pela auto-determinação da Argélia às revoltas estudantis, dos combates por melhores condições de trabalho nas fábricas, nas minas e um pouco por toda a parte à explosão de inúmeos movimentos políticos, à esquerda e à direita. Movimentos, greves, manifestações, ocupações, que valeram resposta violenta e brutal por parte das forças policiais, prisões arbitrárias, maus tratos, bastonadas, pontapés, insultos, gestos racistas letais em contraste com o peso e valor da solidariedade pura e genuína.
Em quase duzentas páginas de banda desenhada, em que a acção e as reacções se sucedem a um ritmo frenético, sem tempo para parar, meditar ou reflectir, Grange expõe a sua experiência, partilhando o que sucedeu um pouco por todo o hexágono e as notícias, animadoras ou frustrantes, que chegavam do Vietname, da Argélia, do Chile ou até de Portugal, com a queda de algumas ditaduras ou a instituição de outras, num relato intenso que soa estranho e, por vezes, até surreal, enquanto retrato de um tempo que já não vivemos e que nos parece quase pouco credível.
…quando afinal hoje, se bem que por motivos diferentes, aqui e ali e de forma tão evidente em França, a brutalidade policial, a repressão, o racismo e a xenofobia continuam e estes ecos de há meio século continuam a ressoar.

Elise e os novos partisans
Dominique Grange e Jacques Tardi
Ala dos Livros
176 p., 29,90 €


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F. Cleto e Pina

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Um invulgar quarteto de heróis nacionais

Homenagem aos filmes, séries, BD e jogos de vídeo dos anos 1980/90
Todas as aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy num único volume com conto inédito

Em 2010, a banda desenhada portuguesa era surpreendida com o lançamento de “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”, que viriam a demonstrar – mais três livros e quatro anos depois – que os quadradinhos nacionais eram capazes de chegar a leitores fora do habitual nicho e podiam ter como protagonistas heróis recorrentes e marcantes. No caso, um detective do paranormal capaz de se transformar em lobisomem, um entregador de pizzas, um demónio de seis mil anos preso num corpo de criança e a cabeça de uma gárgula. Juntos, foram capazes de salvar o mundo por diversas vezes, enfrentando um exército de nazis no subsolo de Lisboa, evitando o Apocalipse à justa com uma ajuda da Senhora de Fátima, sobrevivendo ao fisco, vencendo uma ameaça vinda do espaço e demonstrando que o último capítulo de uma trilogia nem sempre é o pior.
O desejo confessado pelos autores de reunir todas as aventuras, os relatos longos e as narrativas curtas, num único tomo, concretizou-se há um par de meses com “As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy”. O percurso não foi fácil nem pacífico, mas a verdade é que olhando hoje para trás e relendo estas histórias, mesmo sabendo que entretanto a dupla de autores já nos proporcionou obras de um outro calibre como “Os Vampiros” e “Balada para Sophie”, é notória a evolução e encontramos nelas tudo aquilo que as tornaram distintas e apelativas: um ritmo vivo, um humor inteligente e desafiador, uma montagem cinematográfica das pranchas, um desenho dinâmico e, em jeito de homenagem, a multiplicação de referências aos filmes, séries, bandas desenhadas e jogos de vídeo que marcaram a geração dos anos 1980/90.
Como atractivo, para além dos prefácios originais de John Landis, Lloyd Kaufman, George A. Romero e Tobe Hooper, o primeiro ‘integral’ da banda desenhada portuguesa inclui um texto de João M. Lameiras sobre o percurso dos criadores e das criaturas, sustentado por uma série de extras dos vários volumes, e um conto ilustrado inédito sobre as origens da Madame Chen, mais próximo do actual registo mais intimista e sério dos autores, que de alguma forma reflecte o que Filipe Melo escreve no prefácio, que estas histórias despretensiosas e muito divertidas são também “sobre a passagem do tempo e a transição para a idade adulta”.

As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy
Filipe Melo e Juan Cavia
Companhia das Letras
392 p., 48,45 €


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