Categoria: Recortes

Um duplo olhar para o passado

Histórias humanas com a guerra como cenário de fundo
Colecção “Obras de Pratt” recupera obras menos conhecidas do criador de Corto Maltese

Terminado 2023 e com a habitual acalmia editorial das primeiras semanas do novo ano é altura de recuperar alguns dos títulos que a sucessão de novas edições impediu de ler e/ou recensear.
Uma delas, é o segundo tomo da colecção “Obras de Pratt”, que a Ala dos Livros inaugurou com “Anna na Selva”, e em que estão a ser recuperados títulos menos conhecidos do autor veneziano, que é como quem diz, o muito que ele fez para lá de “Corto Maltese” e “Os Escorpiões do Deserto”, duas séries já com edição integral portuguesa.
Intitulado “Koinsky relata… meia dúzia de coisas que sei sobre eles”, curiosamente é narrado pelo protagonista de “Os Escorpiões…” e reúne cinco narrativas originalmente escritas e desenhadas em 1956 e 1957, quando Pratt vivia em Londres.
São relatos de guerra, é verdade porque decorrem em cenários da Primeira e Segunda guerra mundiais, mas na realidade são apenas histórias de seres humanos que estiveram no local errado, no momento errado, porque é isso que a guerra é, e tentaram fazer o melhor possível, apesar da cobardia ou da coragem forçada, de crendices e superstições, de paixões e alianças momentâneas, de crenças, convicções, ideais ou dos meros acasos que o destino proporcionou.
Pensadas e executadas num tempo em que a banda desenhada não tinha o estatuto de que merecidamente goza hoje, possivelmente até para formatos diferentes, estes cinco contos amorais surgem agora numa edição cuidada, em que cada um é introduzido por um breve resumo, fotografias da época, aguarelas alusivas coloridas e desenhos preparatórios.
Cruzando protagonistas e figurantes de diferentes origens, nacionalidades e temperamentos, saltitando entre o Norte de África, Itália ou a Palestina, encontramos neste “Koinsky…” algumas das temáticas caras a Pratt, nomeadamente os absurdos em que as guerras são férteis e o predomínio do indivíduo e do livre arbítrio sobre as massas e as imposições a que são sujeitas, e não deixa de ser curioso que relatos com mais de seis décadas, já levantem questões que hoje, como afinal então, embora com perspectivas diferentes, já eram actuais e fracturantes, como a independência de algumas repúblicas da ex-URSS ou o destino do território da Palestina, que nos nossos dias continuam na ordem do dia e sem resolução.

Obras de Pratt: Koinsky
Hugo Pratt
Ala dos Livros
196 p., 39,90 €


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F. Cleto e Pina

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Muita BD para ver

Festivais e eventos multiplicam-se no primeiro semestre

Sinónimo do bom momento que a edição de banda desenhada vive actualmente, o primeiro semestre deste ano está recheado de eventos desdicados a esta arte.
As hostilidades abrem a 18 de Março, na Lourinhã, com a segunda edição do Louri’BD

Neste momento estamos a tratar com o município da Lourinhã da programação, da qual não te posso adiantar nada, porque não temos autorização para o fazer.
A única coisa que te posso dizer é que o evento se vai realizar entre 18 a 24 de Março. Vamos centrar o evento propriamente dito nos dias 22, 23 e 24 Março.
O Município da Lourinhã lançou no início deste mês a sua agenda cultural para Janeiro, Fevereiro e Março, com uma programação que acolhe projectos nacionais e locais, na sua maioria, com entrada gratuita. É capa uma ilustração do livro ‘E depois do Abril’, dos autores Filipe Duarte e André Mateus, obra que será lançada no LouriBD, uma parceria da autarquia com a editora local, Escorpião Azul, com o apoio da Antena1. Num comunicado enviado ao ALVORADA a autarquia revela que o evento decorrerá entre 18 e 24 de Março, com o tema ‘Monstros’ e contará ainda com lançamentos de outros livros, conversas, debates, workshops, cinema de animação, uma Feira do Livro de Banda Desenhada, um concerto ilustrado, sessões de autógrafos, exposições de peças de arte, bem como pranchas originais de banda-desenhada.
Em Março, para além de cinema e cinema de animação, um workshop de encadernação clássica, poesia para bebés e ‘Yoga entre Histórias’, a Lourinhã dinamiza a 2ª edição do Festival de Banda Desenhada da Lourinhã – LouriBD – que tem por objectivo tornar acessível e aproximar todas as pessoas, independentemente, das idades e literacias, à Nona Arte. O evento decorrerá no Centro Cultural Dr. Afonso Rodrigues Pereira, com entrada livre, e terá uma programação dirigida às escolas, entre os dias 18 e 22 e ao público em geral, entre os dias 22 e 24.


