Categoria: Recortes

A espera valeu a pena

Correria desenfreada por mundos soberbos e extraordinários.
Edição portuguesa de “Saga” acompanha de perto a edição original norte-americana

Três anos depois da edição do nono volume, finalmente está disponível em português o décimo tomo de “Saga”. Este é o preço a pagar pelo facto de a edição portuguesa estar a acompanhar de perto a original, norte-americana no caso, o que há bem poucos anos era bem raro.
Na origem desta longa saga, literalmente, está um amor proibido entre representantes de dois povos tradicionalmente em guerra: embora ambos tenham aspecto humanóide, ela, Alana, tem asas nas costas, e ele, Marcko, chifres retorcidos na testa. O amor impossível e proibido, a certo ponto premiado com o nascimento de uma filha, Hazel, que apresenta – ou é amaldiçoada? – as características de ambos e assume o lugar de narradora da história, leva-os numa fuga sem fim por mundos insólitos, complexos e maravilhosos, em que se multiplicam as armadilhas e as ilusões.
Ao longo dessa fuga, são muitos os seres estranhos que se vão cruzar com os fugitivos, auxiliando-os ou caçando-os: gatos telepatas, humanóides com cabeça de televisor, fantasmas, homúnculos aracnídeos e muitos outros, com os quais o argumentista Brian K. Vaughan e a ilustradora Fiona Staples, vão reinventando um universo novo e inovador mas com questões antigas: racismo, xenofobia, direito à diferença e ao livre arbítrio, atracção sexual, determinação de limites, guerras eternas…
Depois da tragédia que marcou o final do volume anterior e do período sabático que os autores se ofereceram para se dedicarem a outros projectos, nesta décima colectânea disponibilizada em português pela G. Floy reencontramos Hazel e Alana, alguns anos depois, ainda perseguidas e com um alvo permanente nas costas, como sempre a tentarem sobreviver, à custa de esquemas, nem sempre claros ou honestos, vincando a forma desassombrada como todos os temas e situações podem ser abordados e mostrados em “Saga”. Vaughan, continua a enredar-nos e, porque não, a seduzir-nos, com uma narrativa entre a ópera espacial e a novela bem urdida, deixando-nos pendentes de cada situação limite, de cada volteface e de cada uma das muitas surpresas que nos serve, a um ritmo acelerado que não deixa grande espaço para reflexão, mas apenas para uma correria desenfreada e cheia de adrenalina, atrás de protagonistas e figurantes, por mundos soberbos, originais e extraordinários.

Saga – Volume Dez
Brian K. Vaughan e Fiona Staples
G. Floy
168 p., 22,00€


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F. Cleto e Pina

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Bandeira a meia-haste para Jo-El Azara

