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Biografia ousada do poeta maldito

Charles Baudelaire revisitado em BD
De regresso ao mercado português, Yslaire conta a sua vida pelos olhos da sua amante

O tema não era fácil nem a obra poderia ser ligeira, mas biografar Charles Baudelaire em banda desenhada comportava riscos óbvios. Bernard Yslaire, que assim regressa ao mercado português com este “Menina Baudelaire”, sai-se muito bem da tarefa a que se propôs, reflectindo a vida atribulada e a inquietação permanente em que viveu o autor de “As flores do mal”.
Partindo da sua morte, em 1867, Yslaire retrocede mais de meio século, até à sua infância, partindo daí para traçar um retrato vigoroso da forma como Baudelaire viveu. Fá-lo, no entanto, por interposta pessoa, especificamente Jeanne Duval, a sua amante, a sua Vénus negra, a sua única e verdadeiro paixão, aquela que o acompanhou enquanto ele quis e que a ele sempre voltou, em especial nos momentos de desânimo, de perda ou de desequilíbrio. É ela que, numa longa missiva dirigida à progenitora do poeta, a quem tenta explicar a intensidade da relação que mantiveram, partilha com os leitores os extremos que balizaram a vida de Baudelaire, entre a boémia a criação frenética, as dívidas constantes e os pedidos de crédito, a companhia de outros criadores – Delacroix, Banville, Nadar… – a pesada herança da sífilis e os efeitos devastadores da medicação com que a combatia que contribuíram decisivamente para a sua decadência acelerada.
Mais do que a biografia única do poeta, bem pode dizer-se que Yslaire traça uma dupla biografia, a dele e de Jeanne, de tal forma em tantas ocasiões foram um só ou se submeteram um ao outro, com um traço realista solto e desenvolto, pontualmente atravessado pelo imaginário dele… e dela, em visões avassaladoras ou pesadelos tornados realidade, que contribuem para tornar mais tortuoso e incómodo um retrato que, aqui e ali, inevitavelmente, roça a provocação e a vontade de chocar, espelhando assim a vida libertina do poeta maldito, cuja obra só pode ser publicada integral e livremente, quase um século após a sua morte.
É a realidade dos tempos que correm – os anos recentes – mas nem por isso se deve passar ao lado. As edições portuguesas apresentam hoje a mesma qualidade superior em termos de papel, impressão ou encadernação, que em tempos invejávamos às originais francófonas , e chegam aos leitores nacionais com pouco ou nenhum atraso em relação a elas, como acontece com, este “Menina Baudelaire”, mais uma belíssima edição da Ala dos Livros que potencia e exibe como merece a obra de Yslaire.

Menina Baudelaire
Yslaire
Ala dos Livros
160 p., 32,00 €


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F. Cleto e Pina

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“Elviro” apresentado no Porto este sábado