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F. Cleto e Pina

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Uma fábula sobre tempos incertos

E se a felicidade pudesse ser concedida por uma fórmula matemática?
Obra publicada em dois volumes há década e meia, surge agora em edição integral

Devido à pequena dimensão do mercado editorial português de BD e às consequentes tiragens curtas, há obras nacionais que se tornaram quase lendárias. Uma delas é “A Fórmula da Felicidade”, publicada originalmente em dois tomos há cerca de década e meia que desapareceram há muito do mercado e eram procuradas por colecionadores ou leitores interessados.
Agora, ressurge numa edição integral, com todas as vantagens das técnicas de produção e impressão modernas, e com um posfácio extra de 16 páginas, que na verdade é um prólogo e acrescenta um elemento importante ao relato.
Escrito por Nuno Duarte, também guionista das Produções Fictícias que tantos projectos levaram ao pequeno ecrã, tem como ponto de partida uma curiosa pergunta: e se a felicidade estivesse dependente de uma fórmula matemática? A resposta, forte e bem estruturada, tem por protagonista Victor, um génio matemático, filho de uma prostituta e de pai incógnito, por isso marginalizado e humilhado por todos, que busca nos números o refúgio e o consolo que os humanos não lhe dão.
Quando descobre a tal fórmula que, quando lida por ele, produz a felicidade instantânea, Victor, transformado em guru da moda e milagreiro de trazer por casa, passa de desprezado a adulado mas, apesar da aparente realização pessoal e da fama recebida, devidamente exploradas por uma sociedade com fins lucrativos, mergulha numa espiral descendente de auto-destruição, cada vez mais sozinho apesar das multidões que o procuram.
Crítica premente, com ramificações familiares, sociais, políticas e religiosas, “A Fórmula da Felicidade” graficamente é mais um belo trabalho de Osvaldo Medina, bem servido por um colorido de tons suaves da responsabilidade de Ana Freitas. O desenhador revela uma grande legibilidade na planificação e na disposição dos elementos nas vinhetas e uma conseguida opção de dotar as personagens com cabeças de animais, escolhidas de acordo com as características de cada um (animal e humano), que contribuem para acentuar os pontos fortes da narrativa e permitem ao leitor um ilusório distanciamento. Ilusório, porque, apesar dos anos passados sobre a sua criação, esta fábula sobre tempos incertos, em que tantos falsos profetas facilmente encontram seguidores, continua actual e incómoda.

A Fórmula da Felicidade – Edição integral
Nuno Duarte e Osvaldo Medina
Kingpin Books
112 p., 21,50 €


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F. Cleto e Pina

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Enquanto as memórias se vão apagando

Uma viagem atribulada atrás de um tempo que já não volta
A doença de Alzheimer num relato terno e sensível baseado na vivência da autora

Já evocada pela banda desenhada em obras como “Rugas”, de Paco Roca (edição Levoir), a doença de Alzheimer é um dos piores pesadelos que podemos antever. Pelo esquecimento progressivo, mas também pelos momentos de lucidez que vão ocorrendo. É por isso que uma das protagonistas de “Não me esqueças”, que a ASA acaba de editar, diz: “Acho que estou a ficar maluca… Mas o pior é quando me lembro”.
Porque ela, avó de Clémence, tem Alzheimer. A filha, médica, atarefada pelo corre-corre quotidiano, colocou-a num lar, de onde acaba de fugir mais uma vez quando a história começa. Não porque se sinta maltratada ou solitária – na verdade, não se lembra… – mas porque teme que os pais estejam preocupados pelo seu desaparecimento…
Sendo a solução apresentada aumentar o cocktail químico para a acalmar, Clémence, a neta que foi por ela criada, decide levá-la à socapa do lar, para irem à casa da infância, esperando que o choque a ajude a recuperar a memória, a voltar a ser a sua avó.
“Não me esqueças” é o relato dessa viagem atribulada, pela situação da avó e por algumas peripécias que vão acontecendo, uma viagem carregada de recordações, emoções, memórias que vão e vêm. Uma história sensível e tocante, aqui e ali com um toque de um humor triste, que soa como antecipação do que tememos que nos possa vir a acontecer: esquecer quem somos, o que fomos, aqueles que amamos, ficarmos presos num pedaço de realidade ultrapassada, da qual escapamos por breves momentos, apenas para cairmos em nós e vermos aquilo em que nos tornamos.
O vazio, o esquecimento, o apagamento que são o mote desta belíssima narrativa, são acentuados pela forma como Alix Garin, que projectou em Clémence muito da sua experiência pessoal, os traduz com um traço extremamente simples, eliminando muitas vezes os cenários, até o próprio carro, e transmitindo com invulgar assertividade as emoções que extravasam as imagens, a angústia, o vazio, a solidão, o nada em que uma vida se pode tornar, mas com uma enorme ternura e um ligeiro sentimento de esperança que preenche e conforta o coração do leitor e o ajuda a aceitar o que é inevitável e a ter vontade de corrigir o que ainda é possível.