Taka Takata perde o seu criador

Joseph Franz Hedwig Loeckx faleceu ontem, vítima de um AVC, contava 85 anos. Natural de Drogenbos, na Bélgica flamenga, era mais conhecido pelo pseudónimo de Jo-El Azara, com que assinou as bandas desenhadas de Taka Takata, a sua criação mais famosa.
Como muitos outros autores de banda desenhada estudou no Institut Saint-Luc, em Bruxelas, tendo de seguida, no verão de 1953 conhecido Willy Vandersteen, um dos maiores autores de língua flamenga, a quem assistiu num episódio da série “Bob et Bobette” (“Suskie en Wiske” no original). No ano seguinte entrou para os Estúdios Hergé onde, até 1961, participou na realização dos álbuns “O Caso Girassol”, “Carvão no Porão” e “As Jóias da Castafiore”. Foi lá que conheceu Josette Baujot que viria a ser sua esposa e colorista dos seus álbuns.
Em paralelo, a partir de 1958, colaborou em diversas revistas e jornais como “Spirou”, “Le Soir Illustré” e “Tintin”. A sua bibliografia contempla colaborações com Will em “Jacky et Célestin” ou Greg, na retoma pontual da série “Clifton”.
Finalmente, a 3 de Agosto de 1965, então no seu 20.º ano, a revista “Tintin” belga estreava um herói de nome curioso, Taka Takata que animaria as páginas da revista até 1985 e que Azara manteve vivo até 2004, com um traço humorístico muito eficaz e de grande legibilidade, características herdadas na sua passagem pelos Estúdios Hergé.
Escrito por Vicq (Raymond Anthony, 1936-1987), numa linguagem que combinava humor e poesia, Takata era um militar nipónico, imbuído dos valores tradicionais daquela sociedade oriental, profusamente expressos nos diálogos e na sua exagerada humildade. Para além disso, era pacifista, trapalhão, desastrado e inseguro, contrariando tudo o que seria de esperar de um militar do país do Sol Nascente, provocando frequentemente estragos e a perda de material bélico, para desespero dos seus superiores hierárquicos, o honorável coronel Rata Hôsoja (que, num ajuste de contas, foi inspirado no superior hierárquico que lhe fez a vida negra durante o seu serviço militar) e o ajudante Hatéjojo. Com estas personagens e uma galeria de secundários, Azara conquistou e divertiu os leitores que rapidamente aderiram à personagem, protagonista geralmente de histórias curtas ou de apenas uma página.
Em Portugal Taka Takata estreou-se na versão lusa da revista “Tintin”, logo no seu primeiro ano, 1968, onde foi presença recorrente, tendo passado também pelas páginas da “Tintin Selecções” e “Almanaque Tintin”, tendo sido editado em álbum por duas vezes: “O Ciclista Kamikaze” (Arcádia, nos anos 1970) e “O Batráquio dos Dentes de Ouro” (ASA, 2003).
Para além da banda desenhada, Jo-El Azara desenvolveu uma carreira diversificada como ilustrador de publicidade, que lhe valeu uma homenagem especial no 14.º Festival Internacional de BD De Angoulême “pela original utilização da banda desenhada em campanhas publicitárias”. A pedido de Albert Uderzo e Pierre Tchernia, participou na decoração da rua medieval do Parque Astérix, em França.


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F. Cleto e Pina

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A irresistível atracção pelo abismo

Jean-Yves Delitte é garante de rigor histórico
Colecção “As Grandes Batalhas Navais” abre com Jutlândia, confronto decisivo da Primeira Grande Guerra

Pode soar estranho, mas possivelmente não é mais do que reflexo da atracção irresistível do ser humano pelo abismo, mas há temáticas que parecem não passar de moda e regressam regularmente aos gostos do público.
Entre elas estão, indiscutivelmente, as relacionadas com as duas grandes guerras e isso ajuda a perceber que nos últimos meses tenham surgido em Portugal várias propostas de banda desenhada dentro do género, sendo o mais recente a colecção “As Grandes Batalhas Navais”. O volume inaugural intitula-se “Jutlândia” e tem a assinatura de Jean-Yves Delitte, desenhador e argumentista especializado nestes temas bélicos.
Autor de todos os tomos da colecção, nalguns casos só como argumentista, noutros, como em “Jutlândia”, como autor completo, Delitte é garante de rigor histórico e de fidelidade na reconstrução das embarcações representadas, omnipresentes ao longo das pranchas, entremeadas pontualmente com espectaculares vinhetas de página dupla.
Tendo como principal qualidade a reconstituição de época de uma das batalhas decisivas da Primeira Grande Guerra, o argumento de Delitte acrescenta-lhe um factor humano ao incluir na narrativa algumas personagens, provenientes de um e outro lado das forças em confronto, que servem para balizar os horrores dos conflitos armados e para criar alguns laços com o leitor: um oficial em vésperas de se divorciar e outro apaixonado pela mulher; um veterano marinheiro alemão; um francês morador em territórios ocupados, que se voluntariou para a aviação para poder cumprir o sonho de voar mas acabou num navio – e os seus pais.
Em torno deles, num relato pontuado por informações sobre a situação política e militar e o valor e constituição das frotas britânica e alemã prestes a enfrentar-se ao largo da península dinamarquesa que dá título à obra, Delitte constrói um relato que foge à frieza do simples documentário e ganha alguma consistência e calor humano.
Se o final surge algo abrupto, deixando a sensação – para quem está à distância – de que a montanha – a grande batalha naval em perspectiva – pariu um rato – as baixas perdas relativamente à dimensão que poderiam ter atingido pelo muito superior número de embarcações e homens em confronto – isso é atenuado pelo dossier final que ajuda a contextualizar e dimensionar o trágico acontecimento.