O autor Paulo J. Mendes estará presente e falou com o JN sobre o livro

A cafetaria com livros Dona Mira acolhe este sábado, dia 11, às 17 horas, o autor Paulo J. Mendes e o editor da Escorpião Azul, Jorge Deodato, para a apresentação do romance gráfico “Elviro”.
Lançado em Outubro último no Amadora BD, “Elviro” fala-nos da extinção de uma linha de eléctricos na pequena localidade balnear de Nalgas de Mar, dos problemas conjugais entre o protagonista e a esposa, de um encontro de amigos dos transportes ferroviários e um congresso de mirones.
Aproveitando este ‘regresso’ a casa do autor, o Jornal de Notícias conversou com ele, para tentar perceber quem é afinal o protagonista. Segundo Paulo J. Mendes, “Elviro é uma pessoa simples, um normal cidadão de meia-idade a quem aconteceu ter uma paixão por velhos veículos de transporte público, sobretudo eléctricos, provavelmente resultante de viagens e experiências na infância, e que é o seu hobby e o tempero dos seus dias”.
Dias que passa dividido entre os eléctricos e a mulher, pois “gosta de ambos, mas de maneira diferente” diz o autor. E esclarece: “enquanto a paixão pela mulher se dilui na rotina dos dias, a dos eléctricos é constantemente avivada pela novidade, sobretudo na época de grandes mudanças em que a história se situa. Claro que uma ‘balança comercial’ tão desequilibrada não poderia senão originar uma postura reclamante e impaciente do lado matrimonial e a conflitualidade daí resultante”.
A banda desenhada, bem disposta e recheada de surpresas, começa quando ambos chegam a Nalgas de Mar, a tempo de Elviro participar na última viagem do último eléctrico. O detalhe e rigor expressos na narrativa, não surpreendem, sabendo-se que a história se baseia num “episódio que ocorreu em Espanha no início dos anos sessenta, quando aquele país importou troleicarros que Londres estava a descartar, para distribuir por várias cidades, nalguns casos substituindo pitorescas linhas de eléctricos”. E prossegue, confessando que “o facto de partilhar com o Elviro muito do interesse por este tema acaba por funcionar como elo de ligação entre Nalgas e o Porto”, pois “na época em questão e nas décadas que se seguiram ocorreram extinções de linhas de eléctricos um pouco por todo o mundo, sendo que podemos estabelecer algum paralelismo com o caso do Porto, que ainda vivenciei, e o de outras cidades portuguesas”.
Para além da afluência dos apreciadores de eléctricos e comboios, Paulo J. Mendes agenda para a mesma altura, com resultados muito divertidos, um Congresso de Mirones, “ideia inspirada numa cena de “Nem Guerra nem Paz”, um filme de Woody Allen, em que numa malaposta viaja o tolo da aldeia que vai participar num congresso de tolos…”
Depois de em “O Penteador”, livro de estreia de Paulo J. Mendes, os protagonistas passarem o tempo entre jantaradas e corridas nus pela pacífica localidade de Poço Redondo, em “Elviro” voltamos a encontrar muitas refeições em grupo e convívios entre amigos. O desenhador nega que isso “seja um reflexo, pelo menos consciente, do tempo de pandemia”, até porque “o primeiro livro foi dado à estampa uma semana antes de nos mandarem para casa”, mas reconhece que criar “Elviro” ocupou “boa parte do tempo de clausura”, o que se reflecte “no ambiente de sol e praia, algo que ansiava fervorosamente nesses dias cinzentos”.
E depois de Poço Redondo e de Nalgas de Mar, onde nos vais levar o autor? Sem levantar muito o véu, adianta estar “com dois projectos de registos diferentes, um deles com argumento de um amigo” e que ambos estão já “na fase de storyboard”. O primeiro “por se situar em cenários reais, obriga a um planeamento e pesquisa mais cuidados e demorados, pelo que avança mais devagar do que o segundo”. Este último “tem um pouco dos ingredientes e humor dos trabalhos anteriores, quiçá um pouco mais negro e cruel aqui e ali. Vai-nos levar a uma vila do interior e haverá incursões ao passado, velhas casas cheias de memórias, centros comerciais decrépitos, empreiteiros gananciosos e homofóbicos, uma arte marcial absolutamente inovadora e…”
E o resto fica para outra vez, pois Paulo J., Mendes confessa ainda não saber “como vai acabar esta autêntica bandonovela” nem quando estará pronta, embora tema “que decorrerá muito tempo até podermos ler as duas histórias”.
Este sábado, a partir das 17 horas, estará no Dona Mira, na Rua Duque de Saldanha, 431, para mostrar os originais de “Elviro”, conversar com os seus leitores e para uma sessão de autógrafos.


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A espera valeu a pena

Correria desenfreada por mundos soberbos e extraordinários.
Edição portuguesa de “Saga” acompanha de perto a edição original norte-americana