Não me esqueças
Alix Garin
ASA
224 p., 24,90 €


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F. Cleto e Pina

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Paulo J. Mendes vence Prémio Jorge Magalhães com “Elviro”

Paulo J. Mendes, foi distinguido com o Prémio Jorge Magalhães de Argumento para Banda Desenhada, referente ao ano editorial de 2022, pela sua obra “Elviro”, editada pela Escorpião Azul.
Ao JN, o autor nortenho referiu que esta distinção, que vem juntar-se ao troféu para Melhor Álbum de Autor Português, recebido no recente Amadora BD, “para alguém que nunca está satisfeito e questiona permanentemente o próprio trabalho é algo de gratificante e um sinal de que provavelmente até vamos fazendo qualquer coisa de jeito.”
Sendo um prémio para argumento, como autor apostado em “criar histórias e respectivos mundos, acaba por ter um valor acrescentado”. E desenvolve: “ Uma boa história aguenta-se bem com um desenho menos bom, mas o oposto já não é possível, o que diz muito da importância do argumento”.
“Elviro”, segundo o escritor e desenhador, é “um divertimento que nasceu nos tempos cinzentos da pandemia, que celebra os dias soalheiros do Verão de época já remota, com um leve toque picante” e também “uma homenagem aos velhos e pitorescos transportes públicos desse tempo e respectivos entusiastas que os registaram para a posteridade”, no caso os eléctricos de Nalgas do Mar, a estância balnear em que decorre o relato, semelhantes aos que o Porto ainda vai tendo.
O sucesso desta obra, bem como de “O Penteador” (Escorpião Azul), distinguido em 2020 com uma Menção Honrosa, não o fazem arrepender de “um afastamento da BD de décadas, que resultou de uma sucessão de acontecimentos muito específicos”. E explica que possivelmente “era assim que as coisas estavam destinadas a ser. Perante isto, e deitando mão ao velho chavão “mais vale tarde do que nunca”, o tempo não é de pensar naquilo que poderia ter sido feito no passado, mas sim olhar para o que ainda temos pela frente com muita motivação”.
E pela frente, está um novo livro, “cuja edição está prevista para o Outono de 2024”. E revela, entusiasmado: “é extenso, com cerca de 250 pranchas”, em que tem “estado completamente imerso como um eremita, não por causa de prazos mas pela entusiástica vontade de avançar”. Relativamente à história, adianta que “terá um humor aqui e ali mais ácido e negro, e começa com uma personagem que é obrigada a revisitar o seu passado, desencadeando com isso uma caldeirada de peripécias!”
Paulo J. Mendes, que já tinha sido distinguido com uma Menção Honrosa em 2020, por “O Penteador” (Escorpião Azul), sucede a Filipe Melo (“Balada Para Sophie”, 2020, Companhia das Letras) e a “O Fogo Sagrado” (Derradé, 2021, Escorpião Azul).
O júri decidiu também atribuir uma Menção Honrosa a Bernardo Majer por “Estes Dias” (Polvo).
O Prémio Jorge Magalhães, é uma iniciativa da editora Ala dos Livros e uma homenagem a alguém que dedicou a sua vida à escrita e à BD, como editor, coordenador de revistas (“Mundo de Aventuras”, “Mosquito – 5.ª série”, “Selecções BD”…) ou argumentista, com o objetivo de dignificar e valorizar o argumento na Banda Desenhada.


