Categoria: Recortes

Nos lugares do fundo do autocarro

Um comando negro em território francês ocupado, em busca de um tesouro patrimonial
História ficcionada, guerra e racismo coexistem no primeiro grande livro de BD do pós-férias

Primeiro grande livro de BD do pós-férias, “Uma estrela de algodão preto” tem como tema central o racismo profundamente enraizado nos Estados Unidos, não desde tempos imemoriais, como quase escrevi, mas desde a sua fundação enquanto nação, o que paradoxalmente implica maior longevidade…
Mas esta obra pode ser encarada sob dois outros registos: o histórico ficcional e o relato de guerra, este mais do ponto de vista humano do que heróico. Na realidade, a obra acompanha um comando de soldados negros, em França, durante a II Guerra Mundial, com a missão de recuperarem a primeira bandeira dos Estados Unidos, utilizada na Declaração de Independência, em 1776. Antes desse momento, Yves Sente e Steve Cuzor fazem um longo preâmbulo para nos mostrarem qual o lugar e como eram tratados os soldados negros no exército norte-americano: tal e qual como na maioria dos Estados Unidos, ocupavam os “lugares do fundo do autocarro”, para utilizar uma frase bem expressiva de um deles…
Se a História em “Uma estrela de algodão preto”, passa também por aqui, ela tem início quase dois séculos antes, nos primeiros passos daquela que viria a ser uma das nações mais poderosas do mundo e porta-estandarte de ideais como liberdade e justiça… pelo menos para os que ostentam a cor de pele correcta.
Voltando ao comando negro do relato, para lá do simbolismos óbvio da missão concedida exactamente a eles, os três homens envolvidos na recuperação da bandeira original têm uma motivação extra: descobrir se uma das suas 13 estrelas tinha por detrás uma estrela negra de algodão, supostamente colocada por uma costureira negra.
A narrativa é tensa, as atitudes depreciativas dos soldados e oficiais brancos em relação aos negros multiplicam-se e Sente arrasta conscientemente o progresso da acção para acentuar o clima tenso e opressivo que perpassa por todas as páginas, reforçado pelo traço realista e rico de contrastes de Cuzor.
Mas, apesar dos momentos de ilusão e de afirmação do valor dos negros, independentemente do sucesso ou não da sua missão, que deixo aos leitores descobrirem, a mensagem que permanece é a mesmo que ecoa ainda nos nossos dias: por mais que as estrelas negras brilhem, o seu presente pouco importa e pouco difere do seu passado…

Uma estrela de algodão preto
Yves Sente e Steve Cuzor
Ala dos Livros
192 p., 35,00€


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F. Cleto e Pina

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Georges Bess: “Não escolho os livros que adapto pelos monstros, mas…”

Depois de “Drácula”, a sua adaptação de “Frankenstein” acaba de ser editada em português