Três anos depois da edição do nono volume, finalmente está disponível em português o décimo tomo de “Saga”. Este é o preço a pagar pelo facto de a edição portuguesa estar a acompanhar de perto a original, norte-americana no caso, o que há bem poucos anos era bem raro.
Na origem desta longa saga, literalmente, está um amor proibido entre representantes de dois povos tradicionalmente em guerra: embora ambos tenham aspecto humanóide, ela, Alana, tem asas nas costas, e ele, Marcko, chifres retorcidos na testa. O amor impossível e proibido, a certo ponto premiado com o nascimento de uma filha, Hazel, que apresenta – ou é amaldiçoada? – as características de ambos e assume o lugar de narradora da história, leva-os numa fuga sem fim por mundos insólitos, complexos e maravilhosos, em que se multiplicam as armadilhas e as ilusões.
Ao longo dessa fuga, são muitos os seres estranhos que se vão cruzar com os fugitivos, auxiliando-os ou caçando-os: gatos telepatas, humanóides com cabeça de televisor, fantasmas, homúnculos aracnídeos e muitos outros, com os quais o argumentista Brian K. Vaughan e a ilustradora Fiona Staples, vão reinventando um universo novo e inovador mas com questões antigas: racismo, xenofobia, direito à diferença e ao livre arbítrio, atracção sexual, determinação de limites, guerras eternas…
Depois da tragédia que marcou o final do volume anterior e do período sabático que os autores se ofereceram para se dedicarem a outros projectos, nesta décima colectânea disponibilizada em português pela G. Floy reencontramos Hazel e Alana, alguns anos depois, ainda perseguidas e com um alvo permanente nas costas, como sempre a tentarem sobreviver, à custa de esquemas, nem sempre claros ou honestos, vincando a forma desassombrada como todos os temas e situações podem ser abordados e mostrados em “Saga”. Vaughan, continua a enredar-nos e, porque não, a seduzir-nos, com uma narrativa entre a ópera espacial e a novela bem urdida, deixando-nos pendentes de cada situação limite, de cada volteface e de cada uma das muitas surpresas que nos serve, a um ritmo acelerado que não deixa grande espaço para reflexão, mas apenas para uma correria desenfreada e cheia de adrenalina, atrás de protagonistas e figurantes, por mundos soberbos, originais e extraordinários.

Saga – Volume Dez
Brian K. Vaughan e Fiona Staples
G. Floy
168 p., 22,00€


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Bandeira a meia-haste para Jo-El Azara

Taka Takata perde o seu criador

Joseph Franz Hedwig Loeckx faleceu ontem, vítima de um AVC, contava 85 anos. Natural de Drogenbos, na Bélgica flamenga, era mais conhecido pelo pseudónimo de Jo-El Azara, com que assinou as bandas desenhadas de Taka Takata, a sua criação mais famosa.
Como muitos outros autores de banda desenhada estudou no Institut Saint-Luc, em Bruxelas, tendo de seguida, no verão de 1953 conhecido Willy Vandersteen, um dos maiores autores de língua flamenga, a quem assistiu num episódio da série “Bob et Bobette” (“Suskie en Wiske” no original). No ano seguinte entrou para os Estúdios Hergé onde, até 1961, participou na realização dos álbuns “O Caso Girassol”, “Carvão no Porão” e “As Jóias da Castafiore”. Foi lá que conheceu Josette Baujot que viria a ser sua esposa e colorista dos seus álbuns.
Em paralelo, a partir de 1958, colaborou em diversas revistas e jornais como “Spirou”, “Le Soir Illustré” e “Tintin”. A sua bibliografia contempla colaborações com Will em “Jacky et Célestin” ou Greg, na retoma pontual da série “Clifton”.
Finalmente, a 3 de Agosto de 1965, então no seu 20.º ano, a revista “Tintin” belga estreava um herói de nome curioso, Taka Takata que animaria as páginas da revista até 1985 e que Azara manteve vivo até 2004, com um traço humorístico muito eficaz e de grande legibilidade, características herdadas na sua passagem pelos Estúdios Hergé.
Escrito por Vicq (Raymond Anthony, 1936-1987), numa linguagem que combinava humor e poesia, Takata era um militar nipónico, imbuído dos valores tradicionais daquela sociedade oriental, profusamente expressos nos diálogos e na sua exagerada humildade. Para além disso, era pacifista, trapalhão, desastrado e inseguro, contrariando tudo o que seria de esperar de um militar do país do Sol Nascente, provocando frequentemente estragos e a perda de material bélico, para desespero dos seus superiores hierárquicos, o honorável coronel Rata Hôsoja (que, num ajuste de contas, foi inspirado no superior hierárquico que lhe fez a vida negra durante o seu serviço militar) e o ajudante Hatéjojo. Com estas personagens e uma galeria de secundários, Azara conquistou e divertiu os leitores que rapidamente aderiram à personagem, protagonista geralmente de histórias curtas ou de apenas uma página.
Em Portugal Taka Takata estreou-se na versão lusa da revista “Tintin”, logo no seu primeiro ano, 1968, onde foi presença recorrente, tendo passado também pelas páginas da “Tintin Selecções” e “Almanaque Tintin”, tendo sido editado em álbum por duas vezes: “O Ciclista Kamikaze” (Arcádia, nos anos 1970) e “O Batráquio dos Dentes de Ouro” (ASA, 2003).
Para além da banda desenhada, Jo-El Azara desenvolveu uma carreira diversificada como ilustrador de publicidade, que lhe valeu uma homenagem especial no 14.º Festival Internacional de BD De Angoulême “pela original utilização da banda desenhada em campanhas publicitárias”. A pedido de Albert Uderzo e Pierre Tchernia, participou na decoração da rua medieval do Parque Astérix, em França.