As Grandes Batalhas Navais – Jutlândia
Jean-Yves Delitte
Gradiva
64 p., 19,50€


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F. Cleto e Pina

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Horror japonês no pequeno écrã

Junji Ito utiliza aspectos vulgares do dia-a-dia em histórias chocantes

É conhecida a proximidade entre o mangá e o anime, que é como quem diz entre a banda desenhada e a animação japonesas, com as obras a nascerem indistintamente num dos géneros e a migrarem para o outro devido ao sucesso obtido – ou em busca dele.
“Contos macabros de Junji Ito”, cuja primeira temporada, com 12 episódios de 25 minutos, estreou recentemente na Netflix, é um dos muitos exemplos que podem ilustrar esta comunhão, com a vantagem de há poucas semanas ter chegado às livrarias portuguesas uma recolha de contos deste autor nipónico, considerado um dos mestres do horror do seu país.
Nas suas obras, este japonês de 59 anos, parte geralmente de situações ou objectos banais, para os transformar em fontes de horror, provocando no espectador uma sensação de incómodo, medo, desconforto ou mesmo nojo, conforme as abordagens e a sensibilidade de cada um.
Uma família disfuncional, uma carrinha de gelados, um balão a pairar no ar, os ruídos produzidos pelo irmão mais novo que perturbam o estudo, mofo nas paredes ou um acidente automóvel mortal são algumas das premissas-base de Ito, que as explora de forma bizarra, surreal e/ou aterradora, com desfechos inesperados e perturbadores.
Em termos de animação, aqueles que cresceram com os desenhos animados clássicos dos Looney Tunes, Tom e Jerry ou da Disney sentirão as diferenças para a animação japonesa, mais lenta e com aplicação pontual do movimento em motivos específicos, mas estas características, neste caso, contribuem para provocar o clima de suspense que torna mais eficaz as deformações da realidade que são o seu cerne.
Comparando com a obra em mangá, é notório que o recurso à cor e o facto da animação revelar mais do que a banda desenhada, exigindo assim uma menor imaginação da parte de quem a visualiza – e por isso uma menor projecção dos medos próprios – atenua o choque que podia provocar mas, mesmo assim, é garantido que o espectador nunca mais olhará para aqueles aspectos vulgares do dia-a-dia da mesma forma e sem desconfiança.

Contos macabros de Junji Ito
Com Riho Sugiyama, Daisuke Kishio, Rie Suegara
Netflix, 2023


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O regresso surpreendente inesperado feroz do Capitão Nemo

Partir do que é conhecido para seduzir o leitor
Personagens de Julio Verne e Rudyard Kipling encontram-se para salvar o mundo