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F. Cleto e Pina

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Ascensão e queda na terra dos sonhos

O grande romance americano visto por um grande desenhador português
“O Grande Gatsby” retrata os loucos anos 1920 na América

Considerado hoje por muitos “o grande romance americano”, “O Grande Gatsby”, quase a completar 100 anos da primeira publicação, em 1925, não teve na altura grande sucesso, tendo vindo no entanto a ganhar relevância ao longo dos anos.
Na actual apetência da banda desenhada pela adaptação de clássicos da literatura, esta obra de F. Scott Fitzgerald não passou despercebida e uma das versões mais recentes tem a assinatura do desenhador português Jorge Coelho. Publicada originalmente há cerca de dois anos, em comic book, está agora em volume integral nas livrarias portuguesas, numa co-edição A Seita/Comic Heart, na colecção Nona Literatura, dedicada a adaptações literárias em BD.
Gatsby, o protagonista do romance, tem pontos de contacto com Fitzgerald, já que ambos nasceram em meio humilde, foram rejeitados pela mulher que amaram até alcançarem sucesso e, essa rejeição, levou-os a participar na Primeira Grande Guerra.
Ambientado nos “loucos anos 1920”, numa América que era simultaneamente a terra de todos os sonhos e o cemitério da maior parte das ilusões, “O Grande Gatsby” é um retrato duma época que um determinado estrato da sociedade norte-americana viveu de forma faustosa e ostentatória, em claro contraste com a vacuidade das suas existências vividas mais em função da forma do que do conteúdo.
História de paixões, amores ou simples caprichos sentimentais, esta adaptação escrita por Ted Adams encontrou em Jorge Coelho o artista ideal para recriar aquela obra, com o importante contributo das cores da também portuguesa Inês Amaro. O desenhador, que se lançou no mercado norte-americano a desenhar super-heróis para a Marvel, apresenta um notável retrato de época graças a um traço realista, fino e elegante, com o qual recria as enormes mansões e as grandiosas festas que nela tinham lugar, os potentes automóveis que começavam a encher as estradas e as personagens marcantes, orgulhosas e frias que Fitzgerald imaginou.
A opção por manter doses consideráveis do texto original nalgumas cenas, a par de outras que assentam apenas em balões de diálogo, torna o seu desfrutar mais pausado e obriga a um exercício de leitura mais apurado para fruir o belo desenho e reter da combinação de texto e arte a essência daquilo que Fitzgerald quis transmitir.

O Grande Gatsby
Adaptação da obra de F. Scott Fitzgerald
Ted Adams e Jorge Coelho
A Seita
176 p., 28,00 €


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Desta vez, a culpa foi do gato

E se as telas que atribuímos a Van Gogh tivessem outro autor?
Um mergulho irreal e bem-humorado nos meandros da criação

E se afinal, as sublimes pinturas que desde sempre atribuímos ao génio de Van Gogh, afinal não tivessem sido pintadas por ele, mas sim… pelo seu gato?! É esta a base de “Vincent e Van Gogh”, que a Arte de Autor acaba de editar em versão integral.
O autor é Gradimir Smudja, nascido na então Jugoslávia, em 1954, que desenvolve aquela tese, de forma bem-humorada e original, partindo do salvamento do felino pelo artista. Como recompensa, este último desata a pintar, ao mesmo tempo que entre os dois se desenvolve uma relação tóxica com Vincent (o gato) a ser dominante e tirano e a submeter e reduzir à sua pequenez aquele que conhecíamos como pintor.
Explorando factos históricos, a relação com outros artistas da época, as técnicas, cores e telas que (re)conhecemos como da autoria de Van Gogh e explicando até a famosa perda da orelha, Smudja acaba por nos levar por um passeio com tanto de histórico quanto de irreal numa época-chave da História da Pintura europeia, subvertendo e fantasiando enquanto faz a narração. Vivendo como um pobre diabo, Van Gogh só depois de morto, por mãos travessas, irá assinar as telas e ascender à fama que em vida não gozou, espelhando uma realidade comum a outros criadores.
Se o relato inicial, “Vincent e Van Gogh”, tinha tido edição nacional há duas décadas, já “Três Luas”, segundo relato deste sólido volume, era até agora inédito em português. Partindo da ressurreição do pintor e do gato, quais zombies, fá-los embarcar numa viagem pelo tempo e pelas artes porque, para lá da pintura, desta vez também são evocados o cinema, a escultura, a poesia e a própria banda desenhada, numa corrida desenfreada em que tempo e espaço se confundem.
Vladimir Smudja, de quem a Arte de Autor já tinha proposto “Mausart” no ano transacto, uma versão ficcionada das vidas de Salieri, Mozart e Stradivarius, com animais antropomorfizados, direccionada primeiramente para um público juvenil, neste díptico mais uma vez utiliza a técnica de pintura a pastel em que é mestre para desafiar leitores maduros a deixarem-se mergulhar nos meandros da criação, nas questões de autenticidade e propriedade intelectual e, de forma subjacente, nas próprias telas e noutras obras famosas e reconhecidas.