Georges Bess aproveitou a oportunidade para ficar mais uns dias e descobrir os encantos da cidade do Porto.
Foi a oportunidade para um encontro com o Jornal de Notícias, durante o qual evocou a sua longa carreira e, em especial, os dois livros disponíveis em português em edições de A Seita : “Drácula” e “Frankenstein”, este último lançado naquele evento.
Nascido em 1947, recorda que desenha “desde pequeno”. Aos 20 anos encontrou “uma sueca e atrás do amor foi para a Suécia”. Evoca “um país muito acolhedor e interessante” mas, “como tinha de ganhar a vida, o desenho pareceu uma via interessante”, Começou por ilustrar “livros de aprendizagem de francês”, mas depois decidiu “tentar a sorte na banda desenhada”. Foi contactando “diversos editores”, até que um dia lhe pediram para “substituir um autor que estava doente” As substituições foram-se sucedendo, permitindo-lhe demonstrar uma das suas principais características: a versatilidade do traço, capaz de se adequar às necessidades.
Do seu período escandinavo, evoca “a participação na versão local da revista ‘Mad’, a personagem ‘Dante’ e, principalmente, o desenho de ‘The Phantom’ (‘Fantasma’), lido e relido em criança, nas tiras recortadas dos jornais”. Mais uma vez, a característica camaleónica do seu traço prestou-se a desenhar “o herói durante cerca de 15 anos, nas diferentes épocas e locais de acção, por vezes aproximando-se do traço de autores que admirava, como Joe Kubert”. Inicialmente “destinado ao mercado sueco, seria distribuído depois na Escandinávia e em dezenas de países”. Numa época em que “se trabalhava sem contrato”, nunca viu “um cêntimo de royalties dessas publicações”.
De regresso a França no final da década de 1980, conheceu o chileno Alejandro Jodorowsky, cineasta, dramaturgo, escritor e argumentista de BD que lhe propôs a série “Le Lama Blanc” (parcialmente editada em Portugal). Foi um “conhecimento fortuito, mas a sua proposta veio ao encontro de uma viagem ao Tibet que tinha realizado anos antes” e o influenciou fortemente”. No mesmo período, com o mesmo escritor desenvolveu uma surpreendente parceria: “um conjunto de histórias infantis publicadas no “Le Journal de Mickey” francês”.
O sucesso da série, inicialmente “pensada para um filme que nunca se realizou, prolongaria a colaboração em ‘Anibal Cinq’ e ‘Juan Solo’”. Mais uma vez, “os estilos diferentes permitiam diversificar e distrair”.
A partir daí, Bess tornou-se “autor completo”. Recorda que “a partir de certa altura, Jodorowsky apenas fornecia a ideia base oralmente”, tendo ele que “escrever o guião e os diálogos”. Por isso, pensou que se já fazia “tudo sozinho, também podia criar histórias próprias”.
Há poucos anos, na sequência de uma operação ao estômago, tendo que ficar imobilizado durante seis meses, começou a fazer desenhos, “a preto e branco, num estilo fantástico; depois, ia ampliando a imagem inicial por várias folhas, obtendo enormes quadros. Eram exercícios de desenho puro, sem qualquer objectivo. Um galerista viu-os, gostou muito e propôs expô-los; foram vistos por um editor que me convidou a fazer uma adaptação de ‘Drácula’ naquele estilo”.
Bess confessa que a princípio não se sentiu “muito atraído” mas, “após uma visita a Londres, onde passeou “no bairro em que Bram Stoker viveu, nas ruas que ele percorreu” e visitou “um cemitério extraordinário e casas góticas muito interessantes, senti uma enorme vontade de o desenhar”.
Depois de “Drácula” (edição portuguesa de A Seita), seguiu-se “Frankenstein”. “São duas obras lidas muito novo, marcantes e cuja influência ainda persiste”.
Gostou de estar no Maia BD, “um pequeno festival recém-nascido, simpático e acolhedor”, mas a sua preferência vai para estar em casa a desenhar. Trabalha “de manhã até ao fim da tarde, de domingo a sábado. Um dia, o desenho a lápis, no seguinte a passagem a tinta. Um álbum de 200 páginas, demora 400 dias a concluir. Mais o tempo de escrita!”
Com “Drácula”, começou por “ler o original”. Depois, colocou-o de lado e desenhou-o “como tinha sentido, realçando as emoções, sem utilizar demasiado o texto original”. Mesmo assim, em obras claramente visuais, mas Bess afirma ter “tentado valorizar a escrita, mantendo alguns termos da época, mas actualizando a linguagem para que seja compreendida hoje”.
A opção pelo preto e branco vem do facto “que torna os desenhos mais fortes, dá-lhes maior impacto”. Nestas obras, mudou “o formato, a técnica, a planificação é muito diversificada, as cenas podem estender-se por páginas duplas, sem seguir modelos mais tradicionais. Poder fazê-lo, ter esta liberdade, é magnífico!” revela claramente satisfeito.
Actualmente, trabalha numa terceira adaptação de “um romance clássico, de um dos mais conhecidos autores franceses”, que ainda não pode divulgar pois encontra-se no segredo dos deuses e dos editores, entre os quais A Seita que já garantiu a edição portuguesa. Curiosamente, como as outras duas, de certa forma também tem um ser deformado como protagonista. Bem-disposto, Bess adianta que não escolhe “as obras a adaptar por terem um monstro, mas…”


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F. Cleto e Pina

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O pequeno problema das últimas semanas

A difícil gestão de sentimentos ao lidar com a perda
Primeiro romance gráfico da portuguesa Joana Mosi aborda a questão do luto