Um primeiro passo para conquistar o leitor, é dar-lhe como ponto de partida algo que ele já conheça, no caso de “Nautilus”, o célebre submarino do Capitão Nemo e este vilão visionário que Jules Verne criou em “20000 léguas submarinas” e fez regressar em “A ilha misteriosa”. E, se versões em banda desenhada de romances célebres têm sido utilizadas para tentar conquistar leitores para a literatura, esta é uma outra via que até poderá ser mais eficaz e sedutora. De caminho para Nemo, os autores deste livro co-editado entre nós pela Arte de Autor e A Seita, aproveitam outro facto conhecido e histórico: o confronto latente entre a Grã-Bretanha e a Rússia nos últimos estertores do século XIX, pelo controlo de territórios indianos.
À frente do relato, como protagonista, surge Kimball O’Hara, o Kim imaginado por Rudyard Kipling no romance homónimo, um irlandês com sangue indiano e mentores tibetano e britânico, agora adulto e agente dos ingleses. Tão fascinante pela sua origem dupla e díspar quanto pela forma decidida e independente como actua, Kim vê-se apanhado numa armadilha que fez dele traidor e rastilho para o conflito, sendo a solução recuperar uns documentos num navio afundado a grande profundidade. A única forma de o conseguir é recorrendo ao desaparecido capitão Nemo, prisioneiro numa prisão na Sibéria, e ao seu mítico submarino Nautilus.
Com este pressuposto, o argumentista Mathieu Mariolle e o desenhador Guénaël Grabowski levam-nos numa grande aventura, com ritmo alucinante, personagens fortes, complexas e convincentes, situações impossíveis e perseguições de cortar a respiração, em cenários exóticos, imponentes ou deslumbrantes, fiquem eles no topo de montanhas geladas ou no mais profundo dos mares, com Kim a tentar impedir mais uma guerra fratricida entre os impérios dos czares e britânico e conseguir provar aos que o perseguem e aos que o conhecem, a sua inocência.
O traço realista de Grabowski e a forma como ocupa muitas das páginas até às margens, esquecendo o habitual contorno branco, contribui para a espectacularidade deste volume inicial de “Nautilus”, cujo final abrupto deixa os leitores sedentos da continuação deste tríptico, que ostenta a aventura e a grandiosidade das obras de Verne e o suspense dos grandes romances de espionagem.

Nautilus #1 – O teatro de sombras
Mariolle e Grabowski
Arte de Autor/A Seita
68 p., 19,95€


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Meio século aos quadradinhos