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A irresistível atracção pelo abismo

Jean-Yves Delitte é garante de rigor histórico
Colecção “As Grandes Batalhas Navais” abre com Jutlândia, confronto decisivo da Primeira Grande Guerra

Pode soar estranho, mas possivelmente não é mais do que reflexo da atracção irresistível do ser humano pelo abismo, mas há temáticas que parecem não passar de moda e regressam regularmente aos gostos do público.
Entre elas estão, indiscutivelmente, as relacionadas com as duas grandes guerras e isso ajuda a perceber que nos últimos meses tenham surgido em Portugal várias propostas de banda desenhada dentro do género, sendo o mais recente a colecção “As Grandes Batalhas Navais”. O volume inaugural intitula-se “Jutlândia” e tem a assinatura de Jean-Yves Delitte, desenhador e argumentista especializado nestes temas bélicos.
Autor de todos os tomos da colecção, nalguns casos só como argumentista, noutros, como em “Jutlândia”, como autor completo, Delitte é garante de rigor histórico e de fidelidade na reconstrução das embarcações representadas, omnipresentes ao longo das pranchas, entremeadas pontualmente com espectaculares vinhetas de página dupla.
Tendo como principal qualidade a reconstituição de época de uma das batalhas decisivas da Primeira Grande Guerra, o argumento de Delitte acrescenta-lhe um factor humano ao incluir na narrativa algumas personagens, provenientes de um e outro lado das forças em confronto, que servem para balizar os horrores dos conflitos armados e para criar alguns laços com o leitor: um oficial em vésperas de se divorciar e outro apaixonado pela mulher; um veterano marinheiro alemão; um francês morador em territórios ocupados, que se voluntariou para a aviação para poder cumprir o sonho de voar mas acabou num navio – e os seus pais.
Em torno deles, num relato pontuado por informações sobre a situação política e militar e o valor e constituição das frotas britânica e alemã prestes a enfrentar-se ao largo da península dinamarquesa que dá título à obra, Delitte constrói um relato que foge à frieza do simples documentário e ganha alguma consistência e calor humano.
Se o final surge algo abrupto, deixando a sensação – para quem está à distância – de que a montanha – a grande batalha naval em perspectiva – pariu um rato – as baixas perdas relativamente à dimensão que poderiam ter atingido pelo muito superior número de embarcações e homens em confronto – isso é atenuado pelo dossier final que ajuda a contextualizar e dimensionar o trágico acontecimento.