Vincente e Van Gogh (integral)
Vladimir Smudja
Arte de Autor
120 p., 27,505 €


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Morris nasceu há 100 anos

Relato biográfico de uma fugitiva da Coreia do Norte
Acontecimentos durante a fuga marcaram a vida da mãe da autora

Em “A Espera” edição recente da Iguana, a coreana Keum Suk Gendry-Kim conta a vida da mãe antes, durante e depois da separação das duas Coreias, após a II Guerra Mundial e a divisão do mundo em dois blocos.
Obviamente, porque parte da narrativa decorre no tempo presente, há em “A Espera” também uma componente autobiográfica, numa exposição contida e de alguma forma catártica da autora, que se utiliza para realçar o momento actual da mãe e a sua relação nem sempre fácil com ela, como reflexo de tudo o que sofreu no momento da divisão da península coreana.
É um relato com diversos saltos temporais, com o presente e o passado a alternarem perante os olhos do leitor, que possui um enquadramento cultural e sociológico para que a narrativa seja mais compreensível e para explicar determinadas opções. Em “A Espera”, vamos acompanhar a mãe da autora quando empreendeu uma longa caminhada, com parcos apoios e sem condições, com o objectivo de abandonar o Norte e fugir para o supostamente paradisíaco Sul, levando consigo praticamente apenas a roupa do corpo e uma bebé às costas, em companhia do marido e do filho mais velho. E de milhares de outros coreanos, num êxodo massivo e desesperado. Mortificada, muitas vezes descrente, num acaso de um percurso atribulado, mais exactamente num gesto tão amoroso e maternal como parar para dar de mamar ao bebé, a mãe de Gendry-Kim acabou por se ver separada do companheiro e do filho, a quem nunca mais voltou a ver. Entre a espera por eles – que se eternizará no tempo – a necessidade de por fim retomar a marcha na expectativa de que estivessem mais à frente e a chegada ao destino, angustiante e pesarosa pela separação, compreendemos como aquele acontecimento marcou aquela mulher que, desde então – ao longo de mais de meio século – viveu sob o fardo de um sentimento de culpa que se reflectiu em tudo o que a vida lhe deu.
Essa é uma das notas mais fortes e distintivas deste romance desenhado com pinceladas de preto e branco, largas e expressivas, manchas e sombras em que Gendry-Kim, com um pudismo assinalável, propõe um relato emotivo em que somos convidados a olhar para pessoas como nós num mundo que, ilusoriamente, tem pouco a ver com o nosso.

A Espera
Keum Suk Gendry-Kim
Iguana
248 p., 20,95 €


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F. Cleto e Pina

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Morris nasceu há 100 anos

Criador de Lucky Luke desenhou cerca de sete dezenas de álbuns do “cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra”