Editores e autores portugueses tentam mostrar-se em Angoulême

Como todos os anos desde há meio século, com excepção dos anos da pandemia, o último fim-de-semana de Janeiro acolhe mais uma edição do Festival de BD de Angoulême, o mais mediático e representativo do velho continente.
Durante quatro dias, a pequena cidade do sudoeste de França é invadida por dezenas de milhares de fãs dos quadradinhos que na sua peregrinação anual duplicam a população local em busca de livros, autógrafos e autores ou simplesmente para participarem da grande festa da BD, mesmo que, progressivamente o festival se tenha afastado das propostas mais comerciais e das preferências do grande público.
Isso reflecte-se nas listagens de nomeados para os vários prémios e nas exposições propostas. Este ano, o maior destaque vai para a retrospectiva dedicada à canadiana Julie Doucet, distinguida em 2022 com o Grande Prémio da cidade pelo conjunto da sua obra, uma autora subversiva e provocadora, que fez o seu percurso nos fanzines e em publicações underground, questionando a identidade feminina em obras auto-biográficas, com um toque surreal.
Os mundos fantásticos de Philippe Druillet e as histórias realistas da costa-marfinense Marguerit Abouet, marcam um absoluto contraste temático em mais duas mostras da edição deste ano que também propõe uma exposição imersiva sobre a cor, evocando uma das exposições do primeiro festival, em 1974, “A estética do preto e branco na BD”.
Atento ao crescimento exponencial do mangá, um segmento de mercado que triplicou entre 2019 e 2021 e é já o mais importante em França, Angoulême preparou três exposições subordinadas a esta temática, as monográficas consagradas a Rioichi Ikegami, o veterano criador de “Crying Freeman”, e a Junji Ito, mestre do mangá de horror, e uma terceira sobre a série “Ataque dos Titãs”.
Para além das exposições oficiais, conferências, apresentações e sessões de autógrafos e dos enormes pavilhões insufláveis onde funciona a Feira do Livro, ao virar de cada esquina, em lojas, restaurantes e até na catedral, é possível descobrir outras mostras e apreciar belos originais.
Mas o festival continua a ser um local de encontro de editores para compra e venda de direitos. É verdade que com as novas tecnologias, “a maior parte dos negócios já estão fechados”, revelou ao Jornal de Notícias João Miguel Lameiras, um dos sócios da cooperativa editorial A Seita, que mesmo assim leva marcadas “4 ou 5 reuniões, para negociar títulos para 2024, pois o programa de 2023 já está carregadíssimo”. Com muitos autores portugueses no catálogo, a intenção “é mostrar a produção nacional, mas não está nada apalavrado”, conclui.
Joana Afonso, actualmente a desenhar uma versão de “O Auto da Barca do Inferno”, a publicar este ano, confessa que devido ao muito trabalho que tem tido, vai “numa de turista”, mas “com trabalhos na mala para mostrar, se se proporcionar”.
O mesmo propósito leva também a Angoulême Filipe Abranches, autor e editor da antologia “UMBRA”, integrado “numa comitiva informal de portugueses encabeçada pelo Paulo Monteiro [director do Festival de Beja]”. Recorda Angoulême como “um espaço de reencontro de velhos amigos da BD”, onde pretende ter “reuniões informais”, uma vez que a “UMBRA” tem que se mostrar, procurar a sua internacionalização e angariar novos autores estrangeiros”. Revela ainda ter a sua “novela gráfica “Jungle!!!” à venda no stand da Breakdown Press” e que dará autógrafos “na edição polaca – “Selwa!!!” – no stand da Timof Comics, o editor que mais tem editado BD portuguesa no mundo”.
Finalmente, Ricardo Magalhães, da Ala dos Livros, pensa que “apesar das novas tecnologias é importante visitar anualmente um ou dois certames internacionais ligados ao livro.” Por isso, “a ida a Angoulême vai ser uma oportunidade para falar com colegas internacionais e aferir o que pensam dos desafios que se colocam à edição, nomeadamente com o aumento generalizados dos custos”. Revela que recebeu “nas últimas semanas diversos pedidos de reunião de novos contactos editoriais” e que leva “as obras dos autores nacionais que publicamos para divulgar e tentar que sejam publicados noutras línguas”. E termina com uma mágoa: “enquanto em Portugal são os editores e/ou os autores a mostrar os seus trabalhos, há países cujos autores são representados em Angoulême por instituições oficiais que têm mecanismos de apoio e divulgação à edição no estrangeiro”.


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F. Cleto e Pina

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Grande Prémio de Angoulême para Riad Sattouf

Francês é autor de “O Árabe do Futuro” e de “O Diário de Esther”