Júlia é trintona, professora de educação física, vive na antiga casa da avó, junto à praia e tem um problema: um mangusto – supõe ela – que apareceu no seu jardim e destruiu a pequena horta caseira que tinha começado.
Este é o resumo, tão intrigante quanto desconcertante, de “O mangusto”, o primeiro romance gráfico da portuguesa Joana Mosi, editado pelo colectivo A Seita.
Porque, na realidade, “O mangusto” é um mergulho no íntimo de Júlia e na forma como ela está a gerir – ou não – o luto relativo à perda do seu marido Paulo. Um luto que a torna quase invisível aos olhos do irmão Joel, mais novo e game designer, que vive com ela desde que ficou desempregado e passa o dia a jogar videojogos; que torna irritante a relação com a mãe protectora e todos os seus conselhos; que a faz cumprir de forma intermitente as responsabilidades profissionais na escola em que está colocada. Em resumo, um estado de negação, que a afasta de tudo e de todos, e em que a passagem do tempo não torna menos dolorosas as recordações em que teima em refugiar-se – ou afogar-se. E de que tenta fugir, ao tornar quase obsessiva a questão do eventual mangusto, problematizando-a e fugindo às eventuais soluções.
Se a temática, delicada, não é nova, “O mangusto” seduz pela sensibilidade com que Joana Mosi a aborda e, acima de tudo, pelo tratamento gráfico que apõe ao seu relato, gerindo curtos diálogos, conversas monocórdicas ou silêncios ensurdecedores com uma surpreendente maturidade.
Por outro lado, a narrativa raras vezes é linear, com presente e passado a alternarem, ou com diversos momentos da actualidade a sucederem-se nas mesmas páginas que, dessa forma, assumem vários planos de acção, numa planificação aparentemente indefinida e anárquica que impede a acomodação do leitor.
Devemos atentar em especial na forma como Joana Mosi gere os tempos, o movimento
e a dicotomia som/silêncios, numa narrativa quase sempre lenta, proporcionando uma leitura profunda e detalhalista, apesar da aparente simplicidade do traço utilizado, que se arrasta no tempo, de forma insidiosa, a um tempo próxima e incómoda, pelo modo como transborda sentimentos e emoções de tão difícil gestão.

O mangusto
Joana Mosi
A Seita
184 p., 25,00 €


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F. Cleto e Pina

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Tinham razão em revoltar-se

De 1968 a 1978, uma década quente em França
Dominique Grange, com desenho de Tardi, traça retrato autobiográfico de militantismo político

Não acredito em ‘leituras de Verão’ nem em ‘aproveitar as férias’ para ler. Quem lê, lê o ano todo; quem não lê, aproveita o tempo livre para descansar e se divertir. Por isso e porque o meu tempo da sua leitura foi agora, trago hoje “Elise e os novos partisans”, uma banda desenhada que é tudo menos ‘leitura de Verão’ na comum acepção facilitista desta designação.
Obra auto-biográfica, mesmo que não intensiva mas militante, este álbum, com a assinatura gráfica do grande Jacques Tardi, companheiro de Dominique Grange, narra uma década da vida desta cantautora e activista política. Mas não uma década qualquer, antes a que mediou entre os anos de 1968 e 1978, dos mais quentes que a França viveu socialmente no pós-II Guerra Mundial.
A Elise do relato é, assim, o alter-ego de Dominique Grange e com ela vamos acompanhar a doutrinação política feita por voluntários por toda a França, os desafiadores debates entre camaradas, os sucessivos levantamentos populares, das lutas pela auto-determinação da Argélia às revoltas estudantis, dos combates por melhores condições de trabalho nas fábricas, nas minas e um pouco por toda a parte à explosão de inúmeos movimentos políticos, à esquerda e à direita. Movimentos, greves, manifestações, ocupações, que valeram resposta violenta e brutal por parte das forças policiais, prisões arbitrárias, maus tratos, bastonadas, pontapés, insultos, gestos racistas letais em contraste com o peso e valor da solidariedade pura e genuína.
Em quase duzentas páginas de banda desenhada, em que a acção e as reacções se sucedem a um ritmo frenético, sem tempo para parar, meditar ou reflectir, Grange expõe a sua experiência, partilhando o que sucedeu um pouco por todo o hexágono e as notícias, animadoras ou frustrantes, que chegavam do Vietname, da Argélia, do Chile ou até de Portugal, com a queda de algumas ditaduras ou a instituição de outras, num relato intenso que soa estranho e, por vezes, até surreal, enquanto retrato de um tempo que já não vivemos e que nos parece quase pouco credível.
…quando afinal hoje, se bem que por motivos diferentes, aqui e ali e de forma tão evidente em França, a brutalidade policial, a repressão, o racismo e a xenofobia continuam e estes ecos de há meio século continuam a ressoar.