As Grandes Batalhas Navais – Jutlândia
Jean-Yves Delitte
Gradiva
64 p., 19,50€


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Horror japonês no pequeno écrã

Junji Ito utiliza aspectos vulgares do dia-a-dia em histórias chocantes

É conhecida a proximidade entre o mangá e o anime, que é como quem diz entre a banda desenhada e a animação japonesas, com as obras a nascerem indistintamente num dos géneros e a migrarem para o outro devido ao sucesso obtido – ou em busca dele.
“Contos macabros de Junji Ito”, cuja primeira temporada, com 12 episódios de 25 minutos, estreou recentemente na Netflix, é um dos muitos exemplos que podem ilustrar esta comunhão, com a vantagem de há poucas semanas ter chegado às livrarias portuguesas uma recolha de contos deste autor nipónico, considerado um dos mestres do horror do seu país.
Nas suas obras, este japonês de 59 anos, parte geralmente de situações ou objectos banais, para os transformar em fontes de horror, provocando no espectador uma sensação de incómodo, medo, desconforto ou mesmo nojo, conforme as abordagens e a sensibilidade de cada um.
Uma família disfuncional, uma carrinha de gelados, um balão a pairar no ar, os ruídos produzidos pelo irmão mais novo que perturbam o estudo, mofo nas paredes ou um acidente automóvel mortal são algumas das premissas-base de Ito, que as explora de forma bizarra, surreal e/ou aterradora, com desfechos inesperados e perturbadores.
Em termos de animação, aqueles que cresceram com os desenhos animados clássicos dos Looney Tunes, Tom e Jerry ou da Disney sentirão as diferenças para a animação japonesa, mais lenta e com aplicação pontual do movimento em motivos específicos, mas estas características, neste caso, contribuem para provocar o clima de suspense que torna mais eficaz as deformações da realidade que são o seu cerne.
Comparando com a obra em mangá, é notório que o recurso à cor e o facto da animação revelar mais do que a banda desenhada, exigindo assim uma menor imaginação da parte de quem a visualiza – e por isso uma menor projecção dos medos próprios – atenua o choque que podia provocar mas, mesmo assim, é garantido que o espectador nunca mais olhará para aqueles aspectos vulgares do dia-a-dia da mesma forma e sem desconfiança.

Contos macabros de Junji Ito
Com Riho Sugiyama, Daisuke Kishio, Rie Suegara
Netflix, 2023


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O regresso surpreendente inesperado feroz do Capitão Nemo

Partir do que é conhecido para seduzir o leitor
Personagens de Julio Verne e Rudyard Kipling encontram-se para salvar o mundo

Um primeiro passo para conquistar o leitor, é dar-lhe como ponto de partida algo que ele já conheça, no caso de “Nautilus”, o célebre submarino do Capitão Nemo e este vilão visionário que Jules Verne criou em “20000 léguas submarinas” e fez regressar em “A ilha misteriosa”. E, se versões em banda desenhada de romances célebres têm sido utilizadas para tentar conquistar leitores para a literatura, esta é uma outra via que até poderá ser mais eficaz e sedutora. De caminho para Nemo, os autores deste livro co-editado entre nós pela Arte de Autor e A Seita, aproveitam outro facto conhecido e histórico: o confronto latente entre a Grã-Bretanha e a Rússia nos últimos estertores do século XIX, pelo controlo de territórios indianos.
À frente do relato, como protagonista, surge Kimball O’Hara, o Kim imaginado por Rudyard Kipling no romance homónimo, um irlandês com sangue indiano e mentores tibetano e britânico, agora adulto e agente dos ingleses. Tão fascinante pela sua origem dupla e díspar quanto pela forma decidida e independente como actua, Kim vê-se apanhado numa armadilha que fez dele traidor e rastilho para o conflito, sendo a solução recuperar uns documentos num navio afundado a grande profundidade. A única forma de o conseguir é recorrendo ao desaparecido capitão Nemo, prisioneiro numa prisão na Sibéria, e ao seu mítico submarino Nautilus.
Com este pressuposto, o argumentista Mathieu Mariolle e o desenhador Guénaël Grabowski levam-nos numa grande aventura, com ritmo alucinante, personagens fortes, complexas e convincentes, situações impossíveis e perseguições de cortar a respiração, em cenários exóticos, imponentes ou deslumbrantes, fiquem eles no topo de montanhas geladas ou no mais profundo dos mares, com Kim a tentar impedir mais uma guerra fratricida entre os impérios dos czares e britânico e conseguir provar aos que o perseguem e aos que o conhecem, a sua inocência.
O traço realista de Grabowski e a forma como ocupa muitas das páginas até às margens, esquecendo o habitual contorno branco, contribui para a espectacularidade deste volume inicial de “Nautilus”, cujo final abrupto deixa os leitores sedentos da continuação deste tríptico, que ostenta a aventura e a grandiosidade das obras de Verne e o suspense dos grandes romances de espionagem.