O autor francês Riad Sattouf, foi distinguido com o Grande Prémio de Angoulême 2023, pelo conjunto da sua obra. O anúncio oficial foi feito hoje naquela cidade francesa, onde amanhã abre as portas ao público a 50.ª edição do mais importante evento europeu dedicado à banda desenhada.
Sattouf, que curiosamente assina um dos cartazes oficiais da edição deste ano, estava nomeado juntamente com a norte-americana Alison Bechdel e a francesa Catherine Meurisse e a escolha foi feita através de uma votação online, feita pelos autores de BD com obra publicada em França, indicados pelas respectivas editoras. O mesmo método, em votação aberta, tinha já sido utilizado para determinar os três finalistas.
Natural de Paris, onde nasceu a 5 de maio de 1978, Sattouf é filho de mãe francesa e pai líbio, e dividiu a sua infância entre a Síria, a Líbia e França. Essa experiência com muito de traumático, foi contada por ele em “O Árabe do Futuro”, uma autobiografia em seis volumes que abarca o período entre 1978 e 2011, que o autor terminou no ano passado.
Os quatro primeiros tomos estão publicados em português pela Teorema, que revelou ao Jornal de Notícias que irá publicar o quinto, “Ser jovem no Médio Oriente (1992-1994)”, no segundo semestre deste ano.
Nesta obra, em especial nos primeiros anos, Sattouf narra com ternura, humor mas também desilusão, a incapacidade de se sentir integrado em qualquer das comunidades dos países em que viveu e a progressiva deterioração da relação dos pais, divididos pela olhar europeu da mãe e o crescente radicalismo muçulmano do pai. Para além do lado pessoal, a obra traça também um retrato social e político muito lúcido de realidades culturais e religiosas diferentes.
Radicado em França desde os 12 anos, Sattouf tirou o bacharelato em Rennes e estudou depois Artes Aplicadas e Animação. A entrada na BD – assente no seu íntimo desde que descobriu as aventuras de Tintin aos 5 anos – aconteceu em 2000 com a sua primeira série, “Petit Verglas”. Numa bibliografia rica e diversificada, sempre com um lado autobiográfico, distingue-se igualmente “Les Pauvres Aventures de Jérémie” (a partir de 2003), cujo volume inaugural foi distinguido como prémio René Goscinny pelo seu argumento.
Publicou BD no “Libération” e no “Charlie Hebdo” e voltaria a dar nas vistas com “Pascal Brutal” (a partir de 2007), banda desenhada protagonizada por um machista ambivalente.
Uma paragem para se dedicar ao cinema, outra das suas paixões, originou “Les Beaux Gosses”, uma longa-metragem sobre amores adolescentes, bem recebida pela crítica e pelo público, que ele próprio escreveu e realizou. Nomeado para três César, os óscares franceses, venceu o de Primeiro Filme.
Em 2014, a sua segunda experiência cinematográfica de fôlego, “Jacky au royaume des filles”, uma sátira sobre uma sociedade dominada pelas mulheres, em que os homens tinham apenas um papel reprodutor, não repetiu mas o sucesso do filme de estreia.
De regresso à BD, criou então “O Árabe do Futuro” e, em 2015, em paralelo, iniciou a publicação na revista “L’Obs” de “O Diário de Esther”, um conjunto de narrativas de 2 páginas auto-conclusivas que, no seu conjunto, traçam um retrato alargado da vida de Esther, uma pré-adolescente de 9, 10 anos, da sua família e dos seus colegas de escola, mas também, um retrato distorcido do nosso tempo, visto pela forma como o cérebro infantil absorve e projecta o que ouve dos adultos, da televisão e das redes sociais. Esta obra teve edição portuguesa da Gradiva, em dois volumes, e originou uma série de animação, “La Redoutable”, que Sattouf co-produziu com Michel Hazanavicius.
Dono de um traço linha clara, simpático e expressivo, colocado ao serviço das histórias que deseja contar, em que retrata com um olhar crítico, de forma interventiva, o tempo em que vive, as disfunções sociais e políticas que observa e a forma como (não) estamos a preparar o nosso próprio futuro, Sattouf sucede em Angoulême à canadiana Julie Doucet.
O autor já tinha integrado a selecção oficial do festival por duas vezes, em 2016 e 2017, respectivamente com os tomos 2 e 3 de “O Árabe do Futuro”, e tinha sido distinguido outras tantas com o Prémio para Melhor Álbum por “Pascal Brutal, t. 3: Plus fort que les plus forts” (2010) e “O Árabe do Futuro – volume 1” (2015).


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Uma história entre duas guerras

Biografia de Albert Eistein, o pacifista por detrás da bomba atómica
A impossibilidade de colocar limites ao uso das descobertas científicas para fins militares