Elise e os novos partisans
Dominique Grange e Jacques Tardi
Ala dos Livros
176 p., 29,90 €


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F. Cleto e Pina

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Um invulgar quarteto de heróis nacionais

Homenagem aos filmes, séries, BD e jogos de vídeo dos anos 1980/90
Todas as aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy num único volume com conto inédito

Em 2010, a banda desenhada portuguesa era surpreendida com o lançamento de “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”, que viriam a demonstrar – mais três livros e quatro anos depois – que os quadradinhos nacionais eram capazes de chegar a leitores fora do habitual nicho e podiam ter como protagonistas heróis recorrentes e marcantes. No caso, um detective do paranormal capaz de se transformar em lobisomem, um entregador de pizzas, um demónio de seis mil anos preso num corpo de criança e a cabeça de uma gárgula. Juntos, foram capazes de salvar o mundo por diversas vezes, enfrentando um exército de nazis no subsolo de Lisboa, evitando o Apocalipse à justa com uma ajuda da Senhora de Fátima, sobrevivendo ao fisco, vencendo uma ameaça vinda do espaço e demonstrando que o último capítulo de uma trilogia nem sempre é o pior.
O desejo confessado pelos autores de reunir todas as aventuras, os relatos longos e as narrativas curtas, num único tomo, concretizou-se há um par de meses com “As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy”. O percurso não foi fácil nem pacífico, mas a verdade é que olhando hoje para trás e relendo estas histórias, mesmo sabendo que entretanto a dupla de autores já nos proporcionou obras de um outro calibre como “Os Vampiros” e “Balada para Sophie”, é notória a evolução e encontramos nelas tudo aquilo que as tornaram distintas e apelativas: um ritmo vivo, um humor inteligente e desafiador, uma montagem cinematográfica das pranchas, um desenho dinâmico e, em jeito de homenagem, a multiplicação de referências aos filmes, séries, bandas desenhadas e jogos de vídeo que marcaram a geração dos anos 1980/90.
Como atractivo, para além dos prefácios originais de John Landis, Lloyd Kaufman, George A. Romero e Tobe Hooper, o primeiro ‘integral’ da banda desenhada portuguesa inclui um texto de João M. Lameiras sobre o percurso dos criadores e das criaturas, sustentado por uma série de extras dos vários volumes, e um conto ilustrado inédito sobre as origens da Madame Chen, mais próximo do actual registo mais intimista e sério dos autores, que de alguma forma reflecte o que Filipe Melo escreve no prefácio, que estas histórias despretensiosas e muito divertidas são também “sobre a passagem do tempo e a transição para a idade adulta”.

As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy
Filipe Melo e Juan Cavia
Companhia das Letras
392 p., 48,45 €


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Criador de Michel Vaillant nasceu há 100 anos