A 1 de Dezembro de 1923, Courtrai, na Bélgica, assistia ao nascimento de Maurice De Bevere. Ninguém sabia ainda, mas iria tornar-se célebre sob o pseudónimo de Morris.
Filho de um fabricante de cachimbos artesanais, frequentou o colégio jesuíta de Saint-Joseph, cujas fardas sacerdotais lhe inspiraram mais tarde as vestes dos cangalheiros em Lucky Luke.
Aos 20 anos, após ter aprendido a técnica de animação através de um curso por correspondência, começou a trabalhar num estúdio belga de desenhos animados, passando a tinta os desenhos. Foi lá que conheceu Peyo (criador dos Schtroumpfs), Franquin (Spirou, Gaston Lagaffe) e Eddy Paape (Luc Orient), com quem desenvolveu amizade e partilhou muitas experiências. A par da animação, começou também a fornecer ilustrações para publicações como “Le Moustique”, “Humoradio” ou “Het Laatste Nieuws”.
1946 seria o ano de mudança de vida. Em Dezembro desse ano, o “L’Almanach Spirou 1947” incluía uma história de 27 páginas intitulada “Arizona 1880”, protagonizada por um cowboy chamado… Lucky Luke, graficamente ainda muito distante do que conhecemos hoje.
No ano seguinte, a “Spirou” estreava “La Mine d’Or de Dick Digger”, com argumento do seu irmão Louis, e o sucesso seria tal que, logo em 1949, as aventuras daquele que viria a ser conhecido como “o cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra” seriam também editadas em álbum.
Um ano antes, em companhia de Franquin e da família de Jijé (Spirou, Jerry Spring), Morris partiria para os Estados Unidos, numa viagem que se revelaria algo atribulada mas também iniciática, parcialmente contada em “Gringos Locos”. Permaneceu naquele país alguns anos, assistiu ao nascimento da revista humorística “MAD”, de Jack Davis e Harvey Kurtzman, e conheceria um certo René Goscinny.
Nesta época o desenhador já tinha assumido Lucky Luke por inteiro a solo e, a par do tom humorístico e aventureiro, optou também por incluir personagens célebres do Oeste nos seus álbuns, como simples figurantes ou até co-protagonistas. Foi o caso de Phil Defer ou dos Dalton que Morris, respeitando a veracidade histórica, matou no final de “Fora da Lei”.
Graficamente influenciado pelo traço mais arredondado do cinema de animação, Morris foi desenvolvendo um estilo mais personalizado, extremamente dinâmico e expressivo, com o qual representava tanto cenas interiores como exteriores, os espaços urbanos do Velho Oeste como as zonas montanhosas ou as grandes planícies. A esse traço vivo acrescentou uma planificação que recorria com frequência e picados e contra-picados, privilegiando um ritmo de leitura rápido e de grande vivacidade.
De regresso à Europa, em 1955, entregou os argumentos a René Goscinny, que acentuou o tom paródico e humorístico da série, reduziu a violência realista presente nas primeiras aventuras, recuperou os (primos) Dalton e acrescentou à galeria personagens inesquecíveis como Calamity Jane, Billy the Kid ou Rantanplan, “o cão mais estúpido do Oeste… e também do Este”, para além de tornar mais relevante a participação do cavalo Jolly Jumper, fazendo de Lucky Luke um dos expoentes da banda desenhada franco-belga, a par de Tintin, Astérix ou Spirou.
Em 1968, Lucky Luke passou a cavalgar nas páginas da “Pilote”, saltou daí para um efémero título em nome próprio, passando depois a ser pré-publicado na imprensa generalista, tendo originado diversas séries televisivas e longas-metragens de animação.
Foi aliás a passagem para os ecrãs – e a chegada dos filmes aos Estados Unidos – que obrigou Morris a fazer uma mudança profunda no seu herói que, depois de mais de 40 anos como fumador inveterado, teve de trocar o hábito de enrolar o tabaco e colocar o cigarro nos lábios, pelo mordiscar de uma palhinha, o que acabou por valer ao autor uma distinção por parte da Organização Mundial de Saúde, em 1988.
Com a morte de Goscinny, em 1977, Morris recorreu a um sem número de argumentistas, entre os quais Xavier Fauche ou Bob De Groot, sem conseguir contrariar o declínio da série, mas nem sequer o falecimento do desenhador, em 2001, após desenhar cerca de sete dezenas de álbuns do herói e mais alguns de Rantanplan, impediu que a série prosseguisse, estando hoje entregue a Achdé e Jul, e tendo já vendido cerca de 400 milhões de álbuns em todo o mundo.


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BD PALOP, um projecto para abrir horizontes aos falantes da Língua Portuguesa