Nautilus #1 – O teatro de sombras
Mariolle e Grabowski
Arte de Autor/A Seita
68 p., 19,95€


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F. Cleto e Pina

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Meio século aos quadradinhos

Editores e autores portugueses tentam mostrar-se em Angoulême

Como todos os anos desde há meio século, com excepção dos anos da pandemia, o último fim-de-semana de Janeiro acolhe mais uma edição do Festival de BD de Angoulême, o mais mediático e representativo do velho continente.
Durante quatro dias, a pequena cidade do sudoeste de França é invadida por dezenas de milhares de fãs dos quadradinhos que na sua peregrinação anual duplicam a população local em busca de livros, autógrafos e autores ou simplesmente para participarem da grande festa da BD, mesmo que, progressivamente o festival se tenha afastado das propostas mais comerciais e das preferências do grande público.
Isso reflecte-se nas listagens de nomeados para os vários prémios e nas exposições propostas. Este ano, o maior destaque vai para a retrospectiva dedicada à canadiana Julie Doucet, distinguida em 2022 com o Grande Prémio da cidade pelo conjunto da sua obra, uma autora subversiva e provocadora, que fez o seu percurso nos fanzines e em publicações underground, questionando a identidade feminina em obras auto-biográficas, com um toque surreal.
Os mundos fantásticos de Philippe Druillet e as histórias realistas da costa-marfinense Marguerit Abouet, marcam um absoluto contraste temático em mais duas mostras da edição deste ano que também propõe uma exposição imersiva sobre a cor, evocando uma das exposições do primeiro festival, em 1974, “A estética do preto e branco na BD”.
Atento ao crescimento exponencial do mangá, um segmento de mercado que triplicou entre 2019 e 2021 e é já o mais importante em França, Angoulême preparou três exposições subordinadas a esta temática, as monográficas consagradas a Rioichi Ikegami, o veterano criador de “Crying Freeman”, e a Junji Ito, mestre do mangá de horror, e uma terceira sobre a série “Ataque dos Titãs”.
Para além das exposições oficiais, conferências, apresentações e sessões de autógrafos e dos enormes pavilhões insufláveis onde funciona a Feira do Livro, ao virar de cada esquina, em lojas, restaurantes e até na catedral, é possível descobrir outras mostras e apreciar belos originais.
Mas o festival continua a ser um local de encontro de editores para compra e venda de direitos. É verdade que com as novas tecnologias, “a maior parte dos negócios já estão fechados”, revelou ao Jornal de Notícias João Miguel Lameiras, um dos sócios da cooperativa editorial A Seita, que mesmo assim leva marcadas “4 ou 5 reuniões, para negociar títulos para 2024, pois o programa de 2023 já está carregadíssimo”. Com muitos autores portugueses no catálogo, a intenção “é mostrar a produção nacional, mas não está nada apalavrado”, conclui.
Joana Afonso, actualmente a desenhar uma versão de “O Auto da Barca do Inferno”, a publicar este ano, confessa que devido ao muito trabalho que tem tido, vai “numa de turista”, mas “com trabalhos na mala para mostrar, se se proporcionar”.
O mesmo propósito leva também a Angoulême Filipe Abranches, autor e editor da antologia “UMBRA”, integrado “numa comitiva informal de portugueses encabeçada pelo Paulo Monteiro [director do Festival de Beja]”. Recorda Angoulême como “um espaço de reencontro de velhos amigos da BD”, onde pretende ter “reuniões informais”, uma vez que a “UMBRA” tem que se mostrar, procurar a sua internacionalização e angariar novos autores estrangeiros”. Revela ainda ter a sua “novela gráfica “Jungle!!!” à venda no stand da Breakdown Press” e que dará autógrafos “na edição polaca – “Selwa!!!” – no stand da Timof Comics, o editor que mais tem editado BD portuguesa no mundo”.
Finalmente, Ricardo Magalhães, da Ala dos Livros, pensa que “apesar das novas tecnologias é importante visitar anualmente um ou dois certames internacionais ligados ao livro.” Por isso, “a ida a Angoulême vai ser uma oportunidade para falar com colegas internacionais e aferir o que pensam dos desafios que se colocam à edição, nomeadamente com o aumento generalizados dos custos”. Revela que recebeu “nas últimas semanas diversos pedidos de reunião de novos contactos editoriais” e que leva “as obras dos autores nacionais que publicamos para divulgar e tentar que sejam publicados noutras línguas”. E termina com uma mágoa: “enquanto em Portugal são os editores e/ou os autores a mostrar os seus trabalhos, há países cujos autores são representados em Angoulême por instituições oficiais que têm mecanismos de apoio e divulgação à edição no estrangeiro”.