Piloto automóvel passou três vezes por território português

Jean Graton nasceu há 100 anos, em Nantes da França. A criação do piloto automóvel Michel Vaillant, tornou-o famoso dentro e fora da banda desenhada.
Estreada em 1957, a série ambienta-se no mundo do desporto automóvel e, embora privilegie a Fórmula 1, o piloto com facilidade passeia o seu virtuosismo ao volante por quase todo o género de corridas: ralis, resistência, stock cars ou karting, sempre com o núcleo familiar em fundo, ou não fosse o seu pai o criador da marca Vaillant e o seu irmão, Jean Pierre, o responsável desportivo da marca.
Aliás, esta envolvente familiar será sempre determinante e implicará até um certo envelhecimento das personagens, já que o próprio Michel, de inicio adolescente, acabará por casar e ter mesmo um filho que, já jovem adulto, partilhará o protagonismo na ‘nova temporada’, a versão actual da série assinada por outros autores, em que as aventuras funcionam num formato próximo do das séries televisivas.
Em 1971, Michel fez a sua primeira visita ao nosso país, no álbum “5 filles dans la course!”, que em português ficou conhecido como “Rali em Portugal” (Bertrand, 1976). Essa participação no então Rali TAP será feita em equipas mistas, uma delas composta por Steve Warson e a portuguesa Cândida Maria de Jesus, surgindo também no álbum, naturalmente Alfredo César Torres, o director da prova. Depois de uma passagem por Macau, então ainda sob administração portuguesa, em “Encontro em Macau” (1983), Michel terminaria o seu périplo por terras lusas um ano mais tarde, em “O Homem de Lisboa”, em que o tom automobilístico geralmente determinante coexiste com uma intriga de espionagem industrial.
Se o realismo das suas histórias, o enorme conhecimento do meio automóvel onde se documentava cuidadosamente e as famosas onomatopeias que davam ‘som’ às corridas em papel são imagens de marca da obra maior de Jean Graton, há nelas uma outra peculariedade incontornável: a comunhão entre os heróis de papel e os grandes nomes do automoblismo mundial, uma vez que Jacky Ickx, muitas vezes em equipa com Michel, Niki Lauda, Ayrton Senna ou Michael Schumacher, bem como o português Pedro Lamy em “A febre de Bercy” (1998), foram muitas vezes participantes directos nas aventuras.
A estreia portuguesa do mais famoso piloto da BD deu-se no “Cavaleiro Andante” n.º 357, a 1 de Novembro de 1958, rebaptizado como Miguel Gusmão, como então era do agrado do Estado Novo. E se quase todas as suas aventuras foram publicadas entre nós, no “Zorro”, “Tintin”, “Mundo de Aventuras” ou “Jornal da BD”, ou em álbum pela Íbis, Bertrand, Meribérica, AutoSport ou ASA, há uma que alimenta os sonhos dos coleccionadores e fãs: “A Honra do samurai” (Íbis, 1969), nunca republicada, o que faz dela uma das mais raras edições nacionais de BD.
Jean Graton faleceu a 21 de Janeiro de 2021, com 97 anos.


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F. Cleto e Pina

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12 horas a um passo do inferno

A relação pai/filho renovada numa situação limite
Ethan Hawke regressa à BD, de novo em parceria com Greg Rucka

Depois de “Indeh: Uma história das guerras apaches”, o actor, realizador e também argumentista de BD Ethan Hawke regressou a esta arte – e agora ao catálogo português da G. Floy – com “Meadowlark”. E se as semelhanças terminam na renovada parceria com Greg Ruth, a verdade é que mais uma vez deparamos com uma obra intensa e desafiadora, quase apenas diálogo, directo ou intuído, entre um pai e um filho, num romance gráfico que se desenrola num único dia, aliás quase só do nascer ao pôr-do-sol.
O protagonismo é dividido. De um lado, está Cooper, um adolescente revoltado pela separação dos pais, pela nova relação da mãe, pelo abandono que sente por parte do progenitor. Do outro lado – e esta frase é quase um reflexo da forma de ver do jovem – está Jack, antiga glória do boxe (que nunca o foi verdadeiramente) e actualmente guarda prisional na anódina cidadezinha de Huntsville, no Texas. Desse passado violento, para além dos traumas físicos e psicológicos, trouxe também dívidas de favores que não lhe facilitam a vida.
Um conjunto de acasos, de situações recorrentes e de limites da paciência esgotados, obrigam este último a levar o filho para o trabalho no estabelecimento prisional. A presença de ambos, no local errado, na hora errada, ou seja durante uma revolta dos detidos, para além de colocar as suas vidas em risco, inesperadamente vai acabar por os aproximar e levá-los a (re)descobrirem o que têm em comum e os sentimentos que nutrem um pelo outro.
Relato marcado por muita tensão, acção violenta, situações limite levadas ao extremo e pela obrigação de tomadas de decisão instantâneas, “Meadowlark” é acima de tudo uma reflexão sensível e emotiva sobre a inimitável relação pai/filho, tornada chocante pelo contexto de violência extrema, tanto física quanto psicológica, em que o relato decorre.
O desenho realista de Ruth, parco nos traços utilizados, parcialmente cobertos por tons sépia suaves, com a expressividade de faces e gestos a predominar sobre os pormenores dos cenários, numa planificação ampla em que o número de vinhetas por página é muito reduzido, contribui para realçar as emoções e o movimento, arrastando-nos ao longo das horas em que tantas vezes Cooper e Jack vão estar a um passo do inferno, real e literalmente falando.