Primeiros livros chegam em Novembro às livrarias

Intitula-se BD PALOP, quer promover e desenvolver “um género literário que trará outros horizontes à imaginação das novas gerações de falantes da Língua Portuguesa” e os primeiros livros chegam às livrarias nacionais este mês.
Criado no âmbito do programa ProCultura, sustentado com fundos da UE, geridos pelo Instituto Camões e pela Gulbenkian, tem como parceiro português o colectivo editorial A Seita. José Hartvig de Freitas, um dos seus responsáveis, revelou ao JN que “foi Bruno Caetano, que teve a ideia de montar um projecto de BD, e falou com Fàbio Ribeiro da Anima, uma empresa de Moçambique, da área da animação.” E continua: “depois, fomos à procura de parceiros em Angola e Cabo Verde, o estúdio BomComix e a Associação JovemTudo”. “De seguida, foram organizados workshops online com autores consagrados”, como André Oliveira, Joana Afonso, João Mascarenhas Jorge Coelho, Miguel Mendonça, Cris Peters, Mário Freitas, Osvaldo Medina que abordaram “temas que presidem à criação de uma BD: argumento, planificação, desenho, arte-final, cor, legendagem, edição, contratos, direitos, etc.”. Para além disso, adianta José de Freitas, “as equipas criativas, três por país (Moçambique, Angola e Cabo Verde) foram acompanhadas por um autor, que serviu de mentor”.
Igualmente importante, “foi a edição dos livros”. Ancorados na realidade ou em lendas africanas, de temática infantil, social ou de super-heróis, os primeiros sete, “já foram distribuídos nos PALOP que integram o projecto”, chegam “durante Novembro às livrarias nacionais” e “estarão à venda no Brasil, em Fevereiro/Março”.
Ao JN, Freitas confessa “que não havia expectativas muito claras, pois a situação do mercado de BD nos PALOP é muito desigual e, nalguns, muito incipiente”. Naturalmente, “as candidaturas foram de qualidade muito variável; no primeiro ano recebemos mais de autores a iniciar-se mas, no segundo, a qualidade média subiu, bem como o número de candidaturas, quase quatro dezenas”. Uma vez que o projecto procura também “ser baseado em critérios de igualdade e de equilíbrio de género, temos tido a felicidade de ter bastantes mulheres entre os formadores, mentores e jurados, e também surgiram muitas autoras”.
Considera que as propostas foram “muito interessante; quase vimos ser recapitulada muita da evolução da BD e da sua linguagem. Mais que tudo, sentimos imenso entusiasmo da parte dos autores, uma sede genuína de informação e conhecimento; as formações foram fantásticas, com criadores portugueses e brasileiros a trocar conhecimentos com os africanos, e uma enorme vontade por parte destes de perceber melhor a linguagem da BD e de melhorar o seu trabalho”.
José de Freitas afirma estar seguro que “ao longo dos três anos a qualidade dos livros irá aumentando e que no final serão 27 obras que irão de certo modo marcar a história da BD nos PALOP; haverá um antes e um depois deste projecto!”.
E termina com um desafio: “que os leitores portugueses adiram, arriscando na descoberta destes livros e destes autores”.

[Caixa]

A Turma do Cabralinho
Domingos Luísa e Coralie Silva
Cabo Verde

Na Cidade da Praia, Cabralinho e os seus amigos adoram ouvir as histórias de bruxas que o seu pai conta. Mas quando a imaginação impera e a ficção se transforma em realidade, as crianças irão viver uma estranha aventura.

Torre Nova
Eliana N’Zualo e Ique Langa
Moçambique

Antigo prédio de luxo, o edifício Torre Nova é agora um microcosmos, que espelha a sociedade e onde se multiplicam os dilemas, as frustrações e os problemas de relacionamento, vistos por um grupo de crianças.

Elektus
Danilson Rodrigues e Nick Agostinho
Angola

Após a independência, um interrogatório numa base militar é interrompido por uma dupla misteriosa, que terá de enfrentar seres modificados geneticamente, para evitar um terrível acontecimento que querem a todo o custo evitar.

Ventage
Florinda Sakamanda e Helder Simões
Angola

A queda de um meteorito, em Luanda, confere poderes extraordinários a alguns dos seus habitantes e transforma outros em monstros. É então formada a Ventage, uma organização que forma mutantes para proteger a sociedade.

Bonga
Darling Catar e Trisha Mamba
Moçambique

Numa Maputo futurista de 2069, assolada por uma onda de crimes, o relato assenta em temas seculares como o receio da diferença, a crendice, a superstição e a necessidade de aceitação dos que são mais próximos.

Panzu – A máscara dos deuses
Luís Mateus e Simão Kusanica
Angola

Panzu ambiciona ser um grande guerreiro, como os seus antepassados, e vai ter essa possibilidade quando, durante um ataque de um leopardo, descobre uma máscara ancestral, com surpreendentes poderes.

Tunuka
Kitty Blunt e Wilson Lopes
Cabo Verde

Ao investigar movimentações criminosas que visam derrubar o ancião que lidera a vila para instalar uma ditadura, Tunuka desenvolve poderes místicos e percebe que há detalhes do seu passado que ainda tem de descobrir.


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