Se é o nome de Albert Einstein que surge na capa deste díptico editado pela Gradiva, a verdade é que ele traça a sua biografia em paralelo com a de um dos seus grandes amigos, o químico Fritz Haber.
Dois homens, dois prémios Nobel, com uma relação próxima, mas tumultuosa, que expõe uma interessante dualidade: um deles, Haber, o nacionalista germanófilo que não se importa de pôr as suas descobertas, no caso o amoníaco que daria origem ao gás mostarda que provocou tantos massacres nas trincheiras, ao serviço dos militares alemães na Primeira Grande Guerra; o outro, o pacifista convicto, Einstein, ciente da importância da descoberta da teoria da relatividade e da sua influência, mas temeroso do uso bélico – a construção da bomba atómica – que poderia advir dela. No final, ambos entregaram aos militares as suas descobertas científicas pela mesma razão: o fim das guerras; um por convicção, outro por não ver outra solução. O resultado? O mesmo: milhares, milhões de mortos… Este antagonismo e as certezas de um e as dúvidas e remorsos do outro, contribui para os humanizar e aproximar do leitor.
De novo em voga, este tipo de obras de carácter histórico, tem tudo para agradar àqueles que gostam de banda desenhada. A chamada de um argumentista com provas dadas, como Corbeyran, garante a fluidez do relato e uma verdadeira abordagem em BD. Por outro lado, “As Guerras de Albert Einstein” têm também tudo para agradar a quem procura biografias ou narrativas históricas de leitura mais ligeira, sem que se perca a credibilidade e a solidez garantidos pela pesquisa rigorosa que esteve na sua base.
Graficamente a narrativa funciona muito bem, com uma divisão da prancha mais tradicional muitas vezes desfeita pelas vinhetas de grande dimensão para cenas de conjunto ou pormenores relevantes que ajudam a dar ao relato um outro dinamismo e permitem ao leitor espraiar o olhar pelo desenho enquanto a História decorre em fundo. Essas cenas de conjunto tanto podem levar-nos a Zurique ou a Berlim, como podem mergulhar-nos nas mais chocantes e violentas consequências trágicas da aplicação da ciência aos objectivos militares, transubstanciada em campos a perder de vista pejados de cadáveres e destruição.

As guerras de Albert Einstein 1 e 2
Closets, Corbeyran e Chabbert
Gradiva
64 + 56 p., 19,50€ (cada um)


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Uma interminável sucessão de dias

Entre a embriaguez da vida eterna e a solidão que ela acarreta
Segundo volume de “A Velha Guarda” já disponível em português, enquanto não estreia a sequela com Charlize Theron

Enquanto se aguarda pela sequela de “A Velha Guarda”, que a Netflix estará a preparar para este ano, a G. Floy editou em português, mesmo no final de 2022, “Força multiplicada”, o segundo volume da banda desenhada que esteve na origem do filme que Charlize Theron protagonizou em 2020.
O conceito base desta obra criada por Greg Rucka é fácil de explicar: existem no nosso planeta algumas pessoas que são imortais. Ou quase. Podem ser esfaqueadas, baleadas, explodidas ou sofrer qualquer outro tipo de ataque, que possuem a capacidade de se reconstituir e recuperar. Esse poder vai-se deteriorando com o tempo e um dia, passadas dezenas, centenas ou milhares de anos, acabarão por não conseguir ressuscitar.
Esta premissa permitiu a Rucka, e ao desenhador Leandro Fernández, criarem uma série de acção explosiva e espectacular, extremamente dinâmica e com adrenalina a sair por todos os poros. O filme dirigido por Gina Prince-Bythewood conseguiu transpor para o ecrã o ritmo vibrante do original e recriar algumas das cenas mais marcantes, mas “Força multiplicada”, pelos níveis de violência e destruição atingidos, promete levantar grandes dificuldades aos técnicos de efeitos especiais.
Este segundo volume, centrado no combate a uma rede de tráfico humano, fica também marcado pelo aparecimento de Noriko que, no seguimento de um naufrágio, passou os últimos cinco séculos no fundo do mar a ressuscitar e a afogar-se num interminável ciclo sem fim. Revoltada por se sentir abandonada por Andy, que estava com ela na altura da tragédia, vem disposta a fazê-la pagar pelo que aconteceu.
A par dos vibrantes excessos visuais que fazem dela uma excelente banda desenhada de aventura e acção de contornos fantásticos, mais uma vez “A Velha Guarda” vem questionar temáticas como a vida e a morte e a solidão associada à imortalidade, quando desaparecem todos aqueles que num determinado momento amaram e foram amados e/ou importantes, levados pela voragem do tempo.
E também o que fazer com essa imortalidade. Visitar lugares, acumular conhecimento, ajudar pessoas, trabalhar pelo bem comum… podem ser algumas respostas positivas – que poderão sempre ter o oposto em negativo – mas mesmo isto pode acabar por parecer inútil e vazio quando a sucessão de dias não tem fim.