Meadowlark
Ethan Hawke e Greg Rucka
G. Floy
256 p., 35,00 €


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Declaração de amor à banda desenhada

Ricardo Leite demorou meio século a concretizar o sonho de fazer BD
Conversa iniciática com os autores que admira e as personagens que o fizeram sonhar

Ricardo Leite é um autor brasileiro, conhecido pelos seus trabalhos de ilustração de capas de discos e de design, para além de ser o CEO da famosa Crama Design Estratégico. E é também o autor de “Em busca do Tintin perdido”, que A Seita em boa hora decidiu editar em Portugal.
O autor define este seu livro como ‘uma ficção autobiográfica’, mas vendo a forma como revela o seu amor pela banda desenhada, é evidente que o seu relato ultrapassa a simples ficção, é reflexo de uma vida real.
Leitor de ‘quadrinhos’ desde os mais tenros anos, aos 13 anos esteve quase a cumprir um sonho, conhecer Hergé, mas o criador de Tintin estava de férias quando o jovem passou por Bruxelas. Esse desencontro, de alguma forma marcou-o e, anos depois, uma estadia de dois anos em França, para tentar afirmar-se como autor, levou-o de desilusão em desilusão, até a falta de fundos e a próxima paternidade o terem obrigado a regressar ao seu país. Aí, a vida real sobrepôs-se ao sonho e durante décadas tornou-se um dos melhores no seu ramo, sem nunca deixar de ser leitor de BD.
Finalmente, aos 55 anos, mudanças profundas levaram-no numa viagem iniciática a Bruxelas, onde pode espreitar o mais fundo de si mesmo, para perceber se os seus sonhos ainda estavam vivos, porque, quando estamos numa encruzilhada, precisamos de descobrir se as nossas aspirações e anseios ainda têm força para nos fazer voar ou estamos já irremediavelmente presos à monotonia do quotidiano.
Para Leite, o resultado foi este “Em busca do Tintin perdido”, uma obra que levou uma década a executar e uma vida a preparar e que se afirma como uma belíssima declaração de amor à banda desenhada, nos seus inúmeros estilos, temáticas e propostas, e um passeio por um século de História desta arte.
São duas centenas de páginas intensas e profundamente emocionais, resultantes de um mergulho no seu âmago e de um passeio inquiridor e de descoberta da banda desenhada, ao longo das quais Leite, em simultâneo autor e personagem, dialoga no papel com os autores que ao longo da vida foi admirando, convive com as personagens que o fizeram viver momentos únicos e maravilhosos e, procurando no seu interior, redescobre a capacidade de ser feliz e ser capaz de fazer viver o seu sonho – e nós com ele.

Em busca do Tintin perdido
Ricardo Leite
A Seita
220 p., 26,00 €


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O homem mais inteligente do mundo

Richard Feynman: músico, arrombador de cofres, PrémioNobel
Obra em BD transmite com fluidez vida exuberante e complexa