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Grande Prémio de Angoulême para Riad Sattouf

Francês é autor de “O Árabe do Futuro” e de “O Diário de Esther”

O autor francês Riad Sattouf, foi distinguido com o Grande Prémio de Angoulême 2023, pelo conjunto da sua obra. O anúncio oficial foi feito hoje naquela cidade francesa, onde amanhã abre as portas ao público a 50.ª edição do mais importante evento europeu dedicado à banda desenhada.
Sattouf, que curiosamente assina um dos cartazes oficiais da edição deste ano, estava nomeado juntamente com a norte-americana Alison Bechdel e a francesa Catherine Meurisse e a escolha foi feita através de uma votação online, feita pelos autores de BD com obra publicada em França, indicados pelas respectivas editoras. O mesmo método, em votação aberta, tinha já sido utilizado para determinar os três finalistas.
Natural de Paris, onde nasceu a 5 de maio de 1978, Sattouf é filho de mãe francesa e pai líbio, e dividiu a sua infância entre a Síria, a Líbia e França. Essa experiência com muito de traumático, foi contada por ele em “O Árabe do Futuro”, uma autobiografia em seis volumes que abarca o período entre 1978 e 2011, que o autor terminou no ano passado.
Os quatro primeiros tomos estão publicados em português pela Teorema, que revelou ao Jornal de Notícias que irá publicar o quinto, “Ser jovem no Médio Oriente (1992-1994)”, no segundo semestre deste ano.
Nesta obra, em especial nos primeiros anos, Sattouf narra com ternura, humor mas também desilusão, a incapacidade de se sentir integrado em qualquer das comunidades dos países em que viveu e a progressiva deterioração da relação dos pais, divididos pela olhar europeu da mãe e o crescente radicalismo muçulmano do pai. Para além do lado pessoal, a obra traça também um retrato social e político muito lúcido de realidades culturais e religiosas diferentes.
Radicado em França desde os 12 anos, Sattouf tirou o bacharelato em Rennes e estudou depois Artes Aplicadas e Animação. A entrada na BD – assente no seu íntimo desde que descobriu as aventuras de Tintin aos 5 anos – aconteceu em 2000 com a sua primeira série, “Petit Verglas”. Numa bibliografia rica e diversificada, sempre com um lado autobiográfico, distingue-se igualmente “Les Pauvres Aventures de Jérémie” (a partir de 2003), cujo volume inaugural foi distinguido como prémio René Goscinny pelo seu argumento.
Publicou BD no “Libération” e no “Charlie Hebdo” e voltaria a dar nas vistas com “Pascal Brutal” (a partir de 2007), banda desenhada protagonizada por um machista ambivalente.
Uma paragem para se dedicar ao cinema, outra das suas paixões, originou “Les Beaux Gosses”, uma longa-metragem sobre amores adolescentes, bem recebida pela crítica e pelo público, que ele próprio escreveu e realizou. Nomeado para três César, os óscares franceses, venceu o de Primeiro Filme.
Em 2014, a sua segunda experiência cinematográfica de fôlego, “Jacky au royaume des filles”, uma sátira sobre uma sociedade dominada pelas mulheres, em que os homens tinham apenas um papel reprodutor, não repetiu mas o sucesso do filme de estreia.
De regresso à BD, criou então “O Árabe do Futuro” e, em 2015, em paralelo, iniciou a publicação na revista “L’Obs” de “O Diário de Esther”, um conjunto de narrativas de 2 páginas auto-conclusivas que, no seu conjunto, traçam um retrato alargado da vida de Esther, uma pré-adolescente de 9, 10 anos, da sua família e dos seus colegas de escola, mas também, um retrato distorcido do nosso tempo, visto pela forma como o cérebro infantil absorve e projecta o que ouve dos adultos, da televisão e das redes sociais. Esta obra teve edição portuguesa da Gradiva, em dois volumes, e originou uma série de animação, “La Redoutable”, que Sattouf co-produziu com Michel Hazanavicius.
Dono de um traço linha clara, simpático e expressivo, colocado ao serviço das histórias que deseja contar, em que retrata com um olhar crítico, de forma interventiva, o tempo em que vive, as disfunções sociais e políticas que observa e a forma como (não) estamos a preparar o nosso próprio futuro, Sattouf sucede em Angoulême à canadiana Julie Doucet.
O autor já tinha integrado a selecção oficial do festival por duas vezes, em 2016 e 2017, respectivamente com os tomos 2 e 3 de “O Árabe do Futuro”, e tinha sido distinguido outras tantas com o Prémio para Melhor Álbum por “Pascal Brutal, t. 3: Plus fort que les plus forts” (2010) e “O Árabe do Futuro – volume 1” (2015).