A Velha Guarda #2 Força Multiplicada
Greg Rucka e Leandro Fernández
G. Floy
168 p., 24,00€


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Grande Prémio de Angoulême já tem finalistas

Alison Bechdel, Catherine Meurisse e Riad Sattouf são os nomeados

A organização do Festival International de la Bande Dessinée d’Angoulême, França, revelou hoje os três candidatos ao seu Grande Prémio, que distingue um autor pelo conjunto da sua obra. Alison Bechdel, Catherine Meurisse e Riad Sattouf foram os escolhidos.
Bechdel, norte-americana de 62 anos, é uma das figuras do feminismo na BD daquele país. Entre as suas obras mais marcantes contam-se “Fun Home” (que teve edição portuguesa da Contraponto, em 2012), considerado o livro do ano pela revista “Times”, em 2006, e que aborda a relação complicada da autora com o pai. “Are you my mother”, é outro dos seus títulos de relevo. Curiosamente, antes desta nomeação, a Relógio de Água já tinha anunciado a edição no nosso país da sua obra mais recente, “O Segredo da Força Sobre-Humana”, para Março deste ano.
Quanto a Christine Meurisse, repete a presença no trio finalista, já registada no ano passado. Colaboradora do “Charlie Hebdo”, é uma das sobreviventes do ataque terrorista de 2015 contra a redacção daquele jornal satírico francês, graças a uma noite mal dormida, como narrou em “La Légèretée”, uma obra íntima e catártica. “Humaine, trop humaine”, uma colectânea de histórias curtas com diálogos, citações e encenações burlescas que sondam e abalam as regras e os códigos do pensamento filosófico universal.
Quanto a Riad Sattouf, de 44 anos e um dos autores mais interessantes da sua geração, é também francês como Meurisse e igualmente colaborador do “Charlie Hebbdo”. Dos três, é o mais divulgado em Portugal graças a “O Diário de Esther” (2 volumes, editados pela Gradiva, em 2019), sobre o quotidiano de uma menina de 10 anos, e a “O Árabe do Futuro” (quatro volumes pela Teorema, desde 2015), uma obra auto-biográfica sobre a sua infância, dividida entre a mãe francesa e o pai muçulmano e, consequentemente, entre a França e Líbia e a Síria. Ao Jornal de Notícias, a editora confirmou a edição em Portugal do quinto (e penúltimo) volume da série, “Ser jovem no Médio Oriente (1992-1994)”, no segundo semestre deste ano.
Estes três nomes foram encontrados através de uma votação online aberta, em que puderam participar todos os autores com obra publicada em França. O mesmo sistema, com com a escolha limitada a estes três autores, determinará o vencedor do Grand Prix D’Angoulême 2023, que sucederá à canadiana Julie Doucet e integrará uma lista em que já estão nomes como Franquin, Eisner, Moebius, Mezières, Tardi, Bilal, Pratt, Morris, Boucq, Crumb, Schuiten, Spiegelman, Bill Watterson, Katsuhiro Otomo ou Hermann. O vencedor será divulgado dia 25 de Janeiro.
A edição deste ano do Festival de Bande Desssinée de Angoulême, terá lugar entre 26 a 29 do corrente mês, fazendo parte do programa exposições de Julie Doucet, Philippe Druillet, Ryōichi Ikegami ou Junji Itō.


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F. Cleto e Pina

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