Um dos melhores exemplos do potencial que a banda desenhada tem, é a forma como, em tempos recentes, tem abordado duas temáticas que durante anos foram marginalizadas pelos seus leitores: a adaptação de romances e a biografia.
E tem-no feito, não enumerando dados biográficos à exaustão ou ilustrando longos excertos de obras, mas apostando nas virtudes da narrativa sequencial, no equilibro entre texto e desenho e na noção fundamental da interpretação pelo leitor do espaço branco entre as vinhetas.
“Feynman”, edição recente da Gradiva, exemplifica-o de forma conseguida na evocação da vida de uma personalidades de eleição, Richard P. Feynman (1918-1988) que, para além de ter sido músico, desenhador, arrombador de cofres e contador de histórias, trabalhou no desenvolvimento da bomba atómica lançada em Hiroshima, foi laureado com o Prémio Nobel da Física, inovou no domínio da Electrodinâmica Quântica e fez parte da equipa que investigou as origens da explosão do vaivém Challenger.
A sua vida plena, sempre atento às pequenas coisas que, em conjunto, originam os grandes fenómenos, e apostado em falar sobre eles de forma a torná-los simples e acessíveis ao maior número, é o tema deste romance gráfico com quase três centenas de pranchas.
Narrado na primeira pessoa, revela uma invulgar fluidez, tendo em conta a imensa quantidade de informação transmitida e também a enorme complexidade de muita dela, conseguindo seduzir o leitor e levá-lo página após página na peugada de um homem extremamente inteligentea.
O traço simples, mas dinâmico e expressivo, uma boa utilização da cor para evitar a queda na monotonia na sucessão das páginas e, principalmente, o recurso a diálogos equilibrados, assertivos e estimulantes, com o todo combinado num relato ritmado que nos deixa recorrentemente em suspenso sobre o que se seguirá, mesmo tratando-se de uma biografia, fazem deste um livro a ler de forma apaixonada, sim, mas também uma obra sobre um homem exuberante, que ao contrário do que assevera o ditado, tinha muito de sábio e muito de louco, e que nos leva a pensar e reflectir sobre a simplicidade dos fenómenos complexos que nos rodeiam e gerem o nosso mundo.

Feynman
Jim Ottaviani, Lelland Myrick e Hilary Sycamore
Gradiva
272 p., 25,50 €


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F. Cleto e Pina

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Final da viagem no ponto de partida

“Lendas japonesas” adaptam em BD obra de Wenceslau de Moraes
Obra póstuma de José Ruy é homenagem justa e merecida

Raramente a vida permite que assim aconteça mas a verdade é que com estas “Lendas japonesas”, que a editora Polvo acaba de fazer chegar às livrarias, José Ruy (1930-2022) de alguma forma terminou a sua vida onde a tinha começado ou para definir melhor, teve na sua última obra publicada um regresso ao momento onde tudo praticamente começou. E, relembro, tudo é uma carreira notável, uma vida inteiramente dedicada aos quadradinhos, que começou a desenhar aos 14 aos anos e só a morte foi capaz de interromper aos 92, em finais do ano passado.
As onze histórias curtas que compõem este álbum, são outras tantas adaptações de lendas recolhidas no Japão pelo escritor e diplomata Wenceslau de Moraes nos primeiros anos do século XX. Trata-se de histórias singulares que, segundo o próprio José Ruy, o deixaram “apaixonado pelo tema” quando as descobriu, em 1949, tendo originado nove adaptações em “O Papagaio”, então suplemento infantil da revista “Flama”. Três dessas lendas seriam recuperadas no número inaugural dos semi-profissionais “Cadernos da Banda Desenhada” (1987) e José Ruy regressaria ao tema, na mudança do século, desta vez com duas lendas desenhadas de origem para as “Selecções BD”.
Estas narrativas, de cunho fantástico, têm como protagonistas deuses com os defeitos dos homens ou homens que querem ser como os deuses e uma delas, muito curiosa, rãs antropomorfizadas. Possuem propósitos morais, educativos ou com indicações valiosas para o dia-a-dia e, graças à capa dos hábitos e costumes nipónicos, ganham contornos misteriosos e estimulantes que ajudam a perceber a paixão que provocaram no desenhador português.
Aliás, quer nas páginas mais clássicas e elegantes das primeiras versões, mostradas no texto com que José Ruy introduz o leitor na temática, quer nas narrativas inseridas neste volume, é notório o cuidado e apuro gráfico que foi colocado na sua realização, cumprindo o desejo de aproximação do registo desenhado ao espírito dos originais.
Esta edição, cuidada e com bons acabamentos, que fecha com a biografia de Wenceslau de Moraes em BD, esteve agendado para o ano passado mas, por razões diversas, só agora ficou disponível. E se certamente José Ruy teria gostado muito de a ter segurado nas suas mãos, acaba por constituir uma muito justa e merecida homenagem póstuma.

Lendas Japonesas
José Ruy
Polvo
64 p., 16,90 €


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F. Cleto e Pina

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