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Uma história entre duas guerras

Biografia de Albert Eistein, o pacifista por detrás da bomba atómica
A impossibilidade de colocar limites ao uso das descobertas científicas para fins militares

Se é o nome de Albert Einstein que surge na capa deste díptico editado pela Gradiva, a verdade é que ele traça a sua biografia em paralelo com a de um dos seus grandes amigos, o químico Fritz Haber.
Dois homens, dois prémios Nobel, com uma relação próxima, mas tumultuosa, que expõe uma interessante dualidade: um deles, Haber, o nacionalista germanófilo que não se importa de pôr as suas descobertas, no caso o amoníaco que daria origem ao gás mostarda que provocou tantos massacres nas trincheiras, ao serviço dos militares alemães na Primeira Grande Guerra; o outro, o pacifista convicto, Einstein, ciente da importância da descoberta da teoria da relatividade e da sua influência, mas temeroso do uso bélico – a construção da bomba atómica – que poderia advir dela. No final, ambos entregaram aos militares as suas descobertas científicas pela mesma razão: o fim das guerras; um por convicção, outro por não ver outra solução. O resultado? O mesmo: milhares, milhões de mortos… Este antagonismo e as certezas de um e as dúvidas e remorsos do outro, contribui para os humanizar e aproximar do leitor.
De novo em voga, este tipo de obras de carácter histórico, tem tudo para agradar àqueles que gostam de banda desenhada. A chamada de um argumentista com provas dadas, como Corbeyran, garante a fluidez do relato e uma verdadeira abordagem em BD. Por outro lado, “As Guerras de Albert Einstein” têm também tudo para agradar a quem procura biografias ou narrativas históricas de leitura mais ligeira, sem que se perca a credibilidade e a solidez garantidos pela pesquisa rigorosa que esteve na sua base.
Graficamente a narrativa funciona muito bem, com uma divisão da prancha mais tradicional muitas vezes desfeita pelas vinhetas de grande dimensão para cenas de conjunto ou pormenores relevantes que ajudam a dar ao relato um outro dinamismo e permitem ao leitor espraiar o olhar pelo desenho enquanto a História decorre em fundo. Essas cenas de conjunto tanto podem levar-nos a Zurique ou a Berlim, como podem mergulhar-nos nas mais chocantes e violentas consequências trágicas da aplicação da ciência aos objectivos militares, transubstanciada em campos a perder de vista pejados de cadáveres e destruição.

As guerras de Albert Einstein 1 e 2
Closets, Corbeyran e Chabbert
Gradiva
64 + 56 p., 19,50€ (cada um)


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